sábado, 28 de novembro de 2015

"Esprit de géométrie" e "esprit de finesse"







            As expressões são francesas e de Blaise Pascal, um gênio da matemática, inventor da máquina de calcular, filósofo, e mais um tanto de coisas que só os gênios são capazes. De Pascal eu só conhecia a frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, mas o “espírito de geometria” e o “espírito de gentileza” me conquistaram. Enfim, o que seria isso? Como o próprio nome diz, espírito de geometria seria a razão matemática, a razão exata, a de elementos invariantes, já o espírito de finura ou de gentileza representa a razão cordial, a lógica de coração, de acordo com Pascal. E o coração, este realmente tem razões que a própria razão não considera, o coração é um estranho para a razão.
            Colocando as coisas de outra maneira poderíamos dizer que: espírito de gentileza é o perdão e o espírito de geometria é a dureza de coração. O medicamento no hospital é o espírito de geometria, e a visita de quem ora pelos doentes é o espírito de gentileza. Espírito de geometria é o professor que não considera uma possibilidade diferente na resposta do aluno, e o espírito de gentileza é o professor que resgata um aluno perdido. Espírito de gentileza é a compreensão e espírito de geometria é o julgamento. Espírito de gentileza é a compaixão e espírito de geometria é a indiferença. Espírito de gentileza é a solidariedade e o espírito de geometria é o egocentrismo. A ciência seria a geometria e a espiritualidade a gentileza.
            Pascal dizia que essa contradição era necessária para a nossa vida, e que mesmo ambas as razões, a exata, calculada e a razão do coração são imprescindíveis. Elas se combateram, depois marcharam juntas, e hoje se convergem na diversidade. Não é que o espírito de geometria seja mau, ele é um lado objetivo que também faz falta, é necessário, porém a humanidade dos dias atuais nunca precisou tanto do espírito de gentileza. Hoje, mais do que nunca, urge o espírito de gentileza neste mundo caótico em que estamos inseridos. No contexto atual dos atentados na França, ouvi algumas opiniões de cientistas de relações internacionais. A maioria diz que a guerra iminente é corretíssima, que não há possibilidade de diálogo com terroristas, entretanto um dos cientistas políticos acredita na possibilidade de negociação porque senão a guerra nunca terminará, será uma bola de neve sangrenta. A possibilidade de negociação e diálogo seria o espírito de gentileza, o que nunca vai ocorrer.
            Bem, para ilustrar de forma prática: no filme “O carteiro e o poeta”, tem uma cena em que o poeta, ateu convicto, entra em uma igreja para se preparar para o batizado de seu afilhado, filho do carteiro. Mesmo sendo ateu, o poeta demonstra um comovente espírito de gentileza ao se ajoelhar e se persignar em respeito ao rito que assim ensina.  
            Outro exemplo: conheci por acaso aqui em Itajubá, Elika Takimoto, ganhadora do Prêmio Saraiva. Convidada para o lançamento de seu livro "Minha Vida é um Blog Aberto", que, aliás, é o nome de seu Blog, cheguei lá meio constrangida porque estava sozinha. A escritora veio ao meu encontro e durante todo o tempo fez-me sentir como se eu fosse a dona da festa. Percebi logo que ela era possuidora de um sensibilíssimo “esprit de finesse”.
E para finalizar, numa noite dessas atrás, ao telefonar para minha prima, já de noite, flagrei-a no caminho da casa de uma vizinha do bairro, no campo. Disse-me ela que estava levando uma cordinha mais comprida para o cãozinho doente que precisava ficar preso e ela ficara condoída ao ver que o bichinho pouco podia se movimentar pela cordinha pequena no pescoço. Uma pessoa que se presta a deixar o conforto de sua casa para dar mais alívio para um cãozinho doente é outro exemplo brilhante do espírito de gentileza.  
Bom, gente, não sei se isso se aprende ou se é próprio da pessoa. Para mim é qualidade, é virtude natural. Se forçado, deixa de ser virtude, percebem? É como a humildade, quem pensa que é humilde, já não o é. Isto é um tesouro que Deus talvez conceda a quem não pede honrarias nem dinheiro, mas apenas a condição de poder chegar mais perto Dele para ser uma pessoa melhor.     




quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O idoso e o cuidador - Uma relação de amor





