De
sua janela, Dona Marianinha assistia a toda a movimentação dos preparos para a
festa junina. É junho outra vez, meu
Deus, como o tempo passa! Lembrou-se ela do marido falecido há alguns anos
no mesmo mês. Ela era apaixonadíssima por ele, e sofrera muito com sua morte.
Verdade seja dita: o homem tinha um ciúme de doido e Dona Marianinha não podia
dar um passo sem dar conta de onde ia. Era da casa pra igreja e da igreja pra
casa. Sua maior vontade era dançar na festa junina e todo ano ela ficava
namorando aquela festa alegre. Armavam as barracas, o tablado, enfeitavam com
bambuzinhos verdes e bandeirinhas coloridas. A fogueira crepitava, lançando
chamas que quase voavam até sua varanda, iluminando a noite escura e fria. Chegavam
os sanfoneiros, os cantores e os pares fantasiados. A música mexia com ela e
ela mexia os quadris com os cotovelos apoiados na janela. Meu Deus, que vontade de dançar a quadrilha! Quando o marido era vivo,
não podia nem ouvir falar no assunto, era homem sério demais para essas festas.
Agora bem que podia, era viúva, os filhos não mais moravam com ela. Era livre,
por que não? Como se aquilo tivesse sido decidido há muito tempo, a viúva
tratou de se preparar. Achou um vestido xadrez amarelo, colocou um xale, pintou
a boca de vermelho e seja o que Deus quiser, estou cansada dessa vida certinha, a gente morre aí e não vive nada,
não faz o que tem vontade. A mulher saiu decidida, chegou ao local coalhado
de gente. Havia jovens, crianças e velhos. Sem se importar com o que podiam
falar, dançou, tomou quentão, sentindo uma liberdade pra lá de gostosa! De
repente recebeu um bilhete de namorado, desses que distribuem nas festas
juninas. Ficou imaginando de quem poderia ser, afinal ela já era uma senhora,
devia ser alguma brincadeira, mas gostou, quem tá na chuva é pra se molhar. Mas
eis que apareceu o autor, era um dos sanfoneiros que também ficara viúvo há
pouco tempo. Dançaram, conversaram e antes da festa junina do próximo ano já
estavam casados. Nunca perderam mais festas, especialmente as juninas. Dona
Marianinha, feliz da vida, costumava aconselhar as moças que encontrava no
salão da Gertrude: olha gente, a vida não
foi feita pra gente ficar assistindo, mas pra viver, pra fazer o que tem
vontade e pra ser feliz! Passa tudo rápido demais da conta! Dá um pulinho na festa junina e depois me
conta!
A vida real é a melhor ficção. Neste blog estão reunidos acontecimentos do cotidiano, histórias recheadas de verdade, humor e ternura.
quarta-feira, 29 de junho de 2016
terça-feira, 28 de junho de 2016
DEMÊNCIA, O RESGATE DA TERNURA
A
velhice chega e chegará para todos, a menos que a morte se adiante em sua
jornada. Mas falo sobre pais velhinhos e sobre as dificuldades de
relacionamento que os filhos encontram nesta fase de suas vidas. E a velhice
também pode trazer a demência, o que certamente piora a situação, pois nesse
caso não há um só argumento para usar com os velhos pais. Só nos restará o
exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e apavorados, consultam a
folha sobre as características da demência, item por item. Reconhecem quase
todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que o casal fica demente ou
um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o outro se torna demente. As
famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse caso, pois numerosas, lá
estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de revezamento para cuidar
dos pais. Nem sempre. Há que se considerar que como as pessoas são humanas
demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida de demência é mais
um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos homens são mais raros
nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre. Há filhos homens
dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade do que qualquer
enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um caso.
Lidar com a demência senil é tarefa
delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não
acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na
demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há
regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um
temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo
crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida.
Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu.
Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira
exacerbado, que a convivência fica quase impossível.
Não nos esqueçamos dos casos em que
a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de
doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer
dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de
hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros
tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se
agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica
obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque
perdeu a paciência, e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê
outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que
somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à
sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.
