quinta-feira, 31 de março de 2016

A batalha das células beta





Tudo ia muito bem com a produção de insulina, principal fonte do reino de Pâncreas. A rainha estava exuberante. Nunca o rendimento chegara naquele patamar. As células beta mostravam uma performance imbatível. Cheias de energia e força sanguínea, faziam inveja a quaisquer outras células do reino. Era saúde pra dar e vender, trabalhando incansavelmente, sempre felizes e excitadas. Pareciam as "As alegres comadres de Windsor" ou ainda abelhas operárias de uma colmeia zoando freneticamente. Nada como trabalhadores contentes para que um reino cresça e se desenvolva em toda a sua extensão. Entretanto, para que essa harmonia seja possível, os reis e as rainhas também devem estar felizes e radiantes porque esses trabalhadores incansáveis serão sempre o reflexo do comando do reino, fiéis e sujeitos ao estado de espírito de seus monarcas. 
Bem, como a vida não é feita somente de vigor e alegria, chegou o dia em que a rainha foi surpreendida com uma notícia que abalou os alicerces de sua alma. O rei estava apaixonado por uma jovem camponesa de outro reino. A rainha sentiu-se humilhada e traída. Então é assim? Eu, rainha, ajudo o rei a construir o reinado, vivemos e envelhecemos juntos e depois ele se apaixona assim tão fácil por uma moça infinitamente mais jovem? A princípio, a rainha foi tomada por uma ira incontrolável, desabou impropérios para cima do rei e mais tarde foi invadida por uma amargura e tristeza tão profundas que em poucos dias ela parecia outra pessoa. O rei não se importou. Perdera a cabeça pela jovem e mandou o reino para as cucuias. Diante do espelho, a rainha, inconformada, se perguntava por onde andava aquela soberana feliz e cheia de força de outrora. Naquele dia, reino e rainha ruíram.
As células beta, as fiéis escudeiras e trabalhadoras do reino, como tinham suas vidas atreladas à da rainha, vivendo em sua função, começaram a sentir que suas forças minavam. À medida que a rainha se entristecia e se amargurava, ainda abalada pelo trauma da rejeição, as células beta trabalhavam menos, limitadas e impotentes.
Desde que o reino é reino, malfeitores e bandidos rondam incansavelmente as muralhas do castelo sempre procurando uma maneira de entrar, saquear e destruir o que os fiéis súditos constroem. Pois bem. Não tardou que malvados oportunistas aparecessem. O rei, mais lá no outro reino do que no seu, não estava nem aí. Era para ser um segredo de Estado ou de alcova, mas novamente, desde que o reino é reino, todos os segredos acabam vazando e logo a notícia do abandono do rei estava na boca do povo. Foi aí que apareceu um bandido estrangeiro que estava de olho naquele reino. Era o terrível Cocsaquie, um desertor cossaco, bárbaro e virulento que, imbuído dos mais terríveis sentimentos e pensamentos, só pensava em se apoderar do reino para fazer dele apenas mais uma conquista, sem nenhum interesse em seu desenvolvimento e bem estar do povo. No início, ele enfrentou uma pequena resistência por parte das células beta, agentes produtoras da insulina, matéria prima de primeira ordem do reino, mas logo conseguiu submetê-las, afastando-as da fábrica e mantendo-as prisioneiras num calabouço frio e impenetrável. Não demorou muito para que todas fossem executadas e destruídas. As células beta, antes belas e vigorosas produtoras de insulina, agora não passavam de corpos estranhos e irreconhecíveis.
A consequência disso é que a rainha teve seu reino metabólico totalmente prejudicado, numa disfunção sem precedentes. Sem as células beta e com a paralisação da insulina, tanto a rainha como os seus súditos ficaram fracos e doentes. Foi uma moléstia geral, quase uma pandemia. Os mais jovens foram os mais atingidos, tiveram seus olhos, rins, nervos e coração afetados. Imperou no reino uma fome e sede nunca vistas, todos os órgãos componentes ficaram fracos, nervosos, perderam peso e foram acometidos por náuseas e vômitos violentos. os mais velhos abandonaram a terra, indo para outros plagas. Dizem que o bárbaro e virulento Cocsaquie gostou tanto daquele reino que decidiu permanecer lá para sempre. E a rainha, bem, a rainha sobreviveu, conseguiu fugir para longe, onde, enfraquecida sem as fiéis células beta, foi mantida viva por injeções diárias de insulina artificial. Mas uma coisa é certa: jamais perdoou o rei traidor.     

terça-feira, 29 de março de 2016

Amiga






  
Amigona. Dessas de uma vida inteira. A Sandra era assim mesmo, curiosíssima, gostava de pormenores, ai! que aflição de ser interrompida tantas vezes naquilo que estava discursando superempolgada e lá vinha a Sandra, peraí, Misa, será que essa moça que você está falando não é uma que tem um irmão que uma vez nós fomos viajar e  ele estava com um amigo, aí quem interrompia era eu, não, Sandra, ela não tem irmãos, tentava retomar a marcha, ela continuava, mas...  não desistia. Ou então, quando ela é quem estava contando um fato e eu escutando, aí ela dizia assim, o fulano, você sabe quem é, não sabe? E eu, não, não conheço, mas continua, vai e ela, sabe sim, Misa, olha, você conhece a Célia (faz de conta que é Célia), não conhece? E eu, A Célia, a do bazar?  Ela sorria feliz porque conseguia que eu conhecesse, sim, ela mesma. Bom, ela, eu de fato conhecia. Pois então, a irmã da Célia, a Gertrudes, é casada com um irmão do fulano... (o protagonista da história que ela estava contando).  Aí já era demais. Sandra, eu só conheço a Célia do bazar. A Gertrudes, o irmão, o cunhado e a avó eu não conheço. Que delícia!
Fizemos muitas viagens juntas, que saudades! Subimos e descemos a rua do castelo em Edimburgo inúmeras vezes (que chique!), atravessamos os parques, fizemos compras. Ela me dizia, Misa, é lã pura, olha só! E aí peguei a mania de sempre ler as etiquetas de roupas, de lã ou de outras fibras. Quando vou comprar qualquer peça, nunca me esqueço de ler a etiqueta, aprendi com ela. Naquela azáfama sempre parávamos para o café da tarde, essa expressão ficou sagrada para nós, sempre teria que haver uma parada para o lanche, um café preto com um pedaço de torta. Compartilhávamos o café da tarde e nossa amizade com conversas intermináveis sobre tudo. Ela, evangélica e eu, católica, sempre tendo Jesus em nossos corações. Em nossas viagens, nunca fomos de aproveitar a noite, de boates, de baladas nem de grandes aprontações, nossas aventuras cheias de simplicidade e alegria eram durante o dia. Lembro-me de certa vez, quando fomos conhecer Porto Seguro. Na primeira manhã que fomos à praia, com todo o grupo animadíssimo para tomar sol, caipirinha e dançar lambada, perguntamos ao guia, Jorge (faz de conta), qual a praia mais quente daqui, a mais cheia de gente, de música e lambada? Ele, todo satisfeito nos indicou. Esperamos que todos partissem para a tal praia e tomamos a direção contrária, ou seja, a da praia mais tranquila, onde pudéssemos conversar, rir, aproveitar o sol, ler, correr, tomar uma cervejinha sim, porque ninguém é de ferro, mas sem aquele frenesi todo do turista que quer conhecer, aproveitar e provar de tudo. Ainda rimos muito quando nos lembramos de três homens que faziam parte de nosso grupo e que, segundo a Sandra, não viram nada da viagem porque já no avião começaram a beber e não pararam até o último dia. Raramente conseguiam chegar a algum lugar, sempre trocando as pernas e falando com dificuldade. Que bobeira!  
A Sandra era a rainha dos “ice”. Adorava acrescentar um ice em tudo. Por exemplo, de minha prima que era um pouco devagar para carregar malas, a Sandra dizia, a Musa parecia uma rainha, ficava naquela reizice toda, só venha a mim, dando ênfase no iiice. E de mim, que sempre fui meio refratária a novos integrantes de uma conversa, a Sandra dizia, a Misa, então, é de uma matice (matice significando “do mato”) sem fim, sempre encompridando o ice para cima.
Amiga querida, sempre presente nos momentos alegres e nos tristes, como no frio de dois junhos, quando tivemos que velar meu pai e depois minha mãe no meio de lágrimas e da maior friice. Sempre a Sandra, meu tipo inesquecível. Que saudades da Sandra!  