            Há aqueles que passam pelas fases da vida com uma incrível naturalidade. E dessa forma, chegam à velhice ou cuidam de seus pais idosos como se estivessem a fazer uma agradável viagem de trem em um bonito dia de outono. Param nas estações, observam tudo à sua volta, sem reclamações, sem pressa, saboreando cada momento, com um interesse genuíno por tudo o que traz a viagem. Deixam-se levar pelo trem por tortuosas e perigosas montanhas, cansados, mas com serenidade. De outro modo, há aqueles que sofrem por cada estação, choram, reclamam, sapateiam, dão murros em pontas de facas, têm medo. Não são piores nem melhores que os primeiros, são apenas diferentes, talvez com uma sensibilidade mais aguçada.
Ninguém nasce sabendo. Qualquer coisa na vida é um aprendizado, sempre soubemos disso. Aprender um ofício, uma profissão, aprender técnicas em geral, mesmo trabalhos de arte como dançar, pintar, enfim, tudo exige doses de dedicação, esforço e tempo. Agora, aprender a lidar com pessoas e sentimentos é outra coisa. É e será sempre mais complexo. Exige amor, mais do que em qualquer outro empreendimento. Cuidar de um idoso é assim, trabalho de amor, sentimento que também tem que ser construído. Cometemos muitos erros, mas aprender é necessário, um aprendizado que muitas vezes vem tardiamente, nem por isso com menos nobreza e amor, assim como cuidar e educar os filhos. Quantas vezes nos deparamos com alguém que diz: “se eu soubesse o que sei hoje, faria diferente...” Todavia, nessa altura dos acontecimentos, os filhos já cresceram ou os pais já se foram e a experiência de uns dificilmente serve para outros. Cada um vive e aprende a sua própria.
            Ficar velho não é fácil, só quem já ficou é que sabe. A pele envelhece, as rugas aparecem, a beleza vai embora por mais cuidados que se tenha. Mas a beleza não é o que mais pesa e sim a saúde. Tornamo-nos mais lentos para caminhar, para pensar e as doenças rondam os velhos como ladrões à espreita ao perceberem a fragilidade da casa. Embora a literatura sempre enalteça a velhice, apontando e exaltando suas vantagens como a indispensável sabedoria, o fato é que ninguém quer ficar velho, todos preferiríamos ser jovens, ou pelo menos, menos velhos. De outra forma, ao envelhecer, em certa hora perigosa da vida, deparamo-nos com a inevitável finitude, conceito que já conhecíamos vagamente em épocas anteriores, mas que só se mostra claramente mais tarde. E a odiosa, mas bendita finitude vem vestida de sabedoria para nos ensinar que tudo passa, que a morte não tarda. E não nos resta alternativa senão viver. E também é nessa hora ou nunca que aprendemos a esvaziar a mala carregada de coisas de que não precisamos e a deixar a ansiedade de lado e refletir: a vida é cruel, mas incrivelmente bela. Eu era ainda tão jovem quando ouvi de uma velha senhora em um salão de beleza: “a velhice não é ruim, o que é ruim é o que vem com ela, como as doenças e as limitações”. Na época, a velhice estava tão longe como a terra da lua. Eu sabia que a morte existia, mas ela ainda não era real para mim, pois eu me sentia eterna. Hoje essa distância já é pequena, pois não só os homens já chegaram até a lua, como os anos passam aceleradamente.
 Ocorre ainda outro fenômeno, não só os velhos sofrem com a velhice. Os mais jovens, muitas vezes, sentem-se desconfortáveis com os velhos, como se essa presença lhes lembrasse como serão um dia. No mundo rápido de hoje, os idosos não têm muito espaço entre os jovens. São demorados para entrar nos carros, sentem-se inseguros para atravessar a rua, não escutam bem, não abdicam nunca de seu sempre “no meu tempo era diferente”. São ainda ridicularizados em programas cômicos passados na televisão e preteridos nas vagas de emprego. Ninguém gosta de reconhecer, mas interiormente, rejeita-se a velhice e às vezes o cuidado e a mesura exagerados com os idosos disfarçam uma rejeição inconsciente. Quando o idoso não é ignorado, é tratado como criança. Como encontrar uma saída ou meio termo para se viver uma velhice saudável ou conviver com quem já ficou velho? Nada mais real do que a consciência do fato de que velhice existe e que chegará para todos, pela lei natural da vida.
Todos nós seremos velhos, a menos que a morte nos leve prematuramente, óbvio. Outra obviedade: antes de envelhecermos, teremos pais velhos. A maioria dos jovens não pensa nisso. Nada mais natural, pois isso ainda não faz parte das preocupações inerentes à sua faixa etária. Ninguém nos disse quando éramos adolescentes: “um dia vocês terão que cuidar de seus pais...” é claro que essa constatação chegará a seu tempo para todos. Mas quando chega, percebemos que não estamos preparados para essa tarefa, ninguém está. Só o dia a dia dessa lida é que vai esclarecendo, orientando, iluminando o caminho que temos que seguir. Sem desmerecer o conhecimento que está nos livros, talvez quem mais possa falar sobre os dramas de relacionamentos entre pais idosos e filhos que os cuidam são eles próprios. Há e muito o que aprender antes de estar no campo de batalha. Por exemplo, podemos aprender que para os idosos a água do chuveiro é ameaçadora como uma cachoeira barulhenta e perigosa. Quando estão de costas para nós, se falamos um pouco mais alto, eles se assustam facilmente. Há outras tantas coisas simples que precisam e devem ser ensinadas e aprendidas, mas aprende-se mesmo é lidando, relacionando-se, sobretudo amando.  
            Dentre os insondáveis mistérios da vida repletos de porquês que nunca serão esclarecidos está por que alguns filhos passam tantos anos por tanto sofrimento ao cuidar de seus pais idosos e doentes e outros já não saberão como é isso, pois perderam os seus ainda bem cedo. Estes filhos nunca conhecerão como é difícil, mas ao mesmo tempo gratificante, cuidar de seus pais. Nunca os lavarão, nem escovarão seus dentes e seus cabelos. A estes filhos não estava destinada essa missão. Mas é bom que saibam como sentem seus amigos com seus pais idosos nesse contexto especial e delicado.     
            Parece que ontem mesmo éramos filhos cuidados e dependentes de nossos pais. Tínhamos alimentos, roupas, uniformes de escola, tudo limpinho e passado. Se fôssemos acometidos por gripes ou outras doenças, ou mesmo se feridos em alguma brincadeira com outras crianças, nossos machucados recebiam curativos e até beijos. Eram eles, sempre eles que lá estavam nos medicando, medindo nossa febre. Os problemas, ora, isso era coisa para eles, os adultos, que onipotentemente tudo sabiam e podiam arranjar e resolver de tal forma para que nossa vida fosse perfeita. Tudo era festa, íamos com eles de mãos dadas aonde quer que fossem, não nos preocupando com documentos, dinheiro ou passagens. Na festinha das escolas, lá estavam eles assistindo a nossa declamação de poesias do dia das mães e dos pais, aplaudindo cheios de orgulho e felizes. De repente, afinal não foi tão de repente assim que a situação mudou. Agora somos nós que temos que cuidar deles. Às vezes começa devagarzinho, um olhar cansado que detectamos, um andar trôpego que não observávamos anteriormente, um insistente esquecimento, uma tristeza que se transforma em depressão, enfim, um jeito débil que não era deles.
Sem saber como agir, os levamos ao médico. Crivados de perguntas, respondemos aos profissionais com certa insegurança porque não sabemos como e quando exatamente aqueles sintomas apareceram. Nossos pais eram tão confiantes, tão sabedores de tudo e não nos falaram nada, não queixaram. Até escondiam suas queixas. Nossos pais ficaram velhos. Na correria do dia a dia escapou ao nosso olhar aquelas manchas senis de suas mãos, aquele tom mais rouco de sua voz. Foi quando o geriatra os examinou. Pegou demoradamente em suas mãos e braços, examinou sua garganta com aquele olhar incisivo do qual nada escapa e lá vem novamente nos perguntar coisas que são sabemos responder. Dá até vontade de dizer com toda a sinceridade: “não sei, eles é que são nossos pais, eles é que sabem e sempre souberam de tudo, somos apenas os filhos”. E o médico nos olha com aquele aparente olhar acusador como se fôssemos nós os pais. É a velhice que chegou, senhora absoluta e cruel que, se perguntada, certamente nos diria que não foi de repente, ficou entrando aqui e ali, não sendo recebida como devia. Responderia a nós que ela é assim mesmo, vai chegando para seu lugar com todos os direitos reconhecidos e assegurados pela vida, não quer ser intrusa, apenas acolhida com dignidade e amor. Quando isso não acontece, ela desaba em cima de nós como um tsunami implacável que vai arrastando tudo. Leva a força dos ossos, do sangue, faz desordenar a ordem dos neurônios, leva a alegria, especialmente se essa não foi cultivada como deveria. E temos lá carimbado em nossa ficha de filhos: “culpados”. Voltamos para casa como uma lista interminável de recomendações, exames e receitas desse medicamento e desse outro. De manhã, quando o sol já estiver firme, devem caminhar pelo quarteirão, todos os dias. Muito líquido. Alimentação adequada.