Evidentemente, todo esse caos familiar vai se
estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para
lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para
auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também
precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de
problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse
ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos
cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que
haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que
invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não
aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil
insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os
pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude
dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua
cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era
reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando
chegava quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria
essa moça que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria
chamá-la saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de
quando essa preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha
mãe, que até então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara
lucidez no meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...”
ao que eu me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela
voltaria, mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia
se esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário
dizer que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe,
até que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos
muitas decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha
tia: “onde tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra
questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo
sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma
equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas
na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de
vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É
admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar
incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um
pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como
se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma
reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com nenhuma
ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam: “mas ninguém mesmo?” outros ainda
insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um
pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase
com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar
outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer
ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas
porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar
cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar
mesmo ninguém?
Não
há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso demente que não
seja o do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando
nos olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo.
Despendendo tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão
prazer, que os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de
cuidados é muito precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das
feridas emocionais, do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava
escondida. Ainda sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe,
quando ficávamos de mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca
de carinhos que nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por
um segundo sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha
lembrança aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos
bolsos ou entre os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos
em frente à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e
que fizemos três dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também
em seguida. Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo
o período difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar,
mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.
Num
dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre
seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra
trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender
melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado,
tentando preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os
ajudasse, o conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr.
Fulano”, depois riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e
já não entendemos o restante, não tem final, parece que não conseguiram
concluir. Tampouco enviaram a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de
expor seus medos, suas inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na
época as providências para a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto
eles, era o início daquela desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele
bilhete com tanto amor e tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero
que esse amor e essa ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso
coração o tempo todo. Também olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco
quando ainda éramos crianças, olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua
confiança no futuro cheio de projetos. Ainda
são eles, são os nossos velhos.
A
princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha,
dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de
todas as nossas experiências. Nunca saberemos por que tivemos que passar por
isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar por outros dramas, são
mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei, podemos transformar o
sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da velhice uma época em que
podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos, como naquela agradável
viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que o trem chegue seguro ao
seu destino final e saberemos que a viagem terá valido a pena.
sexta-feira, 24 de junho de 2016
"TENHO MEDO, LOGO EXISTO."
Quando
ando pelas ruas ou quando estou sozinha arranjando a casa, sempre estou
acompanhada de pensamentos desordenados e incontroláveis como cavalos
selvagens. Penso em tudo, desde as mais esquecidas lembranças de menina, cenas
de filmes ou parágrafos poéticos de livros e até o que preciso comprar no
supermercado. Todos esses pensamentos vêm atabalhoadamente, misturando-se, girando
incessantemente, vão e voltam trazendo outros tantos novos. Até hoje não
aprendi a controlá-los. Penso que isso é meio louco, no entanto é bom porque muitas
vezes é num pensamento fugidio que dispara em um voo cego em minha cabeça é que
agarro a inspiração de alguma coisa bonita que mereça ser registrada.
Bem,
lembrei-me de quando deixei a casa de meus pais para viver sozinha. Minha mãe,
ainda de um tempo bem mais antigo, deixou claro que moça solteira só deixava a
casa paterna para se casar e que o lugar da filha que ainda não tinha se casado
ou não ia se casar era ao lado dos pais. Argumentei com ela. Disse-lhe que pela
lei natural da vida, os pais partem antes dos filhos e que se assim se passasse
conosco, eu, que sempre fui pessoa tão sensível, teria muita dificuldade em
aprender a viver sozinha. Ela ficou pensativa de um jeito tal como se esta
situação nunca tivesse lhe ocorrido, e acabou se rendendo. Embora eu tivesse
apenas mudado de casa e não de cidade, nem de país e nem de pais, senti um
certo tremor porque palavra de mãe é como uma espada afiada, um descuido e a
gente se corta. Mãe quase sempre tem razão. E quando ela falou a frase: Maria
Luiza, você me mude o nome se não estiver de volta em dois meses! Aí gelei.