sexta-feira, 25 de março de 2016

Delicadezas de Deus






Quando minha mãe ficou grávida do sexto filho, foi a maior festa! Por quê? Porque ela tinha certeza de que a fábrica já havia fechado, palavras dela. Fernando já estava grandinho. Nós, as duas primeiras filhas, acompanhamos aquela espera com ansiedade. Éramos as duas mais velhas, depois mais três irmãos homens. Aí, disse a mamãe que rezou assim pra Deus: Deus, o que vier tá bom, o Senhor sabe que fico feliz de qualquer maneira, mas ... mas ... eu gostaria muito de ter uma menina porque já estou com saudade de ter menina, veja bem, foram as duas mais velhas, depois três meninos em seguida. Então, já que escapou mais este filho, uma menininha, pode ser? Tem outra coisa, é um segundo pedido, as duas mais velhas são loiras de olhos azuis e eu tenho muita vontade de ter uma menina moreninha, de olhos castanhos assim como o menino mais velho e o mais novo (o do meio também era loiríssimo de olho azul), para ficar meio a meio, entende?Amém.
Quando a mamãe fez a oração já estava grávida de aparecer a barriga, então se fosse menino ou menina, já estava lá, não é? Mas, como dizem que pra Deus o tempo é um só, não importa se passado, presente ou futuro, Deus mandou uma menina e moreníssima, bem diferente de nós duas mais velhas, do jeito exato que ela pediu.
No dia do nascimento de minha irmã aconteceu um fato que não esqueço: estávamos na escadaria da igreja, nós os outros filhos e meu pai que recebia os cumprimentos de um colega de trabalho. Então veio chegando, de mansinho, numa delicadeza que só um pintor impressionista conseguiria registrar, uma chuva em camadas, quero dizer, eu sabia que a chuva iria chegar até nós, dessas finíssimas desde lá da montanha até a igreja. Eu usava um sapatinho branco que adorava. Era abertinho nas pontas e no calcanhar, Chanel, como se diz, tinha um botãozinho branco do lado. Ficou registrado.    
Muitos anos mais tarde, lá veio minha mãe pedindo a Deus mais coisas. Pediu que suas três noras se chamassem “Maria, Ana e Isabel” e não é que teve duas “Anas Marias” e uma “Ana Isabel”? Pois é, essa era minha mãe. E Deus, bem, para compensar muitas outras tristezas que ela teve, encomendou essas delicadezas para ela. Acertadíssimo, justíssimo, ela merecia.   




terça-feira, 22 de março de 2016

Identidade






O moço, mais homem feito do que propriamente rapaz, pegou a fila que já ia de bom tamanho. Pigarreou de nervoso puro, não estava acostumado com tanta gente, já há tanto tempo recluso por causa de uma depressão seríssima. Abaixou a cabeça para não enfrentar os olhares, passou a mão pelos cabelos, apertou os lábios, passou a língua pelos dentes, tentando encontrar um pouco de saliva para aliviar a secura da boca. O senhor pegou senha? Tem que pegar senha ali atrás. A frase caiu como uma pedrada. Percebeu que era com ele. Fez apenas um gesto com a cabeça como quem agradece e voltou lá para o último lugar. Sentiu-se envergonhado como se todos olhassem para ele. Que nada! Já estava esquecido no meio da multidão, do vai e vem de gente que entrava e saía da delegacia.
Era a fila da identidade e como toda a fila, as conversas eram o jeito para passar o tempo. Duas mulheres trocavam receitas, um casal falava baixinho, trocando beijinhos sensuais atrás das orelhas, e uma senhora gorda se abanava, reclamando do calor, da burocracia e dos preços das coisas. O moço olhava para baixo, com saudade do silêncio de seu quarto, mas resgatar a identidade era preciso. Mais adiante todos desviavam de um cachorro de rua que dormia placidamente no meio do caminho da fila, enrodilhado em volta de si mesmo, como se estivesse em cama de rei, alheio a tudo e a todos. O moço sorriu timidamente para a vida, a figura do cachorro deu-lhe coragem. Ameaçou levantar os olhos, assim, de leve. Ouviu-se uma discussão lá dentro da sala. Todos levantaram os olhos, ávidos por uma novidade. Saiu uma mulher pisando duro, esse povo pensa que a gente tem o dia todo, preciso trabalhar, isso sim! Logo, um dava a informação para outro, ela esqueceu a certidão.
Agora faltava pouco tempo. Seis pessoas antes dele. Observou um homem de terno, andando elegantemente com as mãos nos bolsos e distribuindo cumprimentos e sorrisos para todos. O moço lembrou-se da identidade que destruíra quando ficou doente. Nem pretendia fazer outra, nunca mais, mas a vida surpreende, acordou um dia querendo viver de novo, com vontade de trabalhar. Em quê? Qualquer coisa, tanto fazia. A funcionária chamou, senha 34, ele chegou inseguro, esperou a indicação para se sentar. Muito bem, seu João Antonio, agora é só esperar ficar pronto. O senhor pode procurar dentro de 2 dias. Tenha um bom dia!