Nossa vida desaba. E agora, como será? Tenho o meu trabalho, tenho minha vida própria, tenho meus próprios filhos para cuidar. E lá estão nossos pais, dependendo de nós para quase tudo. E quando eles pais são pacíficos, humildes e com bom temperamento, fica mais fácil. Tudo aceitam com uma resignação que até machuca. Capitulam diante de nossa autoridade, de nossa onipotência porque agora somos nós os sabedores. Somos nós que arbitrariamente tiramos deles seus documentos e os carregamos em nossas bolsas porque eles já os esqueceram em supermercados e consultórios. Guardamos suas identidades conosco, é isso mesmo, literalmente, ou seja, aquele documento plastificado com suas fotos e assinaturas, mas o que é pior: confiscamos suas identidades próprias, sua subjetividade, esquecendo-nos de que eles ainda podem pensar, compreender e ponderar e mais, esquecendo-nos de que eles sofrem. Também confiscamos suas senhas bancárias, afinal pode ser muito perigoso e lá vamos nós assumindo suas vidas, tirando suas últimas possibilidades de exercitar a mente e usufruir de sua dignidade. Ficamos irritados com os esquecimentos, logo desabafamos com os amigos num sempre “... não sei o que fazer com meu pai e minha mãe...” Às vezes nossos idosos querem questionar, mas amedrontados, sem coragem para fazê-lo com o médico e muito menos conosco, aceitam e guardam dentro de seu coração uma certa revolta por que não foram perguntados sobre tal e tal questão. Sem ter como e com quem desabafar, o fazem com algum vizinho “... agora eles é que sabem, eles é que mandam”. Geralmente ficamos sabendo bem mais tarde, numa frase que escapa na conversa do portão da rua. Sem compreender bem o que é a velhice, na ânsia de restabelecer logo a rotina de antes, afobamos, tiramos tudo deles, dirigimos suas vidas da maneira que seja mais cômoda para nós, em função da nossa conveniência. E o que restou deles? Pessoas sem vida própria, mergulhados na apatia, com poucos direitos, como assistir novelas e com limites para tudo. Não é que sejamos maus, filhos ingratos e pessoas sem compaixão. Também nós somos pegos de surpresa. Também nós não podemos simplesmente abdicar de nossa vida, de nosso trabalho para nos dedicarmos inteiramente a eles. É um conflito terrível. Misturamos todos os sentimentos dentro de nós: culpa, compaixão, mágoa e revolta. Nos dias mais cansativos, quando o desânimo impera dentro e fora de nós, trazemos uma terrível pergunta que cala dentro de nosso coração e que não ousamos externar: “Então era isso que estava reservado para mim?” E então este filho se sentirá um monstro e seus tormentos se tornarão mais pesados ainda. Entretanto, ele sabe que ama seus velhos pais. Pois que saiba também que o que sente é apenas humano, demasiadamente humano, como diria Nietzsche, apenas produto de seu cansaço e de sua impotência diante de situações desconhecidas até então, afinal talvez essa odiosa pergunta “então era isso que estava reservado para mim?” também ecoa na mente dos idosos que, tão perplexos quanto seus filhos, estranham a vida, antes tão encantadora e agora tão má. 
            E quando nossos pais são bravos e rebeldes? Trancam sua autonomia a sete chaves. Fecham a cara, não facilitam nada. Desabam sobre nós todo o rosário de queixas e mágoas guardados a vida inteira. Enumeram cada cuidado que tiveram conosco, cobram cada ato de amor e nos culpam por sua infelicidade. E nós? Ficamos indignados. Não hesitamos em responder veementemente, armados até os dentes porque somos tão bravos e rebeldes como eles e como toda ferida mal curada, as chagas do passado voltam a se abrir. Às vezes, calamos para não piorar a situação, mas o desgaste é imenso.
Chegamos a sua casa e lá estão eles, outra vez, subindo na escadinha perigosa para pegar uma bobagem de que nem precisavam, justamente no compartimento mais alto do armário. Falamos, insistimos, ordenamos. É a mesma coisa que nada. Na semana seguinte fazem tudo outra vez. Escondem de nós suas proezas. Saem sozinhos, insistem em atravessar avenidas perigosas. Deixam o gás ligado, esquecem de levantar a tampa do fogão para fazer café, provocando acidentes. Não temos alternativas. Contratamos pessoas para ajudá-los contra sua vontade. Esses empregados que colocamos em suas casas, à sua revelia, têm a incumbência de cuidar deles, mas com a função especial e secreta de inspecioná-los na nossa ausência, verdadeiros espiões. Diante do médico, nossos pais contam sua versão da história. Até mentem. Dizem que fazem caminhadas, que tomam os medicamentos. Os médicos desconfiam deles, mas muito mais de nós, os filhos. Aí são claros: “seu pai precisa caminhar, se não fizer isso, ele não vai mais andar um dia...” e aí pensamos ... “esse médico é jovem ainda, não sabe de nada como é minha luta, quero só ver quando seus pais ficarem idosos”. Quando saímos do consultório, eles, os pais, são desafiadores, “pois sim que caminho!” Só mais tarde entendemos que a braveza era medo, era humilhação, cansaço e desilusão com a vida.
            Como se não bastasse tanta dificuldade, a velhice também pode trazer a demência, o que certamente piora a situação, pois nesse caso não há um só argumento para usar com os velhos pais. Só nos restará o exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e apavorados, consultam a folha sobre as características da demência, item por item. Reconhecem quase todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que o casal fica demente ou um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o outro se torna demente. As famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse caso, pois numerosas, lá estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de revezamento para cuidar dos pais. Nem sempre. Há que considerar que como as pessoas são humanas demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida de demência é mais um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos homens são mais raros nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre. Há filhos homens dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade do que qualquer enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um caso.
            Lidar com a demência senil é tarefa delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida. Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu. Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira exacerbado, que a convivência fica quase impossível.    
            Não nos esqueçamos dos casos em que a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque perdeu a paciência e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.     
             Evidentemente, todo esse caos familiar vai se estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando chegava quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria essa moça que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria chamá-la saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de quando essa preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha mãe, que até então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara lucidez no meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...” ao que eu me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela voltaria, mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia se esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário dizer que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe, até que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos muitas decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha tia: “onde tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com nenhuma ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam:  “mas ninguém mesmo?” outros ainda insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar mesmo ninguém?   
Não há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso que não seja o do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando nos olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo. Despendendo tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão prazer, que os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de cuidados é muito precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das feridas emocionais, do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava escondida. Ainda sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe, quando ficávamos de mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca de carinhos que nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por um segundo sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha lembrança aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos bolsos ou entre os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos em frente à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e que fizemos três dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também em seguida. Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo o período difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.          
Num dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado, tentando preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os ajudasse, o conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr. Fulano”, depois riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e já não entendemos o restante, não tem final, parece que não conseguiram concluir. Tampouco enviaram a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de expor seus medos, suas inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na época as providências para a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto eles, era o início daquela desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele bilhete com tanto amor e tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero que esse amor e essa ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso coração o tempo todo. Também olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco quando ainda éramos crianças, olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua confiança no futuro cheio de projetos.  Ainda são eles, são os nossos velhos.

A princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha, dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de todas as nossas experiências. Como já mencionado no início, nunca saberemos por que tivemos que passar por isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar por outros dramas, são mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei, podemos transformar o sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da velhice uma época em que podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos, como naquela agradável viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que o trem chegue seguro ao seu destino final e saberemos que a viagem terá valido a pena.   

O idoso e o cuidador – Uma relação de amor | Conexão Itajubá

O idoso e o cuidador – Uma relação de amor | Conexão Itajubá

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A moça do cigarro




                                                                     

            Ela mora em meu prédio. Na verdade, não sei nada sobre ela. Presumo que deva trabalhar para alguma família. É uma moça simples, com os cabelos maltratados, sem brilho. É pequena, magra. Não sei seu nome, não sei se é casada ou solteira, se tem filhos ou mesmo se tem um amor. Eu a vejo quase todas as tardes, quando desço para pegar meu carro. Desço apressada, com os braços carregados de livros. É hora de ir para a escola. Vou dando uma passada de olhos pela aula que preparei. E lá está ela. A moça. Sentada em um cantinho da garagem, tomando um pouco de sol e fumando um cigarro. Paro, fascinada por aquela cena. Já fumei, não fumo mais há muitos anos. Nem quero fumar. Nem sinto falta do cigarro. Mas, não sei por que, sinto uma atração irresistível por aquele cigarro. Deve ser pela intensidade com que ela traga a fumaça. Ou talvez porque seja no meio da tarde e o porteiro está fazendo café, ou ainda porque estabeleci regras para a minha vida, como não fumar. E ela fuma sem culpa. Às vezes coloca a mão para proteger os olhos do sol. De repente quero trocar de lugar com ela. Lembro-me das aulas, da academia de musculação, dos cartões de crédito e tudo que quero é estar ali, fumando aquele cigarro. Penso, ela não deve falar inglês, nem saber quais são as correntes históricas, nem tampouco que Isabel de Castela era uma mulher de muita astúcia. Não deve fazer imposto de renda, nem saber por quantas anda o euro. Ela apenas fuma seu cigarro ao sol, cumpre seu papel. Ali, naquele momento, eu queria estar em seu lugar. Ali, naquele momento, eu trocaria um cruzeiro pelas ilhas gregas para fumar seu cigarro e ali, naquele momento, eu também trocaria fazer amor com Richard Gere numa praia deserta para fumar seu cigarro...seu maldito cigarro...


                                                                                                         


                                                                                                          .

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Viagem do Sertão para Brasília








Isto quem conta é meu marido que viu tudo, pois estava presente. O ônibus para Brasília saiu pontualmente às nove da manhã, lotado. E olhe que a viagem demorava, o carro ia rolando e parando em cada cidade, em cada posto, debaixo de um calor insuportável, feito taturana debaixo do sol. Entre os passageiros, embarcou um homem conhecido da cidade, nem jovem, nem velho, gente de posse e importância no lugar, mas bêbado inveterado, tendo sido interditado pela família pelo motivo do álcool. O homem já entrou no ônibus carregado de cachaça por todos os poros e na pretensão de enganar o motorista e os passageiros, carregava uma garrafa de coca-cola onde misturava cachaça e refrigerante. Mal parava em pé, custou a achar o assento, cambeteando por todo o corredor do ônibus. Depois de várias tentativas, conseguiu sentar-se ao lado de uma moça um pouco gordinha que odiou ter que esbarrar nele a cada sacolejo do ônibus e ter que aturar o cheiro da cachaça e o hálito pestilento do sujeito. Nem sabia o que tinha pela frente. Pois bem, lá pelas tantas, o homem não se aguentava de dor de barriga, mas até aí ninguém sabia de nada. Foi uma verdadeira luta entre ele e os passageiros porque ele não acertava uma, caía pra cá e pra lá e assim foi até chegar ao sanitário. Agora, convenhamos nós, se sem estar bêbado, já é difícil se equilibrar no banheiro de um ônibus em movimento, imaginem o homem naquele estado. Pois não conseguiu fazer nada dentro do vaso, borrou-se todo, além de borrar o banheiro de cima a baixo. Não logrando abrir a porta, ficou gritando lá dentro, literalmente mergulhado na merda. Todos os passageiros, já sentindo o mau cheiro terrível, farejaram o perigo no ar. Um conselho de passageiros foi formado de forma rápida e instintiva, como acontece em casos de calamidade pública. Deliberaram e concluíram: se ele consegue sair de lá, estamos fritos, é melhor que lá fique. Mas como prosseguir viagem com aquele odor insuportável e depois, confabulavam entre si, é falta de caridade deixar um cristão preso num cubículo cheio de cocô fedorento. Que espécie de gente somos nós, onde está a fraternidade? Não tiveram tempo para acabar a reflexão filosófica e religiosa. O homem conseguiu abrir a porta do banheiro e lá vinha, um verdadeiro bicho raivoso, como um rato queimado que se contorce todo, e foi espirrando merda pra tudo que é lado, caindo em cima das pessoas que desataram a gritar feito loucas. Foi um desvario, um pandemônio geral. Sem a mínima condição de pensar, pelo grave estado alcoólico, o pobre coitado, por ele mesmo, não tinha ainda compreendido o que acontecera, talvez pensasse que tivesse caído num caldeirão do diabo, pois ele mesmo era insuportável a si próprio. Quem estava sentado no corredor pulou no colo de quem estava na janela e gritos, gritos e mais gritos. O motorista, apavorado, custou a parar o ônibus. O cobrador, na qualidade de autoridade competente dentro do carro, gritava, fica aí! Fica aí, sô!!! Naturalmente pensando mais nele do que na comunidade rodoviária. O homem ia pra um lado, todo mundo ia pro outro, uns por cima de outros. O ônibus quase caindo pelo peso da multidão em pânico. Até que enfim o motorista parou o carro. Os que estavam na frente saíram correndo pela porta afora, ávidos pela liberdade e os que estavam atrás do homem continuaram presos, gritando desesperadamente. E o bêbado, digamos que tomado por uma insanidade provocada pela mistura de álcool e fezes putrefatas, se debatia em convulsões, caía e se sujava mais ainda, sujando quem encontrava pela frente. Quando alguns poucos que já se encontravam do lado de fora recuperaram o juízo e o ar fresco, com coragem e resignação, entraram no ônibus e conseguiram arrastar o infeliz para fora do carro. Aí a pequena multidão se enfureceu. Quiseram linchar o homem, principalmente as mulheres que estavam totalmente histéricas, entre elas a gordinha perseguida cruelmente e que trazia grande parte da blusa outrora branca, agora amarelada pelas fezes do indivíduo. Totalmente transtornada, ela gemia, entre dentes, eu mato ele, eu mato este desgraçado. O cheiro piorava a cada instante e o homem acabou sendo salvo, não sem antes levar uns sopapos. Depois de retirada a decisão do linchamento, quase todos concordaram que era melhor deixar o bêbado entregue a sua própria sorte no acostamento da rodovia. Mas alguns, bem poucos, para dizer a verdade, ainda movidos por um pálido sentimento cristão que tentavam, com dificuldade, arrancar das profundezas da alma, questionaram os demais: quê isso, gente, tem que ter compaixão, ao que ouviram da maioria enfurecida, que compaixão o quê? Enfim, prevaleceu a lógica objetiva, perdido por um, perdido por mil, já que tinham que prosseguir viagem com o ônibus em  estado lastimável de cocô super fedorento, pelo menos até chegar a um posto, inútil deixar o bêbado sujo feito um porco na beira da estrada. Então, numa verdadeira operação de guerra, arrastaram o homem pra dentro de novo. Coitado! Arrastado pra fora, arrastado pra dentro, sempre deixando um rastro de sujeira por onde era levado. O motorista arrancou e foi a 120 por hora porque ninguém aguentava o cheiro e muitos haviam se sujado também. No posto, o ônibus teve que ser lavado por dentro e por fora. Também lavaram o homem com mangueira e sabão em pó e deixaram secando no sol. Os passageiros foram tomar banho, os que não tinham roupas extras vestiram de outros passageiros que tinham mais roupas na mala. Duas mulheres com pressão alta tiveram que tomar medicamentos, daqueles que são postos debaixo da língua e as demais tomaram calmantes distribuídos por algumas delas. Um homem passou mal do coração. A viagem atrasou quatro horas. O motorista, abalado, compartilhou com os passageiros a decisão de se aposentar, já estava velho demais para aturar desaforos assim. Enfim, todos se salvaram, inclusive o bêbado cagão que foi recebido na rodoviária de Brasília por alguns familiares e pela polícia, já avisada do ocorrido. Mas o infeliz foi liberado, uma vez que ficou comprovado tratar-se de dor de barriga descontrolada agravada pelo álcool, sem intenção de matar. Ô viagem!



quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Para Gilda Paiva





Gilda, prestenção no meu relato:

Este mesmo tio da história de Nossa Senhora Aparecida, também recebeu outra graça extraordinária que não pôde contar porque já estava à morte, mas para isso os que ainda vivem podem compartilhar. A vida inteira, ele conservou com muita piedade a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, recebendo a Santa Eucaristia toda Primeira Sexta-feira do mês. Penso que a vida toda nunca perdeu nem uma. E uma das promessas para quem tem esta devoção é receber o Sacramento da Unção dos Enfermos (antiga Extrema-Unção) antes da morte.  
Pois bem, minha prima estava muito aflita porque o tio Ieié estava mal mesmo, já quase sem vida, e o padre de Pedralva na época estava fora da cidade, ou seja, a cidade estava sem padre. E minha prima via com tristeza o fato de que ele, meu tio, iria morrer sem que se cumprisse a promessa da devoção. Pois não é que apareceu na Santa Casa de Pedralva um padre de fora que viera visitar a cidade? Quando minha prima viu aquele padre, ela pediu que ele urgentemente
visitasse meu tio e ministrasse o sacramento, o que foi feito.
O Ieié, como o chamávamos, morreu em paz, tendo sido cumprida a promessa da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Minha prima que tudo presenciou é a Maria Lúcia, que poderá confirmar.
   

Alguém aqui se casaria com o Torquato?




            Mesmo que os tempos sejam outros, até onde conheço as mulheres, sei que ainda querem se casar. Quase todas, pois isso não tem nada a ver com a realização profissional. É da essência feminina, o conto de fadas que quase todas, repito, gostariam de viver. Casar, isso mesmo, no civil, de papel passado, e na igreja, principalmente. É verdade que nem sempre por convicções religiosas e sim pelo conto de fadas mesmo, de entrar linda na igreja, vestida de noiva, ao som de uma bela música, com buquê de flores, véus, grinaldas e tudo que uma mulher tem direito. E por que não? É tão delicado, tão bonito! Bom, já o casamento do dia a dia, aquele sem véu e grinalda, com tanques de roupa para lavar, gordura na cozinha, isto lá é outra questão. Mas deixa pra lá, estamos falando de sonhos, champanhe e bolo de casamento, por enquanto.
            Geralmente, as mulheres não se preocupam muito em se casar enquanto ainda são jovens porque os jovens se sentem eternos. Um dia, lá no futuro longínquo estão certas de que o príncipe encantado chegará com sua carruagem e o sonho vai se concretizar. Só que o tempo vai passando, elas vão se dedicando à profissão, vão curtindo as baladas, e de repente vem um ligeiro pânico que se apresenta primeiramente como um pequeno desconforto que tende a aumentar conforme o tempo vai passando. E aí as exigências vão caindo, pode vir o primo do príncipe mesmo, ou o primo do primo que ainda está bom. O pior é quando nem primo, nem amigo, nem ninguém aparece. Acontece. Quando for o caso, existe a internet com seus interessantíssimos sites de relacionamento. Puro preconceito bobo de quem se nega a aderir. Muita mulher já conheceu seu príncipe por este caminho, inclusive a articulista que escreve este artigo.
            O grande problema virtual ou real das mulheres que já dobraram o cabo da boa esperança é querer de fato um príncipe dos tempos atuais, ou seja, aquele homem superperfeito: já um pouco passado, tudo bem, mas com cara e corpo de vinte anos a menos, sem barriga, malhado, com cabelos grisalhos bem tratados. Aquele homem que entenda de vinhos, que já tenha viajado pelo planeta, que fale pelo menos três línguas, que seja elegante para se vestir, para falar, para abrir a porta do carro. Um homem superseguro, que seja bem humorado sempre, todos os dias e em todos os momentos. Ah! E como é príncipe dos tempos atuais, ele não precisa vir de carruagem, mas aquele carrão importado cairia super bem. E também que tenha um ótimo emprego, um excelente salário. Enfim, um homem sem defeitos. Gente, este homem não existe.
É claro que estou exagerando para brincar, mas a situação não fica muito distante disso. Há sempre uma idealização em torno da pessoa que sonhamos ter ao nosso lado, mas a distância entre o ideal e o real é imensa. Nada como reconhecer que também não somos princesas etéreas vivendo em inatingíveis torres de marfim. Ao contrário, somos pessoas reais, com qualidades e defeitos. Só que é preciso ter lucidez para reconhecer qual é o nosso real e encarar um relacionamento. Quem sabe o príncipe vem disfarçado de sapo como nas histórias maravilhosas? É buscar mais conteúdo e essência do que aparência. Nada é garantido, mas é bem mais seguro.
Isso me fez lembrar um fato da década de 70. Uma senhora muito simpática, já mais velha, e casada com um dentista bem conceituado, o Dr.Torquato (faz de conta), estava em um salão de beleza. Enquanto relaxava com creme no rosto e compressas nos olhos, se divertia ouvindo as moças conversando nervosamente sobre possíveis pretendentes. Ela se espantou com o nível de exigência da mulherada. Era um tal de: “aquele, Deus me livre” ... “aquele outro, nem pensar”. Até que ela não se aguentou, tirou as compressas e tomou a palavra: “Olha aqui, gente, assim vocês ficarão sozinhas e bem que merecem. Abaixem o facho e aceitem um homem de carne e osso. Não queiram um homem pra exibir pra as amigas, mas um homem que seja um companheiro de verdade e construam sua felicidade. Deixe-me fazer uma pergunta: alguém aqui se casaria com o Torquato?” Silêncio geral. E ela, toda orgulhosa, disse: “Não, né? Pois eu casei”.      

             

domingo, 15 de novembro de 2015

Como fiz o conto "O Espírito de Kenichi" e muitos outros








Então gente, fomos a São Paulo, eu e minha irmã, minha eterna amiga e assessora para todos os assuntos, para eu receber o Prêmio Bunkyo de Contos. Escrevi um conto especialmente para este Concurso, nos moldes estabelecidos pelo regulamento. O conto deveria ser do gênero FANTÁSTICO, aquela coisa assim em que a gente fica matutando: "será que que isto é verdade? Quase cheguei a acreditar!", esta é a melhor fórmula para resumir o espírito do fantástico, segundo Todorov, filósofo, linguista e crítico literário. Fica entre o sobrenatural e o real. Outro requisito para o tema do Concurso do Bunkyo era que o enredo enfocasse a cultura japonesa e brasileira.

Não gosto de escrever contos visando concursos, procuro ter sempre em mente que escrever é gostoso, na verdade, é uma delícia, um grande prazer, mas não posso deixar de confessar que um concurso mexe comigo, funciona como uma espécie de desafio. Já participei de muitos, mas ganhar que é bom, foram poucos. Não importa, fazer parte dos 10 melhores é um Oscar pra mim! Meu marido, meu amor, meu amante, meu conselheiro para todos os assuntos, e que tem muito mais bom senso e muito mais juízo do que eu, sempre me diz: esquece os concursos, concentre-se no prazer da escrita. É, às vezes uma ideia vem do nada, às vezes vem do que observo, de lembranças antigas, do que alguém me conta. E às vezes simplesmente invento, como foi o caso do "O Espírito de Kenichi". Evidentemente que não invento tudo, alguma coisa já está lá dentro da gente, e a personagem narradora acaba sendo eu mesma. Saramago dizia que não existe esta bobagem de narrador, o autor que trate de assumir o que diz, e Graciliano Ramos dizia que arte é carne, é sangue, que nossas personagens são pedaços de nós. É sim, gente, é sim. 