Naquela
época, ainda se dizia em tons maliciosos: aquela moça é solteira e mora
sozinha. Eu, orgulhosa de quebrar paradigmas, sentia-me empolgada e famosa como
a fascinante *Amelia Earhart em seus voos maravilhosos rasgando os céus sobre os
oceanos ou como uma pequena feminista que acabou de ser aceita para um
importante aprendizado num grupo fechadíssimo de mulheres corajosas. Mas não
era bem assim. Uma coisa é como as pessoas nos veem e outra é como somos de
verdade. Logo constatei que morar sozinha tinha o ônus e o bônus, como qualquer
situação na vida.
Por
exemplo, desfrutaria do silêncio tão necessário, poderia deixar minha cama
desarrumada pelo dia todo, assistiria televisão até a hora que bem entendesse,
e outras vantagens desse tipo. Tudo bem, só que quando caía a noite, eu que
sempre fui muito medrosa de tudo, desde assaltantes, baratas e principalmente
de fantasmas, bem, eu me sentia desconfortável. Quando o medo era de fantasmas
eu deixava as luzes acesas, mas às vezes quando o pavor insuportável me
dominava eu corria para a casa paterna. Se o medo era de barata, eu deixava
panos de chão dispostos estrategicamente em baixo da porta para bloquear os
inoportunos insetos. Para evitar catástrofes em minha cozinha eu almoçava na
casa de minha mãe e aproveitava para fazer uma trouxa de roupas mais difíceis
de lavar que ficavam por lá. E minha mãe, que nunca teve papas na língua, nem
pejo para reclamar do que fosse, dizia: assim é fácil morar sozinha ... até eu!
E sorria sarcástica e divertida.
Meus
primeiros tempos de Amelia Earhart ao morar sozinha foram pueris. Era quase
como brincar de casinha e fazer cozidinho de meninas em tijolos imitando
fogãozinho. De casinha em casinha fui aprendendo a ser dona de casa, e até bolo
de nozes aprendi, olha só! Porém logo compreendi que havia um bilhão de anos
luz entre mim e Amelia Earhart. Eu não era corajosa. Não sei não. Será que não
era? Segurei a mão de minha mãe quando ela deixava esta vida para entrar nos
bulevares celestiais. Encarei fazer o papel de Inês de Castro e de Edipo já com
idade para ser mãe de minhas colegas! Amei ser atriz de faz de conta,
emocionei-me e emocionei a plateia. Talvez todas as mulheres tenham algo de
Amelia Earhart e talvez a própria Amelia Earhart tivesse um pouquinho de medo
como todo mundo. Afinal, como dizia Roland Barthes: “tenho medo, logo existo.”
quinta-feira, 23 de junho de 2016
ÚLTIMO DIA DE UM GORILA
Harambe acordou naquele dia com
aquela sensação de desconforto. Era um mal estar interior, embora ele soubesse
que não era exatamente uma sensação de fome. Já estava alimentado com frutas e
legumes. Ficou um tempo olhando para o chão, para os pés. Depois levantou os
olhos e suspirou profundamente. Aqueles seres esquisitos já estavam chegando.
Ele sabia que daquele momento em diante ouviria gritos, e seria alvo de
exclamações. Havia seres grandes e outros pequenos, ele pensava ou intuía, tal
como eram sua mãe e ele juntos. Harambe não se lembrava exatamente da mãe, mas
no seu íntimo sabia que houvera uma gorila que tinha cuidado dele. Ele havia
conhecido o amor de ser amamentado e afagado. Ser cuidado e amado
incondicionalmente é algo inesquecível para os animais, até para os humanos.
O dia de seu sequestro também havia
ficado gravado no íntimo de sua alma, bem, não posso afirmar que seria alma,
mas se não fosse alma, seria algo muito parecido. Ser arrancado da mãe é
absurdamente doloroso, talvez mais doloroso ainda é assistir a sua morte. Ele
se lembrava do medo, sabia que haveria de dormir e acordar com o medo, sabia
que jamais se livraria dele. Também se lembrava e sentia a angústia da
separação, pois não só os humanos sentem angústia, mas os animais também, e
ainda são poucos os que os defendem. Sua mãe havia sido morta, assassinada e
ele colocado numa gaiola de ferros. De repente foi sendo afastado para longe de
sua casa, a grande floresta, deixava as árvores, o vento e o cheiro da mata
para sempre. Para sempre. Durante a viagem, um humano vinha alimentá-lo com
algo esquisito. Queria o leite da mãe. Que nada! Nem leite nem mãe, nem o rumor
das folhas.