Nunca foi tão fácil e tão difícil. O moço levantou-se prontamente e saiu, apertando os olhos para ver melhor o infinito do céu azul. Acabara de dar o primeiro passo para resgatar sua identidade. O cachorro continuava dormindo o sono dos justos.  

domingo, 20 de março de 2016

Política: o sonho desfeito



             
Não entendendo absolutamente nada de política, ouso dar meus pitacos sem entrar em detalhes sórdidos sobre os últimos acontecimentos que preocupam e abalam o país. Mas mesmo sem entender de política, posso perguntar: o que eu quero como cidadã? O que todos querem, ou seja, um país governado por pessoas de bem, por políticos corretos e honestos, que lutem pela prosperidade do país, por oportunidades para todos, acesso à saúde, educação, ver os altos impostos que pago serem aplicados corretamente e blá blá blá. Por que isso soa tão irreal? Tão distante como um sonho impossível? Não deveria ser assim. Tudo o que sei é que o país foi saqueado, pilhado, não me importa se por quem veio antes ou depois, pois para mim são todos farinha do mesmo saco, e todos os corruptos, A, B, Z deveriam ser punidos.
E fico me perguntando por que esses políticos querem tanto dinheiro. O que já recebem pelos nobres serviços é tanto, mas tanto, sem incluir as vantagens com moradia, passagens, gasolina, assessores, assessores de assessores, empregados e sabe-se lá mais o que. O que me espanta é a ganância. Esfolaram o gigante sem dó nem piedade. Todas as vezes que penso na política, vem o Brasil a minha mente como a imagem de um elefante com bandos de facínoras que lhe arrancam as presas de marfim enquanto o animal, ainda vivo, urra de dor. Depois sobem em cima de seu corpo e erguem com orgulho a bandeira da perversidade, sem nenhum pejo. É assim que vejo os políticos de meu país. Depois de vender o produto de seu crime, vão guardar o dinheiro lá nos paraísos fiscais e fazem tantas falcatruas, tanto e tanto que acabam por acreditar que isto é normal. Não é assim mesmo que funciona? Uma mentira repetida muitas vezes não se torna verdade para quem mente? E babas e babas de dinheiro. E não há o que chegue.
Bem, pergunto de novo: por que um país feito de políticos corretos e honestos soa tão irreal, tão distante como um sonho impossível? Porque a política, tal qual o futebol é uma arte, e arte é beleza, mas transformaram essas belas artes em comércio. Bismarck dizia que “a política não é uma ciência exata como imaginam muitos dos senhores professores, mas uma arte”. Há muito que nos faltam líderes, quero dizer, líderes de verdade, não estes políticos que aí estão. Por que não os encontramos mais? Porque um líder é agraciado com o dom de ser líder, ele nasce líder, afinal todos nós nascemos com dons. E líderes políticos em nosso país são uma raça em extinção. O verdadeiro estadista no passado descobria que era um líder porque aprendeu a cultivar um sonho e um ideal. Se hoje nos faltam líderes, de fato, é porque matamos os sonhos e os ideais, coisas que são muito mais, infinitamente mais valiosas do que as malas de dinheiro e contas nos paraísos fiscais. O último líder nato que um dia trouxe em seu peito sonhos e ideais parece também ter sido seduzido e corrompido. Diz a Bíblia que se não multiplicarmos os dons que de graça recebemos, eles nos serão tirados. Também é costume dizer que todos têm o seu preço, e em nosso país, o preço é alto.
Bem, comparam a paixão do povo pelo futebol com a paixão pelos partidos políticos. É. Paixão é paixão. E paixão é perigosa porque cega as pessoas, destrói tudo, destrói as relações de amizade, de família, faz as pessoas alimentarem os demônios que trazem dentro de si e as tornam capazes de tudo, até matar e morrer. Mas quero voltar aos líderes, e também quero falar dos craques de futebol que também já não são os mesmos. Ainda temos alguns poucos que ainda são capazes de mostrar a arte do jogo como algo belo. Como não chamar de arte a dança fascinante dos dribles de jogadores como Garrincha de pernas tortas? E veja que os jogadores daquela época iam com a roupa do corpo para os outros países, modo de dizer. Iam de cara lavada, sem tintura e penteado no cabelo, sem brincos e sem modas. Levavam apenas seu dom de jogar, sua arte e seu sonho de vencer, e venciam e venceram.
Tivemos políticos assim também. Alguns já eram ricos, outros pobres, mas o sonho e o ideal de bem governar já traziam desde crianças. Na juventude, o sonho amadurecia e explodia dentro do peito e nada os segurava. E quando tornavam-se políticos atuantes, demonstravam incrível habilidade de articulação, de discurso, de ações honestas. O coração ardia de emoção e amor pelo país. Como não chamar de arte a habilidade de articulação dos antigos políticos? Como não chamar de arte o sonho de elevar seu país, expurgando a miséria? Evidentemente que uma corrupção aqui e ali sempre existiu em todos os lugares, mas vamos e venhamos, fazer da corrupção uma prática normal e corriqueira, saquear as empresas do próprio país como hordas de bárbaros em terras estrangeiras, sem deixar um vintém?Arquitetar planos de corrupção com tamanha frieza? Uma empreitada corrupta generalizada em que não escapa um político sequer que seja honrado? Assassinaram a beleza da arte na política.
O mundo mudou, o país mudou, os valores mudaram. O mercantilismo infiltrou-se de tal forma nas instituições que foi corroendo tudo. Sabemos que não se faz campanha política sem muito dinheiro. Sempre o dinheiro, dinheiro e dinheiro. E aí a derrocada moral tem início. Faz-se de tudo, a princípio para comprar o ingresso na vida política, depois para viver nababescamente no luxo e no prazer, dar festas que fariam Nabucodonosor corar de vergonha nos jardins suspensos da Babilônia. A grande maioria não tem o dom da arte política, não nasceu para isso e os poucos que têm perderam este dom, corrompidos pelo dinheiro, pelo poder, pela grandeza e honrarias. A derrocada moral e mudança de valores também estão presentes no povo que está nas ruas gritando obscenidades rimadas para orquestrar uma torcida tresloucada. Por que não se ater a palavras de ordem?  Por que baixar o nível?
 Se eu tivesse hoje o poder para mudar a educação do país, eu incluiria uma nova disciplina: “sonhos e ideais”. Isso porque as crianças e jovens já não sabem o que seja perseguir um sonho, cultivar um ideal e ainda apreciar a beleza. Sim, eu incluiria a “Beleza da Arte”. Quem sabe um dia poderemos voltar a ter fé na humanidade, e ver surgirem verdadeiros líderes políticos honestos com o peito inflamado de amor pelo seu país.