Então, a narradora deste conto e de muitos outros sou eu mesma, sempre carrego um fardo de coisas alegres e tristes como todo mundo. O Kenichi foi um adorável japonês que inventei, mas será que inventei mesmo? Eu me baseei nos muitos imigrantes japoneses que no passado vieram para o Brasil, muitas vezes sofrendo todas as espécies de carências. Um cara bom que conviveu conosco, saindo tão misteriosamente de nossas vidas como entrou. 

Bom, como ia dizendo lá no primeiro parágrafo, lá fomos, minha irmã e eu para São Paulo. Ela, com um mapinha de como faríamos no metrô, sabe como é, aquela coisa de ir até tal estação, depois trocar de sentido, depois tal linha e tal e tal. A d o r a m o s  não ter que pagar o bilhete, afinal ter mais de 60 tem suas vantagens. Na saída da estação São Joaquim, teríamos que virar à esquerda e descer a rua. Imagine se acertamos! Que nada! Não é que fomos para a direita e tivemos que voltar! kkkkkk

Mas valeu! Os japoneses foram super amáveis, fizeram mil reverências, tal como o Kenichi de meu conto! 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Linguagem de Médico - crônica premiada pela ANABB em 2013





                                  
            Sendo uma pessoa bastante alérgica, raramente saio à rua sem um lenço, com o qual tento me proteger do vento, poeira e outras intempéries. Pois bem, resolvi procurar um médico famoso em busca de um tratamento eficaz. Ao entrar em seu consultório ricamente mobiliado, fiquei admirada com tantos diplomas, certificados, prêmios e títulos. Após as devidas apresentações e narração da minha condição de alérgica, disse-me ele:
- Com base em todo o seu relato, não há dúvidas, a senhora sofre de um edema de Quincke.
Assustada, perguntei:
- O que é isso?
- É simplesmente uma reação de seu organismo a um alérgeno.
- Isso é grave? Perguntei eu, ao que ele respondeu:
- Bem, isso pode provocar uma taquipnéia ou uma hipobaropatia e às vezes, levar a uma ambliopia e até mesmo a uma dispnéia paroxística. Estudando todo o relato de sua anamnese, penso que a senhora precisa de um agente terapêutico que iniba suas reações alérgicas, talvez uma droga anti-histamínica. Evite aspirar poeira carregada de asbesto para não agravar seu estado com uma pneumoconiose. Saiba que a assepsia é fundamental. Não pretendo lhe receitar um tratamento paliativo porque é preciso erradicar a causa de sua enfermidade. O melhor mesmo são medidas profiláticas que podem lhe proporcionar uma melhor condição física. Entretanto, é necessário que a senhora leve em consideração que já está caminhando para a senilidade e aceitar certas limitações, tendo em vista que já não é nenhuma jovem de vinte anos. Em casa, procure se manter em posição decúbito supino que facilitará uma melhor circulação cerebral e cardíaca.
Assim que consegui uma brecha, tentei descrever um sintoma:
- Doutor, depois de pegar um vento, às vezes sinto uma vertigem. Será que é da alergia? E ele:
- Essas sensações subjetivas ou objetivas de movimento do corpo em sentido giratório ou de movimento de desequilíbrio são absolutamente normais no seu quadro clínico. Para o momento, vou lhe receitar um acetilsalicílico que certamente vai amenizar sua condição respiratória, mas é preciso cautela no uso, porque essas drogas saliciladas constituem ciladas para o paciente, pois, se o livram da sensação alérgica, o empurram para uma dependência física. Use e abuse de balneoterapia que tem se mostrado muito eficaz no combate aos diversos alérgenos. Vou lhe preparar a receita.

O médico virou-se para o computador de última geração e desatou a digitar minha receita. Ao preparar o papel, a impressora deu pau e ele, um tanto desapontado me explicou que, às vezes, a máquina ingeria uma quantidade excessiva de papel o que ocasionava uma obstrução das vias impressoras. Levantei-me irritada e saí do consultório, sem que ele percebesse minha ausência. No caminho, passei em casa de D. Ditinha, amiga de minha mãe, que me arrumou um punhado de raízes de chicória velha, cardo santo e hortelã. Fiz um chá, embrulhei-me em uma manta quentinha e dormi profundamente, sem chiado no peito e nariz entupido.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Cachaça: Orgulho e Preconceito




           
      Há muitos anos atrás, passando pelo litoral paraibano, paramos em um bar e perguntamos ao senhor que nos atendeu se teria alguma cachaça. Qual não foi a nossa surpresa quando ele nos trouxe, com muito orgulho, em bandeja com guardanapo, a cachaça em um cálice liso, de boca larga, acompanhada por uma azeitona que mergulhava satisfeita na bebida. Décadas depois, aqui em Itajubá, Minas Gerais, estado que produz cachaça em quase todos os seus municípios, procuramos a aguardente no cardápio de certo restaurante e não a encontramos, porém lá constavam uísque, rum, vodka e outros produtos estrangeiros. Insistimos na cachaça que nos foi servida quase escondida, como se fosse uma bebida indecorosa e proibida. Após algumas indagações, ouvimos dos proprietários que cachaça é bebida de boteco e não de restaurante sério. Eles apenas expressaram o que culturalmente já estava solidificado, repetindo um discurso histórico que tomam como seu e como certo, no entanto, isso vem pela história, pela memória, são palavras que tiveram seu significado num passado tão distante e tão antigo quanto a própria cachaça. O preconceito foi gerado pelo fato da bebida ter sido muito consumida pelos escravos nos engenhos, ao contrário dos finos licores servidos em ricas residências. Felizmente, chegamos ao tempo da criatividade que implica romper com as regras ideológicas e abrir novas possibilidades ao diferente e ao que é nosso.
A cachaça ocupa um lugar de capital importância em nossa história, pois se tornou um símbolo de resistência, tendo sido, talvez, segundo estudos, o primeiro movimento de união nacional contra o domínio português, pelo aumento abusivo do imposto sobre a caninha naquela época, episódio que foi chamado de “Revolta da cachaça”.
E não é que essa purinha, pinga, aguardente, caninha ou cachaça é um produto genuinamente brasileiro e deveria ser nosso orgulho nacional? A duras penas, a cachaça tem se mostrado vitoriosa em uma batalha desigual de séculos, porque lutar contra a elite não é para qualquer um não. Confinada nas senzalas e proibida pela Corte de sair na companhia do vinho do Porto, corajosa e destemida, ela não se vergou. Ficou, sim, do lado de fora dos elegantes salões de baile, assistindo, modesta e digna, ao desfile de licores, conhaques e uísques que eram acolhidos como convidados de honra, enquanto ela, filha legítima, ajudava os escravos a suportar a água gelada dos rios mineiros para procurar o ouro, sob a mira das espingardas dos capatazes.
Mas a história muda. Após séculos de discriminação, a valente cachaça tem conseguido derrubar o preconceito e conquistar seu merecido lugar na sociedade que não mais a tem visto como uma bebida bagaceira, mas uma sofisticada e nobre destilada, filha da terra. A cada dia, o mercado da cachaça cresce e já é moda curtir a pinga, defendida por artistas e intelectuais do país que a louvam em músicas e poesias. Imagine, até já foi tema da Imperatriz Leopoldinense. Resta ainda convencer alguns poucos arraigados preconceituosos para que abram as portas de seus restaurantes e assumam com orgulho aquilo que é bom e é do nosso Brasil. Viva a cachaça!     