Neste momento de lembranças difusas,
lapsos mentais animais ou qualquer outra coisa que possa definir o que os
animais têm ou sentem, o sofrimento batia forte, e era isto que Harambe sentia:
sofrimento. Para aplacar a dor de ser órfão e viver em cativeiro, ele descobriu
que uma coisa aliviava a dor de existir: bater a cabeça com força nas grades.
Ele agarrava os ferros e batia a cabeça com toda a força até doer e doer muito.
A dor física o fazia esquecer o passado perdido. Isto arrancava aplausos da
multidão de humanos grandes e pequenos. Que aplaudissem, tanto fazia, só queria
sentir alívio para a sua dor.
De repente um garotinho travesso
ainda inocente apareceu ao seu lado. Era um pequeno ser, infinitamente menor do
que ele, o grande gorila de 17 anos e 180 quilos. Era quase um bebê.
Inconsciente de seu tamanho e força, Harambe puxou o menino para si, talvez
quisesse abraçá-lo, confortá-lo, sentir seu cheiro, seu amor, afinal era tão
pequeno quanto ele quando foi arrancado de sua mãe. Quem sabe gostaria de ir
para a água, ele próprio amava os rios! Mas enquanto arrastava o pequeno para a
água, Harambe foi abatido com vários tiros pelos funcionários do Zoológico.
Eles não sabiam, mas libertaram Harambe. Sim, eles o libertaram da dor de ter
que bater sua cabeça nas grades por muito mais anos.
Zoológico, o que é isto? Apenas um
circo de horrores. Nada mais do que isso. Haverá um tempo em que animais e
humanos poderão conviver com respeito e amor. Mas para que isso aconteça, o
homem precisará se elevar acima das pequenezas humanas. Bastaria ver os olhos
tristíssimos de Harambe, ainda que morto.
quarta-feira, 22 de junho de 2016
MEA CULPA
Ela apareceu naquela tarde e ficou
espiando nossa brincadeira de rua. Era uma menina linda, esguia, de cabelos
loiros e olhos azuis como bolinhas de gude, lembrava uma pequena dinamarquesa. Morava
lá para baixo, mas não foi direto para casa. Ficou ali, tímida, só espiando. Eu
era a dona da brincadeira. Cheia de poder, conduzia o jogo, mandava aqui e ali,
elevava a voz até que minha mãe aparecesse no alpendre me chamando: Maria Luiza, mais baixo, isso não é modo de menina! E a Maria Helena ali, com
uma vontade imensa de entrar no jogo. Antes não tivesse chamado a menina para
brincar. Chamei. Ela entrou, ficou feliz, jogou pouco tempo até que chutou uma
pedra e seu dedo do pé abriu numa ferida muito feia, sangrou bastante.
Queríamos ajudá-la, eu queria chamar minha mãe, mas ela não deixou, só fazia
que não com a cabeça, foi embora, daquele jeito que acontece quando se a gente
falar uma palavra, começa a chorar. Na semana seguinte, na igreja, ensaiávamos
para a Primeira Comunhão. Vi Maria Helena, e ela também me viu. Nossos olhares
se cruzaram, e então eu olhei para seu pé, lembrando-me do machucado. Ela tinha
um pano enrolado no pé descalço.