Tudo isso faz-me lembrar de Santa Catarina de Sena que dizia mais ou menos assim: “Os homens são capazes de enfrentar as mais terríveis adversidades, atravessar mares, desbravar florestas e enfrentar enormes perigos para conquistar riquezas, honra e fama. Mas não são capazes de lutar para conquistar uma única virtude que seja”. E pensar que virtudes são a riqueza maior...

sexta-feira, 18 de março de 2016

A bondade final





A velha mulher acordou naquele dia com um sentimento forte de desesperança. Repentinamente, uma terrível solidão se abateu sobre ela, assim como uma nuvem carregada se abate sobre a tarde plácida anunciando uma terrível tempestade. Olhou para tudo e para todos com estranheza. Algo mudara dentro dela, embora ela ainda não soubesse precisar o quê. Seria um prenúncio da morte? Ora convenhamos, pensava ela, já estou na fila faz tempo, qualquer hora é a minha vez. Entretanto, curiosamente, no meio daquela sensação de angústia e solidão, pela primeira vez a ideia da morte não lhe pareceu assim tão terrível. Na verdade, era até bem vinda, como um alívio. Esta alternância de sentimentos deixou-a confusa. Era como se a morte, sabendo da inexorável devastação que provocava nas pessoas, procurasse ser o mais gentil possível, assim trazendo certo consolo, algo como o execrável carrasco que gentilmente ajuda o condenado a subir o cadafalso, para depois lhe dar o golpe fatal.
Lembrou-se do marido que lhe dizia sempre que a morte não é problema, é solução. Esboçou um sorriso sofrido e encheu-se de saudades. Há muito que acordava e conferia os objetos conhecidos de seu quarto, pois sempre pensava que poderia morrer durante a noite. Aí, de manhã, ela se beliscava e dizia baixinho, quase gemendo, Senhor, ainda estou aqui?Ah, a morte, a morte, sabia que ela não demoraria, quem sabe naquele mesmo dia em que ela se sentia invadida por sentimentos tão estranhos e contraditórios. Também há muito que tentava se preparar para a última hora. Queria estar atenta, queria estar preparada, mas sabia que isto não se dá assim. Agora se sentia uma criança desamparada, e um choro convulsivo irrompia dentro de suas entranhas, porém com um imenso esforço engoliu as lágrimas. É preciso ser forte, ter coragem. Fechou os olhos, suspirou profundamente, e resignada, entregou-se quase humilde ao que estava por vir. Um condenado sabe que nada poderá livrá-lo daquela pena implacável, então é melhor se comportar com dignidade.    
Sim, sem sucesso ela tentara se preparar para morrer. O fato é que se pode sofrer uma dor antecipada, mas não se pode sentir de verdade a dor. Isso só na hora. É como dor de dente ou qualquer outra dor física. A gente sabe que dói, a gente se lembra da dor, porém soa como algo distante, tal qual um sonho. Pensava na família que amava, é claro que ainda morreria pelos filhos, no entanto, também pela primeira vez, experimentava um sentimento estranho e novo, uma espécie de liberdade, de desapego. Já não sofria mais se este filho passava por um problema ou se aquela neta ainda não estava encaminhada. Bobagem, nunca nada está pronto, sempre existirá algo por acabar e algo por sofrer. Neste momento ela foi até assolada por uma sensação de conformidade ou ainda de completude, como alguém que confere rigorosamente suas tarefas de trabalho, e comprova satisfeito que tudo está pronto. Suspirou novamente e acolheu a morte, como se de fato esta estivesse em pessoa batendo à porta.
Observou a moça que lhe cuidava. Era jovem, com cabelos bastos, cheia de saúde e vigor. Andava desenvolta para lá e para cá, com todas as articulações em perfeita sincronia. Secretamente, já invejara a moça em outros dias. Também já fui assim, pensava com tristeza. A velhice é uma prova de humildade, chega o dia em que temos que ser levados e lavados, como se fôssemos crianças pequenas.  Algumas vezes havia se irritado com a jovem pelo fato de ter que se submeter à ela. Agora a olhava com ternura. Mais uma avalanche de sentimentos novos e estranhos. Acariciou com delicada gentileza a mão lisinha da jovem que a olhava com curiosidade. Por fim, um último sentimento do dia a enredava completamente, foi inundada por uma extrema bondade e cochilou cheia de paz. A morte finalmente viera, terrível e doce.


terça-feira, 15 de março de 2016

A difícil arte de ser a gente mesmo




            Há alguns dias eu estava assistindo novamente ao filme “Brave” (Valente), aquela animação que faturou o Oscar de 2013 e que conta a história da menina Merida. A valente princesinha escocesa ousou desafiar um costume sagrado de muitas gerações, contrariando determinadamente sua mãe, a rainha. É claro que ao final do filme, depois de mil peripécias, angústias e aflições de mãe e filha, tudo acaba bem. Na vida real, nem sempre tudo dá tão certo assim, mas realmente não há outra maneira de ser feliz que não seja a de buscar o próprio caminho e de perseguir o desejo que arde e queima dentro do coração da gente, mesmo que seja preciso desgostar uns ou outros.  
            Para os de minha geração e os de antes ainda, tudo era mais difícil. Muitos de nós fomos criados para seguir cada orientação e conselho dos pais à risca e de olhos fechados. Nossa fidelidade era tanta que julgávamos qualquer pensamento nosso como inadequado. E assim também era com as professoras do colégio tradicional. E ai de nós se ensaiássemos ares de rebelião, o chinelo cantava. Quando minha mãe falava, era uma vez só. Não se usava ensinar a pensar. Levou tempo para que a gente pudesse perceber que éramos seres únicos, competentes para pensar com nossa própria cabeça.
            É natural, louvável e justo que os pais queiram o melhor para seus filhos. Entretanto, já não será tão louvável quando decidem por eles, tentam convencê-los por a mais b de que este curso será o mais indicado para suas tendências e vocações, que aplicar o dinheiro nisso ou naquilo é que é o bom, que devem namorar aquela tal moça porque ela é demais. Bom, e extrapolam quando querem ver realizados em seus filhos seus próprios sonhos, como ser bailarina, modelo, ou médico e por aí vai. Eu tive um primo bem mais velho que foi ordenado padre, mas felizmente abdicou de suas funções clericais desde que compreendeu que sua vocação sacerdotal era mais de sua mãe e de sua avó do que propriamente dele.
            Que os pais libertem sem medo seus filhos para que sigam seus próprios sonhos, e que nós, assim como a princesinha Merida, sejamos “brave” ou valentes não abrindo mão de escolher nosso próprio caminho ou nosso próprio destino, sei lá. Há que se considerar que a vida é muito curta. O tempo não espera, passa muito depressa e nós simplesmente não acreditamos que isso ou aquilo já faz 10, 20 ou 30 anos. E aí, o que foi que fizemos com aquele sonho que insiste em voltar e que nos acena como um velho conhecido? Muitas vezes não é fácil ser a gente mesmo, mas é possível despir-nos das inúmeras máscaras com que fomos habituados a usar, e aí podemos nos olhar olho no olho, sorrir para a gente mesmo no espelho e dizer: você pode!
Ainda somos nós mesmos, acredite, mesmo que com cabelos brancos ou rugas, com algumas ou muitas limitações físicas, não importa. Dentro da gente, não há idade, o espírito não funciona como o corpo, ele é grande, geralmente do tamanho do nosso desejo. Sim, muito grande! Do tamanho de nosso desejo!