terça-feira, 10 de novembro de 2015

A piscina do Zé Hilton



     Moramos em Pedralva mais ou menos até 1960 na casa onde mais tarde morou o sobrinho de meu pai, o Zé Hilton e família. Ali tivemos nossa primeira visão de mundo, de frente para o Grupo Escolar Coronel Gaspar, perto de amigos e parentes. Depois nos mudamos para a casa que mais tarde foi do Juarez, lá pertinho da Vovó Mulata, onde nós ficamos por pouco mais de três anos, vindo depois para Itajubá.
Éramos tão crianças que nem ficamos sabendo que o Zé Hilton havia construído uma piscina no quintal onde anteriormente brincávamos com os cães perdigueiros do papai. Aí a mamãe, boa costureira que sempre foi, fez uns shorts grandes para duas pequenas que éramos, eu e minha irmã. E um belo dia nos enfiou naqueles shorts e nos mandou para a nossa antiga casa. Fomos sem saber de nada. Lá, o Zé Hilton e a Mainha já nos esperavam e nos receberam na maior gentileza.Passearam conosco pela “nossa” casa e nos levaram ao quintal onde, surpresas, nos deparamos com uma piscina. Na verdade eu nunca tinha visto nem uma e fiquei encantada. Logo eles trouxeram umas boias onde nos colocaram para flutuar naquela imensidão de água. A piscina era bem pequena, só que para as crianças o mundo é sempre grande. 
Nós, entre nervosas e alegres, curtimos pra valer. Foi a perdição. Mal sabiam o Zé Hilton e Mainha que daí por diante seu quintal e sua piscina seriam invadidos quase que diariamente por nós e outros primos que fizemos de sua piscina nosso parque de diversões. Simplesmente não saíamos de lá para tristeza da mamãe que ficava constrangida diante dos bondosos primos pela nossa amolação de criança. O Zé Hilton e Mainha tiveram a maior paciência e foram de grande generosidade conosco e com todos, sempre abrindo o portão onde batíamos um tanto sem graça, quase todas as tardes durante muito tempo. Hoje fico pasma ao me lembrar de como foram tão generosos e compreensivos, pois evidente que amolávamos, mas eles nunca demonstraram qualquer contrariedade. Diante disso, costumávamos contestar a mamãe com o argumento de que eles até gostavam quando íamos lá! Imaginem!
Nos finais de semana a piscina era um verdadeiro “point” onde os jovens, mais velhos que nós crianças, se encontravam. Lembro-me dos maiôs antigos, dos risos, das tardes de céu azul, da água que espirrava nos olhos, do sol que queimava gostoso sem nunca fazer mal e do tempo que não passava, ou passava lento demais nos permitindo uma felicidade incrivelmente duradoura. Gosto do Saramago que diz que “naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos ...”
A piscina do Zé Hilton foi a pérola de minha infância. Jamais poderei esquecer os momentos de grande alegria que passei lá. Aprendi a nadar ali naquele pedacinho de água e também meus irmãos. Meu pai, vendo que não abríamos mão de ir à piscina, concordou que fizéssemos uma em nosso próprio quintal, para alívio de minha mãe. Demos início de imediato ao projeto, nós e nossos primos, cavando sofregamente um buraco. Mas neste tempo, chegou a notícia de que teríamos que mudar de cidade pela transferência de posto de meu pai. E ficamos a ver navios, ou melhor, piscinas e bem de longe. Asseguro que de todas do mundo, nenhuma outra teve água mais gostosa do que a de minha infância.

Nunca mais fui àquela piscina, é claro. Sei que hoje já nem existe, mas na minha vívida memória ela está intacta. Há pouco tive a oportunidade de ver fotos cedidas gentilmente pela Heloise, filha do Zé Hilton. Marejei os olhos de lágrimas e atravessei o tempo, me enrosquei entre as pessoas no preto e branco daquelas fotos e me senti inundada de alegria e gratidão. Fica minha homenagem e meu agradecimento ao Zé Hilton por ter contribuído para minha felicidade de pequena. No fundo, no fundo, não passamos de crianças que apenas cresceram.  

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Santo Antonio

                                                                                                      
Fomos eu e minha irmã fazer uma novena, novena não, trezena para Santo Antonio. Na verdade, eu fui apenas fazer companhia para minha irmã que sofria porque o namorado estava doente e ela pedia a Santo Antonio que o curasse. Foi uma santa aventura. Subíamos uma ladeira para pegar a chave da igrejinha, conversávamos com a senhora que tomava conta da chave, descíamos. Era meio estranho abrir a porta da igreja como se fosse uma casa, como a gente faz quando abre a porta da própria casa. Era como se abríssemos a porta da casa de Santo Antonio ou a porta do Céu. E lá estava ele, representado naquela imagem imensa.
Antes de começar a rezar eu dizia assim para minha irmã, feche os olhos e tenta pensar assim: se Santo Antonio ainda fosse vivo e se a gente soubesse que ele já tinha a fama de ser santo, amigo particular e íntimo de Deus, que gostava de rezar pelas pessoas, nós iríamos procurar por ele para que nos ajudasse, não é? Assim, pessoalmente, entende? Pediríamos que fizesse uma oração por nós porque tínhamos necessidade de graças. Iríamos até sua casa, ele nos receberia, perguntaria o que nos trazia e diríamos, assim como quem conta uma aflição a um amigo. Aí, ele decerto coçaria a cabeça e pensaria “é cada uma” ... e diria, “vamos falar com Deus” ... Assim, imaginando que o santo em pessoa nos ouvia, ficava mais fácil pedir e acreditar que ele nos atenderia.  
Assim fizemos por treze semanas. Lá pelo fim da trezena, a igreja ou a “casa de Santo Antonio” já era “nossa casa”, ou dizendo de outro modo, nos sentíamos em casa. Foi aí que eu tive a idéia de aproveitar a trezena de minha irmã para fazer um pedido extra ao santo. Desanimada de acertar um namorado bom, arrisquei pedir a ajuda do Céu. de minha irmã. Mas Eu disse, “olha aqui, Santo Antonio, eu não estou querendo nada, mas ... mas, se o senhor não estiver muito ocupado e se na lista de pedidos de graças ainda couber mais um neste mês, eu gostaria de pedir um namorado. Para dizer a verdade, um marido porque já não sou tão nova para ficar namorando. Mas, olha aqui, eu estou com muita vontade de conhecer um homem bom, muito bom mesmo, viúvo, não me pergunte por que, porque eu não sei, que seja de bem com a vida, que tenha as mãos grossas de trabalhar (não tenho a menor idéia por que mencionei este detalhe, saiu, simplesmente), que trabalhe com madeira ou tijolos, sei lá, o senhor entende o que estou querendo dizer, não é? Um homem digno, que goste de mim e me valorize, que assobie “Granada” enquanto trabalha, pode ser outra música também. Se puder, tudo bem, fico feliz. Se não puder, tudo bem também, fica o dito pelo não dito, até porque a trezena não é minha, mas quem sabe?”
Minha irmã que sempre rezava enxugando as lágrimas, surpreendida com o meu pedido, não conseguiu conter o riso. Nunca vi nada mais bonito do que lágrimas misturadas ao riso. 
Alguns meses depois, conheci meu marido. Ele veio do jeitinho que eu pedi a Santo Antonio. Para dizer a verdade, Santo Antonio exagerou. Acho que ele gravou mais o detalhe das “mãos grossas” que eu mencionei. Para os desavisados, alerto: cuidado com o que pedem a Santo Antonio, ele leva tudo ao pé da letra. As mãos não precisavam ser tão grossas assim, mas valeu!
Ah, quanto a minha irmã, também foi atendida.
Santo Antonio, rogai por nós!.        