Alguns dias mais tarde, ouvi minha mãe
ao telefone com minha tia. Minha mãe perguntava, assustada, a filha do Lorenzo? Sei, sei quem é. Ah meu
Deus, tétano, mas não tem jeito? Está mal, sei, sei. Senti uma zonzeira,
fiquei apavorada como quem cometeu um crime e teme ser descoberto. Fui atrás de
meu primo e ele já sabia, também sentia o mesmo medo meu, acho até que traçamos
algumas estratégias de fuga, pensávamos que seríamos presos. Não me lembro
exatamente quando tivemos que confessar o crime e quem nos livrou da culpa. Sei
que Maria Helena logo morreu, depois de ter sofrido horrores com o tétano. Não
tive culpa, mas eu me sentia culpada assim mesmo. Se bobear até hoje sinto essa
culpa. Como punição, segui pela vida com um medo danado do tétano. Não devia
ter chamado a menina para brincar, aí eu sentiria outra culpa, eu sei, mas ela
teria vivido, teria tido um amor, filhos, tristezas e alegrias, tudo que é da
vida e não da morte. Ainda era muito cedo pra morrer. Ela não chegou a fazer a
Primeira Comunhão. Aprendi que a culpa é uma das coisas mais difíceis dessa
vida. Mea culpa.
sábado, 18 de junho de 2016
VESTIDA DE PASSARINHOS
Ela estava encantada com o vestido
de passarinhos. É verdade que mais parecia um vestido de menina, e talvez fosse
exatamente por isso que ela se sentiu tão atraída pela roupa. Era um vestido
vermelho pintado de passarinhos azuis e verdes, assim, dois a dois em cima de
um galho e eram milhares de passarinhos. Como não se usa mais ir comprando
assim de tudo o que se vê, ela segurou o impulso, afinal não precisava mais de
nenhum vestido, ainda mais um vestido grande demais para seu tamanho. Mas ela
gostou tanto dele que chegou a sonhar já vestida de passarinhos. Aí se decidiu
e depois de decidido, foi acometida por uma sofreguidão intensa, uma urgência
descabida, era preciso adquirir logo antes que alguém o comprasse. Foi desabalada
para a loja, debaixo de um sol escaldante como se fosse salvar o planeta de uma
terrível catástrofe. Finalmente ele estava em seus braços e ela o abraçou forte
como se abraça um tesouro perdido e finalmente reencontrado. Agora a costureira
espetava os alfinetes aqui e ali para apertar o vestido, e também tecia elogios
para a estampa singela e original.
Foi
exatamente naquele momento que ela sofreu um ataque fulminante de ternura. Voltada
para o espelho, com o olhar perdido nos passarinhos, ela esboçou um sorriso gostoso
e sem pensar, sem compreender, mas com o coração transbordando de amor, falou
mais para si do que para a outra: “se minha mãe estivesse viva, ela ia gostar
muito desse vestido de passarinhos”. Imediatamente estranhou a própria fala,
pois não havia ensaiado e nem pensado nessa frase. Era como se tivesse sido
outra pessoa a falar e não ela, pois no momento, ela própria estava
transportada para outro mundo ou outra vida, tanto fazia. Foi algo que saiu do
âmago de sua alma. Aquela fala atravessou o tempo, idades, vidas, mundos, e
saiu como alguém que ressuscita ou que nasce ou como alguém que está em
completa paz. Aquela voz era dela e não era. Talvez fosse um quase falar
dormindo.
Naqueles
pequenos momentos, ela se lembrou de uma vida inteira, lembrou-se da mãe que
costurava cantando na velha máquina debaixo da janela do quarto do meio,
lembrou-se de seu estojo de corte e costura, das réguas, tesouras, moldes,
agulhas, linhas e retalhos espalhados pelo chão. Lembrou-se do riso das alegres
aprendizes de costura. Daí foi direto para a copa da casa da infância, com a
mesa de fórmica e as cadeiras coloridas, cada uma de uma cor. Viu os cachorros
lá fora, o piso de pedras, viu a escada de madeira, os quartos. Viu pela janela
da sala a enxurrada que descia com violência durante a chuva forte. Viu-se
acompanhando a mãe à sacristia da igreja para trocar as flores do altar. Tudo
isso em poucos minutos, enquanto a costureira a prendia em milhares de
alfinetes no vestido repleto de passarinhos. Ela admirou-se de como a vida podia
caber em apenas alguns minutos. O vestido era grande demais para ela.