sábado, 12 de março de 2016

"Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós"





Texto de Tania Belato Coutinho

A mim é muito cara a percepção de Maria, Mãe de Deus: Theotokos. E isto mostra não só a sua relevância na história da salvação como também a grande ternura de Jesus para conosco, quando do alto da cruz, em seus momentos de maior dor, se preocupou em partilhar o amor de Sua mãe com toda a humanidade, quando diz a J
oão, o discípulo amado, "Eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho" - Jo 19, 26-27. 
E é maravilhoso observar nestes primeiros tempos do cristianismo a presença serena e forte de Maria ao lado daqueles que o Senhor lhe confiou, em todos os momentos importantes pelos quais passou aquela comunidade nascente, a Igreja de Cristo.
É reconfortante observar que este cuidado de mãe tem acompanhado a igreja em toda a sua trajetória através dos séculos e a cada um de nós em particular ao longo de nossas vidas. É reconfortante pensar que ela participa dos acontecimentos hoje, como o fez nas Bodas de Caná, sempre atenta àquilo que está faltando e intercedendo junto a Jesus por nossas carências e necessidades. É reconfortante saber que, de tempos em tempos Ela vem pessoalmente com mensagens e orientações do céu transmitidas através de pessoas simples e piedosas a todos os filhos que Jesus lhe confiou, direcionando-os sempre a viver como Ele ensinou e a fazer tudo o que Ele disser - Cf. Jo 2,3-5. 
E é de uma beleza observar como os filhos acorrem sedentos à presença da mãe, como se sentem protegidos e abrigados nas dobras de seu manto, como se sentem esperançosos por saber que Ela, a rainha do céu e da terra, passa a frente em todos os momentos difíceis que atravessam, como Igreja e como pessoas. Basta observar com que devoção e alegria acorrem de todas as partes do mundo aos grandes santuários.! Ora para participar de uma missa na gruta de Lourdes e tomar de sua água milagrosa, ora em Fátima, enfrentando grandes filas para acender a sua vela no lugar da aparição da Virgem, ou em Guadalupe, Aparecida e em tantos outros santuários, onde, como filhos sedentos, vamos buscar a proteção, a força, a coragem sob o manto protetor da mãe!
Mas, sobretudo, o mais maravilhoso a respeito de Nossa Senhora, mãe de Deus e da Igreja, é observar com que prontidão, obediência, coragem e amor ela se submeteu à vontade de Deus, com que docilidade ela se deixou conduzir pelo Espírito Santo, quando disse: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim, segundo a vossa palavra"! Lc 1, 37. E é isso que devemos aprender dela todas as vezes que nos dirigimos em romaria aos seus magníficos santuários, todas as vezes que nos escondemos sob as dobras de seu manto, todas as vezes que rezamos o terço aos seus pés. Mais do que conforto e abrigo, pedir a Ela que nos ensine a ser dóceis e obedientes ao Plano de Deus e à ação do Espírito Santo, como ela foi.
Encerramos com a invocação gravada na Medalha Milagrosa, que data da aparição de Nossa Senhora a Santa Catarina de Labouré, em 1830, na França: "Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós!"

sexta-feira, 11 de março de 2016

A cor da morte





D. Áurea, D. Áurea, seu Amâncio morreu! Como morreu, criatura? Está louca? Respira fundo, minha filha, senão você é que vai morrer já, já. Me conta, antes senta aqui um pouco, calma, calma, toma um pouco d’água, devagar.  A moça simples arfava o peito e se abanava com a mão. Mal tomou um gole e já falava atropeladamente. Foi agorinha, ele tava bom, até atendeu de manhã, aí foi pra casa pra almoçar, falaram que nem na mesa sentou, no meio da cozinha teve um ataque e caiu fazendo um estrondo. D. Áurea persignou-se e tratou de procurar ela uma cadeira porque começou a sentir um aperto no peito, uma falta de ar. Tá cheio de gente lá, já chamaram o médico, mas acho que não tem jeito não, ele morreu mesmo. D. Áurea suspirou fundo e começou a empilhar os moldes, os tecidos, as tesouras e linhas porque trabalhar seria impossível. Estava de luto.
Como morreu? Como? As pessoas estão vivas e de repente morrem. Mergulhada nas mais elevadas filosofias, já pensava nos instrumentos de dentista que haviam ficado em cima da mesinha e que não seriam mais usados pelo falecido. Pensou no franguinho delicioso que a mulher sabia preparar e que Seu Amâncio nunca mais comeria. Pensou na viúva, sua amiga, pensou no susto que teria sido aquela morte bruta e abrupta. Desde que fizera sessenta anos, D. Áurea passou a pensar mais na morte, mas nunca se acostumava com ela, como toda a humanidade, certamente. E quem é que se acostuma? Só se a gente morresse mais de uma vez, até cansar. Aí sim, talvez fosse possível se acostumar. Ficou olhando para a Tonha, sua empregada boa e simples que fazia o café e balançava a cabeça a todo instante, como quem não se conforma com alguma coisa. De vez em quando, Tonha falava sozinha, não sabia que também sabia filosofar. Dizia, é, a morte só existe para quem fica. Depois soltava outra frase, vai quem vai, feijão no fogo pra quem fica.
Mais de tardezinha, D. Áurea vestiu-se de preto e foi para a casa da viúva onde Seu Amâncio era velado. Primeiro procurou pela amiga, a viúva, que chorava sem parar. Molhara já tantos lenços e sempre aparecia outro que alguém providenciava, mais outro, e as lágrimas chegavam profusas para aliviar a dor. Não acredito, D. Áurea, não acredito, como é que pode? Levantou igualzinho faz todos os dias, não clamou de nada, de nenhuma dor, rimos, falamos da chuva que agora deu trégua, falamos da mangueira que já tem manga, de visitar minha mãe lá em São Paulo. E a viúva falava e chorava.
Depois de consolar a amiga, D. Áurea chegou perto do caixão, com respeito, devagar. Lá estava o Seu Amâncio, agora morto. Mas não parecia um morto. Não tinha aquela cor da morte, aquela cor de quando a vida vai embora. Ele estava só dormindo, podia jurar que sim. Só que não respirava, isso não. D. Áurea ficou sentada lá perto e não tirava o olho do falecido porque tinha certeza de que morto ele não estava. Isso não é cor de morto, este homem está vivo, deve ter tido um daqueles ataques de nome complicado, aquele estado em que a pessoa fica impossibilitada de respirar ou piscar, como se fosse um coma.
E mais tarde, D. Áurea voltou para passar algumas horas da noite no velório. O homem estava do mesmo jeito, sem cor nem jeito de morto. Ela tentou abordar a questão com uma conhecida, mas não obteve sucesso. Imagine! Disse a mulher, claro que está morto, não respira! Ora, que ideia, D. Áurea! E de manhãzinha foi feito o enterro. De noite, todo mundo estava exausto, todos foram dormir. D. Áurea também. Fez suas orações, rezou pelo falecido e dormiu. Sonhou que estava enterrada viva, sentia falta de ar. Acordou ansiosa, puxando o fôlego. Lembrou-se do amigo dentista. Levou um tempo para deitar a cabeça no travesseiro. O sono chegava inclemente. D. Áurea lutava para permanecer acordada com medo de sonhar outra vez, e apenas um pensamento ecoava em sua mente ... aquela cor não era de morte 