domingo, 8 de novembro de 2015

Deus proverá


 


Minha mãe e meu tio pegaram o trem para ir para casa, lá em 1940 e alguma coisa. Cada qual encerrado em seu silêncio pensando na vida. Aí, antes que o trem partisse, entrou um homem vendendo cocadas, olha a cocadaaaaaaa, branquinha, quase quente ainda. Meu tio, moço novo, olhou para minha mãe com aquele ar de quem queria o doce. Ela comprou para ele e para ela também. Tem coisa mais gostosa? Mas eis que entra outro homem, alto, magro, com barba por fazer, com mãos sujas e pede uma esmola pelo amor de Deus. Minha mãe tira a bolsa, abre a carteira e entrega os últimos réis que possuía, como negar? Nessa altura, meu tio saboreava sua cocada sem pensar nas carências. Era moço, distraído com a vida.

Mais para a frente, já durante a viagem, ele diz para a minha mãe, você guardou dinheiro para pagar uma carroça para levar as malas, né? Minha mãe respondeu, não, dei os últimos réizinhos que tinha para esse homem que pediu. Meu tio ficou bravo, não compreendia como é que minha mãe pôde entregar o resto do dinheiro que tinham. Moravam longe da estação ferroviária, eram três malas pesadas e ele é que não carregava porque tinha um pouco de vergonha, era moço, bonito e vaidoso. Minha mãe disse, ora gente, o que é que eu podia fazer? Você quis o doce, eu ia negar pra você? Eu não contava com esse pobre homem que precisava também da esmola. Como é que eu ia negar se eu tinha? Eu ia dizer pra ele não tinha? Ora gente, eu tinha! Meu tio já estava enfurecido. Minha mãe só disse, Deus proverá, ao que meu tio ironizou, quero ver se Deus vai carregar as malas pra nós. Passaram o resto da viagem no mais completo silêncio. Meu tio, de cara feia e minha mãe pedindo a Deus que ajudasse, não para as malas que isso ela dava um jeito, mas para a fé do Paulo que era pouca.

Quando chegaram, antes mesmo que saíssem do trem, já tinham visto a namoradinha do meu tio que acenava na maior alegria, aparecendo de surpresa. Ele, arrasado, disse para minha mãe, e agora, ela vai ver que não temos dinheiro nem para pagar uma carroça, viu o que você fez? Minha mãe deu de ombros e saíram do trem. Depois de abraçá-los a mocinha disse, meu tio me trouxe de carro, onde estão as malas? Minha mãe sorriu ao ver aquele carro novinho, reluzente, último modelo da época. Acomodaram a bagagem no porta-malas. Antes de entrar no carro, minha mãe, disfarçadamente, acariciou a lataria, falando entre dentes, Deus, o senhor caprichou demais, não precisava tanto! Quanta gentileza e delicadeza de Sua Majestade! Já dentro do carro, ela disse baixinho para meu tio, Deus proverá ou não proverá? Homem de pouca fé! Ele fingiu que não ouviu e foi dar atenção para a namorada.  

Cinquenta anos mais tarde, acompanhei minha mãe à missa e na hora da consagração quando o povo diz, Senhor, eu creio, mas aumentai a minha fé, ouvi minha mãe dizendo quase em alto tom, Senhor, eu creio, mas aumentai a fé do Paulo!


 


sábado, 7 de novembro de 2015

Adorável Caramelo


 

 

 
É o nome dele. Não sei quem escolheu, mas não poderia ter escolhido nome mais apropriado, seja pela cor, seja pela doçura. Uma graça de cãozinho! Impossível não se apaixonar e não se emocionar com a personalidade incrível deste charmoso vira-lata! Todos na redondeza o conhecem. Foi crescendo solto na vida, aprendendo a se virar de todo o jeito, mas com um notável senso de humor. Sem dúvida que os animais têm muito que ensinar aos humanos, é coisa que podemos perceber mais nos cães e gatos porque estão mais próximos de nós. Se observássemos com mais atenção seu comportamento, certamente aprenderíamos muito da vida!

Entretanto, há cães e cães. Há os estressados, os aflitos e nervosos. Estes infelizmente aprenderam e captaram “ipsis littteris” as emoções negativas de seus donos, de tanto que amam os angustiados humanos. Que dó! E não é raro ouvir de pessoas que deixam de viajar para não fazer sofrer seus adoráveis animais, pois cães e donos padecem da mais dolorosa angústia de separação. Até minha irmã sai de casa meio abatida por não conseguir encarar os olhos de seu Bichinho. Este é o nome do seu gato, um bichano que faz tudo o que mostram no youtube, até abrir a torneira do lavatório para ficar tomando água. Sabe abrir, mas não sabe fechar. Um amor!

Bom, voltando aos cães, mais especificamente ao Caramelo. Caramelo é assim, bonitinho, doce, mas é esperto, não se apega! Educadíssimo, cumprimenta a todos, abanando o rabinho ou com meigos latidos. Depois volta para seu canto, onde brinca de perseguir sua sombra ou simplesmente toma conta de um pedacinho de pau, como se aquilo fosse um tesouro! É seu, ninguém tasca!. Caramelo nunca vai atrás de ninguém, puxando o saco de quem lhe dá atenção. Ele é o dono do mundo!

Destemido, briga com os maiores sem nenhum problema. Leva safanão, mordidas, sai ganindo, e logo já está refeito, como se nada tivesse acontecido. Não fica ruminando mágoa. Deve ser por isso que conquista tanta gente. Não importa se vai perder a briga, enfrenta. O importante é lutar e nem sempre vencer. O Caramelo dorme num bar, cujo dono se enamorou do cachorrinho, servindo-lhe até uma comidinha de café da manhã. Caramelo já sabe de sua rotina, conhece a casa que o acolhe, embora às vezes, errante e livre, ele durma por aí.

De manhã, ele sai e transita por vários pontos. Minha prima fez amizade com ele e se encantou. Queria levar o Caramelo para sua casa, talvez ele pudesse ensinar seu jeito desapegado de ser para dois cães angustiados que moram lá. Depois ela desistiu, ficou com pena, vai que o Caramelo perde sua independência ... Ela sai do serviço e já compra um salgadinho para o cãozinho. Interesseiro, Caramelo já sabe, vai com ela até à lanchonete. Às vezes tem que brigar com outros cães que tentam tirar uma casquinha. Dá gosto de ver o cãozinho não abrir mão do que é dele.

Minha homenagem a este cãozinho encantador, que me ensina a ser menos estressada, mais despojada, menos dependente de elogios, mais errante e livre como ele. Adorável Caramelo, meu tipo inesquecível!