Seus
olhos ameaçaram transbordar as lágrimas. Ela fungou constrangida. Contemplou o
vestido e achou-o lindo. Contemplou a vida e achou-a triste e bela. A
costureira acabara de espetar o último alfinete.
quarta-feira, 15 de junho de 2016
O PENSAMENTO DOS OUTROS
Estava
assistindo a um seriado do gênero fantástico pela televisão e algo me fez
pensar: a protagonista ganhou de um alienígena um colar com um pingente que lhe
dava o poder de ouvir os pensamentos das outras pessoas. Amedrontada, ela se
recusou a usar tal apetrecho, pois como estavam em um bar, logo um barulho
infernal se instalou em sua cabeça, e só aos poucos é que ela identificou o
pensamento de uma pessoa e outra. Bem, qual não foi sua surpresa ao chegar ao
ambiente de trabalho e constatar o que pensavam seus colegas, por exemplo, um
pensou: “ah como esta moça é antipática”, uma colega também pensou: “coitada, ela
não sabe que não se usa mais este tipo de roupa”. No entanto, ao se dirigirem
diretamente a ela, exclamaram: “bom dia!”, “você conseguiu terminar aquele
projeto?”. A moça ficou arrasada, deprimida mesmo. É verdade que ela não era muito
sociável, mas era amável com todos e nunca pensou que eles pudessem vê-la de
tal e tal maneira.
Aí
fiquei pensando - e se cada um de nós também ganhasse o pingente que faz ouvir
pensamentos? O que será que pensam de nós? Melhor não saber. Há quem diga: não
me importa o que pensam de mim. É fato, porém em tese, na teoria, não na
prática. Gostamos que gostem de nós, gostamos de elogios, não gostamos de
críticas. Dizem também que as críticas constroem e os elogios destroem. A
crítica já destruiu muita gente e o elogio também. Cada um é que tem que fazer
bom uso de um e de outro para seu próprio crescimento. Eu gosto de elogio, o
elogio é um incentivo. A crítica me faz sofrer, mas me faz pensar, refletir e
crescer. Posso seguir em frente um tanto machucada, mas é fato que crescemos é
no sofrimento. Não podemos ser reféns de elogios, mas não podemos ser reféns da
crítica também, ou seja, não podemos deixar que as críticas nos destruam.
Somos
humanos, demasiadamente humanos. No filme do seriado, os dois colegas de
trabalho da garota eram boas pessoas, tinham pensamentos bons e pensamentos
maus. Todos nós estamos sujeitos aos maus pensamentos, mas podemos melhorar,
podemos crescer. Quando a gente tem um mau pensamento acerca de uma pessoa, se
nos colocarmos no lugar dela, imediatamente reformulamos nosso pensamento, pois
o que não desejamos para nós, não desejamos para os outros, bem, isso se temos
um pingo de caráter, um pingo de humanidade, um pingo de caridade. Não temos
responsabilidade sobre o caráter dos outros, mas sobre o nosso sim.
Certa
vez li que uma pessoa deveria ser o que é em qualquer lugar, até e
principalmente em sua casa, sozinha. Quero dizer, se alguém come com elegância
em lugar público, também deveria fazê-lo em sua privacidade. Se não falamos mal
de determinada pessoa para outra porque não é correto, também não deveríamos
pensar mal dela. É que ocultamente achamos que estamos incólumes, que ninguém
nos julgará. Santa ingenuidade, ledo engano, é preciso cuidar do caráter, ou do
espírito, como cuidamos do corpo porque as coisas ocultas às vezes escapam sem
que a gente perceba. Sta. Teresa de Ávila sabiamente já dizia: “Nunca penseis
que há de ficar oculto o bem ou o mal que fizerdes”, ao que eu, ousadamente,
acrescento: também o bem ou o mal que pensardes. Os pensamentos e as emoções
são como crianças desordenadas nos primeiros tempos de escola. É preciso
vigiá-los constantemente.
Enfim, gente, é melhor não usar o pingente, é
melhor não saber o que pensam de nós. O melhor mesmo é que cuidemos do nosso
pensamento em relação aos outros, isso sim.