terça-feira, 8 de março de 2016

Para as mulheres (e homens também)




            Quando eu estava no colégio, ainda mocinha, veio uma senhora fazer uma palestra sobre “família feliz”. Nunca me esqueci de que ela dizia que tudo estava nas mãos da mulher, ou seja, a chave da felicidade da família. E que tal felicidade dependeria unicamente, segundo ela, da capacidade da mulher de compreender o estado de espírito de todos, e com incrível e hercúlea habilidade, reverter um mau humor aqui e ali, salvando tudo e todos. E o homem? E os filhos? Então cá eu fico pensando com meus botões, e reflito como sempre tanto foi exigido da mulher, quanto peso foi colocado em suas costas. Evidentemente que aquela palestra foi no tempo antigo, e óbvio que quase nunca haverá uma mulher assim com tamanha sabedoria e tanta perfeição. Sabemos que cada pessoa tem um temperamento, e que a felicidade sempre vai escapar não se deixando aprisionar a não ser por pequenos e poucos momentos. Caras feias, indiretas e diretas fazem parte da vida e do dia a dia, mas nada que não se resolva com o perdão diário.
            O homem, de maneira geral, salvo raríssimas exceções, ainda espera chegar a casa e encontrar uma mulher perfeita. Mas gente, ele também poderia ter uma cópia da chave da felicidade. Feliz o homem que se dispõe a lavar a louça, que também ajuda os filhos com as tarefas da escola e ainda sabe acolher sua mulher com um abraço apertado e momentos de amor. Feliz o homem que consegue compreender, melhor dizendo, que consegue aceitar as sutilezas da alma feminina. São poucos, viu?
Uma conhecida me contou que lá pelos idos de 70, após casar-se foi morar em Brasília. O marido só chegava à noite, e ela morria de saudades da família aqui em Minas. Chegou num ponto tal que um dia, ao entrar em casa ele deu com a mulher chorando sentada em cima da mala já pronta. Assustado, pensou que talvez alguém tivesse morrido, mas ela, entre soluços entrecortados lhe disse que eram só saudades, que sentia falta da mãe, das irmãs, que ia embora. Ele teve a maior paciência, abraçou a moça no abraço mais carinhoso de que foi capaz. Ela desistiu de voltar para Minas e eles foram felizes para sempre. Feliz o homem que sabe acolher as lágrimas de uma mulher que nem mesmo sabe por que chora, talvez a saudade da família, ou uma cena de filme, ou uma foto de alguém querido que já se foi, ou ainda pura e simplesmente uma ebulição dos hormônios. As mulheres são seres estranhos mesmo: são tão frágeis e delicadas como fortes e intensas!
Há mulheres que se contentam apenas com o trabalho de mulher, mãe e dona de casa. Tudo bem. Cada uma é cada uma. O foco é tentar ser feliz. Mas há outras que são dotadas de asas e ânsias. Querem voar, querem conquistar, almejam mais do que viver entre as paredes da casa. Certíssimo. Que vão e voem em busca de seus sonhos. Impossível não me lembrar de minha mãe que sempre dizia: se eu tivesse tido oportunidade, teria estudado “leis”. E agora voltando no tempo, acho mesmo que ela teria sido uma brilhante advogada ou talvez uma imponente juíza. Seu porte e seu jeito de ser não era para menos. E finalizo com a fala de Adélia Prado, que homenageia as mulheres anônimas e simples: “... exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, das que jamais verão seu nome impresso e, no entanto sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas não recusam casamento, antes acham o sexo agradável, condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo e varrer a casa de manhã.”
Para os homens deixo um conselho precioso que ninguém pediu, mas dou assim mesmo: querem ser tratados como reis? Então façam suas mulheres se sentirem rainhas. É infalível!

Parabéns para nós todas, mulheres maravilhas e maravilhosas que curtimos testar novas receitas, que curtimos ler, escrever, fazer sexo, cantar, cuidar de casa, do bebê, trabalhar no que gostamos e ainda curtimos um sapato bonito em alguma vitrine de uma loja qualquer.    

domingo, 6 de março de 2016

Confissão



Ricas elas não eram, mas eram um bocadinho melhor do que a família da Maria da Graça, faz de conta que era este o nome. Então, existia sempre aquela concorrência, as primas de cá e as primas de lá. Mas como se não bastasse, o pai das primas de lá ganhou um bom dinheiro na loteria, nada escandaloso, mas era um dinheirinho bom. E as primas vieram passear na cidade para comprar sapatos novos e ir ao cinema porque lá não tinha nada disso. E quem foi acompanhar? A Maria da Graça, sempre olhando comprido para a carteira das primas. E levou numa loja, levou em outra, foi obrigada assistir a um movimento sem fim de tira esse par, experimenta o outro, sandália, sapato, e à noite, o cinema. Maria da Graça sentia na pele uma coisa assim, assim de injusto, uma indignação que nem ela saberia explicar, muito menos entender.
Pois bem, no cinema, depois de comprar muita pipoca, chocolates e balas, sentaram-se felizes para ver o filme. Maria da Graça, não tão feliz assim. E quase na hora do filme começar, uma das primas exclamou: gente do céu! Perdi dinheiro, acho que deixei cair no chão porque ainda contei quando chegamos aqui. E nesse momento a luz apagou. E foram as três apalpando o chão para achar o dinheiro. Maria da Graça achou, sentiu na mão o contato gostoso da nota de cem e foi aí que bateu a tentação. Pegava e ficava com ele, que coisa também! Saiu com elas, ajudou, entrou e saiu de loja a tarde toda e nem um trocadinho! Até o bilhete do cinema ela teve que pedir para o pai. E naquela escuridão, ninguém viu. Ela pôs a nota dentro do sutiã e continuou procurando para não levantar suspeita. Desistiram, vai ver que a nota estava debaixo da poltrona da frente. Depois do filme, as três procuraram outra vez, olharam aqui e ali e, é claro que nada. Maria da Graça sentia o coração batendo forte dentro do peito, tinha medo que as duas ouvissem. Mas não hesitou, ficou com o dinheiro e sentiu mesmo uma satisfação justa.
Pois bem, a vida passou. Quando já estava com bastante idade, numa tarde de primeira sexta-feira do mês, Maria da Graça lembrou-se do episódio e como estava na fila da confissão, decidiu contar para o padre. Durante tantos anos não pensara naquilo, mas assim, sem mais nem menos, a lembrança veio acusar. Era mocinha naquela época, cheia de vaidade e de vontade de ter isso e aquilo e duas primas esnobando riqueza, mas de qualquer forma, foi errado. Pecado é pecado.

O padre ouviu atentamente, firmou a vista para perceber melhor a silhueta da penitente. Minha filha, mas faz quantos anos isso? Quarenta e cinco anos? Pensou consigo, já prescreveu, mas não falou. E Maria da Graça, apavorada, pediu, padre, pelo amor de Deus, qualquer penitência, menos contar para elas, até porque uma delas já morreu e a outra tá muito doente. E o padre passou a penitência: transpor para o dinheiro de hoje a quantia usurpada e fazer doação para a Vila Vicentina, que está sempre precisando de mais trocados. Mais dez padre-nossos, dez ave-marias e trinta missas diárias, sem interrupção. Mais uma visita à prima sobrevivente, o que Maria da Graça fez com muito gosto. E assim caminha a humanidade, pecadora, mas humana, demasiadamente humana, como diria Nietzche.     

quinta-feira, 3 de março de 2016

De volta ao passado: Cine Presidente de Itajubá




Os mais novos não se lembram, mas nós itajubenses tivemos um cinema na cidade que fez parte importante de nossas vidas adolescentes, que povoou nosso imaginário encantado com os filmes da época. Quem não se lembra dos adoráveis filmes da Hayley Mills, Audrey Hepburn, Ben Hur, A Noviça Rebelde, os primeiros filmes de OO7, com o bonitão do Sean Connery, os filmes western spaghetti com Giuliano Gemma, aquele do O Dólar Furado, O Bebê de Rosemary e tantos outros mais? Pois é. Não víamos a hora de chegar domingo para assistir às matinês das 4 ou mesmo às sessões da noite. Vale lembrar que não existia celular naquela época, e, portanto nossa interação era a mais humana possível, era aquela da cara a cara, e lá, já instaladas confortavelmente nas poltronas rosas e azuis do Cine Presidente, aguardávamos ansiosas que o filme começasse.
            Qual não foi a surpresa do nosso grupo de WhatsApp quando minha prima Musa Ferrer discorreu diligentemente sobre o saudoso Cine Presidente, ressuscitando lembranças fantásticas que beiravam ao lirismo, e, aliás, muito bem lembrado pela Laís Medeiros, lembranças tais que fariam Proust morrer de inveja. Musa nos fez viajar no tempo, trazendo à tona detalhes deliciosos que pareciam já enterrados definitivamente em um passado pra lá de remoto. Ela nos fez lembrar das músicas de Ray Connif que compunham o ambiente perfeito antes do momento mágico da cortina se abrir, aquela cortina de chitão estampadinha, meio azul e meio roxa, aquela indefectível cortina enorme estampada, a mesma de sempre até o último dia de vida do cinema. Praticamente transcrevo a fala da Musa, deixando-nos deliciadas com o seu relato.
            E as poltronas rosas e azuis, os chicletes embaixo das cadeiras? E a charmosa “bomboniere” pequeníssima lá no cantinho ao pé da escada que conduzia ao salão? Era lá que nós comprávamos Mentex, dadinhos, balas chitas em papéis amarelos e verdes, chocolates croquetes, em forma de moedas, chocolápis, chicletes Ping pong com figurinhas, e outras guloseimas da época! E o bebedouro próximo à “bomboniere”, lugares que serviam de desculpas para ver quem nos interessava? E ainda tinha o folhetinho que nos davam na entrada do cinema com propagandas e descrição dos próximos filmes! Muitos garotos e garotas faziam aviõezinhos desses folhetinhos e os lançavam no ar enquanto as luzes ainda permaneciam acesas.
            Quase ninguém se lembra, mas as freiras levavam as internas do colégio nas matinês de domingo, dependendo do filme, é claro, por exemplo, com Brigitte Bardot, nem pensar, né? E as meninas ainda iam de uniforme de gala do Colégio Sagrado Coração de Jesus, fazendo a alegria dos moços que faziam um cortejo para vê-las passar no caminho! Anos dourados da inocência!
            Nos filmes de longa metragem havia o Ato I e II, e aí faziam uma pausa para trocar os rolos dos filmes. As luzes eram acesas e a bagunça se formava, com aviõezinhos que voavam por todo o lado, e mais idas e idas à “bomboniere” para a alegria do dono, e também idas aos toaletes sempre na desculpa de procurar pelos paqueras.
            Infelizmente, há que se lembrar das coisas tristes e ruins da década de 60 quando não se permitia a entrada de negros no cinema. Verdade verdadeiríssima contada por uma amiga que se lembra quando foi discriminada na entrada do Cine Presidente.  Mas ela mesma complementou que o grupo de amigos fazia o maior escarcéu na porta do cinema sempre no intuito de defender a moça e os demais negros para que pudessem entrar para assistir ao filme. 
            Em apresentações de grandes filmes como A Noviça Rebelde, Ben Hur e El Cid, vendia-se mais entradas do que assentos e os desafortunados que já não encontravam mais lugares vagos, sentavam-se mesmo no chão dos três corredores, achando tudo uma maravilha! Os casais de namorados acomodavam-se sempre nas duas laterais de cadeiras com fileiras menores que a fileira central. As músicas clássicas de Ray Connif, Paul Mauriat e Glenn Miller eram os anfitriões sonoros para a entrada triunfal de todos que desfilavam no tapete vermelho dos corredores. Torcíamos para que um rapaz alto não se sentasse na cadeira à nossa frente para não atrapalhar nossa visão, mas se isso acontecia, pedíamos para o rapaz abaixar-se em sua cadeira, e com sorte, quase sempre éramos atendidas. O lanterninha era o terror, sempre trazendo um retardatário e tirando nossa concentração no filme e atrapalhando os casais de namorados ...
            Para finalizar, Musa nos lembra que o cheiro e o barulho do saco de pipocas incendiavam o recinto do cinema, mas eram presenças imprescindíveis no enredo de cada filme! 

            Todo lugar, toda cidade tem uma história e muito desta história pode ser contada pelo seu patrimônio físico e cultural, pelas praças, jardins, coretos, teatros, igrejas, cinemas e pelas pessoas que frequentavam esses lugares. Feliz o povo que valoriza e luta pela preservação de seu patrimônio físico e cultural! Feliz o povo que valoriza sua história! Infelizmente já perdemos em Itajubá grande parte dos casarões, dos teatros e cinemas, então o que nos resta se não os fatos contados por quem viveu estas histórias e testemunhou-as? Parabéns à Musa Ferrer Ferreira por nos enriquecer com tão gratas lembranças permitindo-nos esta deliciosa viagem ao passado e revivendo momentos inesquecíveis no Cine Presidente! Parabéns por preservar a memória cultural de Itajubá e por representar tão dignamente a cidade onde nasceu ao longo de toda sua jornada esportiva e, no momento, já selecionada para representar o Brasil nas Olimpíadas e Paralimpíadas Rio 2016 como árbitra internacional de “Tênis de Mesa”!. Valeu Musa!           

quarta-feira, 2 de março de 2016

A hemorroissa






            Naquele tempo, Jesus já não mais andava pela Galiléia, pelo menos não foi visto pelas pessoas com os olhos do corpo, pois 2.000 anos já haviam se passado. Mas Ele estava vivo como sempre esteve, ontem, hoje e sempre. E continuou a curar muita gente, embora sempre digam que não sei se foi isso que me curou ou aquilo ou aquilo outro porque sempre existe alguma coisa para confundir nossas mentes e nossos corações.
            Bem, havia uma mulher naquela vila e ela era uma prostituta, assim como fora sua mãe e sua avó. Ela dizia que não havia outra coisa para ser e fazer porque eram pobres e ignorantes. Ela tinha duas filhas, sem contar os outros filhos que não deixou nascer porque não teria como alimentá-los. Dizia que eles ainda não tinham alma, pois assim também o diziam sua mãe e sua avó, e assim sendo, não tinha importância porque nada sentiam. Na verdade, em seu coração, ela já os amava e imaginava como seriam, e sempre houve uma dor quando se lembrava deles. Os pais das crianças, estes, ninguém sabia quem eram porque muitos eram os homens que se deitavam com ela.
            Aconteceu que quando tinha trinta e cinco anos, ela teve uma grande hemorragia. Como não havia o que estancasse aquele sangue, ela foi ao hospital de uma cidade próxima. E lá, depois de alguns exames, disseram-lhe que tinha câncer de útero e dificilmente teria cura porque já estava em estado muito adiantado. Nada havia a fazer. Ela voltou assustada e triste. Tinha muita vontade de chorar, porém ela não tinha ninguém que a consolasse e que lhe desse um abraço. É verdade que algumas vezes ela quis morrer, algumas vezes era invadida por uma imensa tristeza, mas ela sentia medo da doença e medo da morte, e também sentia medo de que suas filhas ficassem completamente sozinhas. E ela quis viver uma vida de verdade.
            Então a mulher ouviu que no vilarejo vizinho havia um padre que recebera de Jesus o dom de curar as pessoas. Ele orava e muitos doentes ficavam curados. Mas ela tinha vergonha de ir até ele porque todos a conheciam e sabiam que era uma prostituta. Às vezes tinha vontade de ir à igreja, mas também não tinha coragem porque sabia de sua situação. Quando era menina, ela foi ao catecismo escondida da mãe. Via as meninas indo alegres e cheias de risos e quis ir também. Mas não foi aceita na turma de meninas e nem na aula de catecismo. Diziam que ela poderia participar se sua mãe deixasse de ser prostituta. Ela voltou chorando e chorou mais ainda quando contou à sua mãe que a repreendeu severamente. Igreja não é lugar para nós, dizia a mãe. Nossa sina é esta.
            E a mulher ficou se perguntando se ia ou não procurar pelo tal padre. As filhas ainda eram pequenas, mas ela dava um jeito. Agora, jeito para chegar na igreja, ah isso não tinha não. Quem sabe poderia falar com o padre sem que fosse ao templo, ela precisava tentar. Então foi até lá. Mas quando chegou, pensou em desistir porque havia uma multidão que se aglomerava para assistir à missa que seria celebrada ao ar livre porque eram tantos que não cabiam na igreja. A mulher sentindo-se desolada, desistiu. Mas antes que partisse ainda resolveu subir numa colina mais ou menos próxima de onde a missa estava sendo celebrada. Lá ninguém a veria e ela não seria apontada como prostituta.
            Não satisfeita em se afastar para longe da multidão, ainda se escondeu atrás de uma árvore e olhava e se escondia. Podia ver ao longe o padre, e na frente da multidão havia muitos doentes em macas e cadeiras de rodas. Então ali, apoiada na árvore, ela chorou. E pediu a Jesus no mais profundo de seu coração e com toda a transparência de sua alma, que a curasse. Disse a Ele que ela não poderia ficar no meio da multidão e nem assistir à missa por causa de sua condição. E quanto mais falava com Jesus, mais ela chorava. Lágrimas abundantes escorriam pela sua face. Disse a Ele que se pudesse ela iria até onde Ele estava. Veio-lhe à mente as crianças que havia abortado, então pediu perdão a elas e a Jesus. Depois encomendou suas filhas a Deus.
            Não sabia ela que neste momento, lá no altar improvisado debaixo do céu da tarde, o padre anunciava que uma mulher com câncer de útero e grande hemorragia estava sendo tocada por Jesus. Que ela soubesse que era muito amada por Ele, que Ele curava não só seu corpo, mas sua alma e seu coração. E Ele a amaria sempre, onde quer que ela fosse se esconder. O padre apenas transmitia o que lhe vinha no coração.
            A mulher sentiu um calor muito forte no útero, parecia que estava sendo queimada por dentro. A princípio pensou que estava morrendo. Depois de muito chorar, desceu a colina e foi para casa. Logo percebeu que a hemorragia havia cessado, mas não as lágrimas que escorreram de seus olhos por muitos e muitos dias ainda porque havia muita tristeza em seu coração que precisava sair. Daquele dia em diante ela nunca mais se prostituiu. Voltou ao hospital e lhe perguntaram o que ela fizera para sarar de um câncer. Ela disse que Jesus a havia tocado. E  muitos não acreditaram.
            “Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se deveriam escrever”. (Jo, 21,25)
(Baseado em fatos reais, acontecido com o Pe. Emiliano Tardiff, e romanceado por mim)