Vamos
melhorando ...
sábado, 11 de junho de 2016
O PRÍNCIPE
Quando
o príncipe bateu à minha porta, eu não podia saber ainda que era ele. Depois de
tantos desencontros, eu estava quase por desistir do homem que fosse um
companheiro para caminhar ao meu lado. Ele chegou de ônibus, e eu, nervosa, já
o espreitava do outro lado da rua. Eu colocava a mão em concha sobre os olhos
porque o sol da manhã de inverno era forte. Tudo o que eu sabia dele era muito
pouco e sua foto, bem, eu não me animei muito, isto por causa da bendita mania
que as mulheres têm de esperar um príncipe belíssimo numa carruagem dourada. Bom,
meu príncipe chegou de ônibus e não era belíssimo. Era calvo, magro na época,
um homem real de realidade e não de realeza. O meu real e não o idealizado. E
ele sorria de um jeito que não havia como não ser o amor de minha vida.
Tudo
bem, vamos falar a verdade, eu esperava um príncipe, como a maioria das
mulheres que um dia ousaram sonhar serem princesas. E daí? Como não? Logo eu
que nunca deixei de acreditar em reinos encantados, de fadas que usavam
varinhas com pó de estrelas e de príncipes reais? Não, eu não havia desistido
coisíssima nenhuma do homem que faria sentir-me uma rainha, ou uma princesa,
tanto fazia como tanto faz. E quando ele chegou sem carruagem e sem aspecto de príncipe, eu me
lembrei a tempo de que às vezes os príncipes chegam disfarçados até em sapos, imaginem,
ou simplesmente em homens comuns e vividos, com um passado de alegrias e dores
como todos os mortais. Então convinha ser cautelosa, pois quase sempre as
pessoas vivem disfarçadas, e é por baixo da pele que elas são de verdade e para
isso é preciso aprender a enxergar o que existe do lado de dentro.
Naquele
dia, justamente naquele dia eu sofria com uma dor de dente infernal, um canal
que nenhum dentista conseguia localizar. Mas conversamos, eu e ele. Eu,
“devastada de carência” como dizia Adélia Prado, e ele tímido, mas nem tanto. Ele
me olhava agudo direto nos olhos e sorria sempre. Ousou me fazer duas perguntas
que jamais esquecerei. Primeiro me perguntou qual era meu projeto de vida.
Surpresa, percebi que nunca nenhum homem até então me fizera tal pergunta. E
depois, pasmem, perguntou se eu gostava de sexo! Ousado ele, mas me fez sorrir.
Até hoje me faz sorrir, me protege como se eu fosse uma menina quando tenho
pesadelos, e também me faz rir quando estou triste. Nunca chegou até mim sem
estar acompanhado de uma gentileza inigualável, daquelas que só príncipes
encantados são credenciados para ter. Também faz comida cantando, me abraça
apertado para dar bom dia, e acha graça quando corro de baratas. Ele me
conhece, me consola, me conforta e me convence.
Contudo,
só tive mesmo a certeza de que era de fato o amor de minha vida quando o vi na
biblioteca lendo em pé alguma coisa que até hoje não sei. Eu não quis que ele
me visse, sei lá, talvez para não quebrar o encanto daquela cena. Então, me
escondi para observar melhor aquele homem que entrou em minha vida, ousado e
gentil, alimentando minha devastada carência, minha alma e corpo sequiosos de
amor. Só me lembro de que tive uma imensa vontade de chorar de ternura. Isso
seria o amor? Seria o amor por quem eu esperava desde a juventude? Era ele. Finalmente
o príncipe havia chegado.
quarta-feira, 8 de junho de 2016
ESCASSEZ E PROSPERIDADE
Ontem
comprei uma bolsa. Não precisava, mas comprei. Ao entrar em casa com o pacote, senti
uma pontinha de arrependimento porque quebrei minha meta de não comprar nada
que não seja absolutamente necessário. Aliás, no momento não se trata de querer
ou não querer, mas de não poder. O orçamento está apertado, eu sei, mas sou
mulher, e por que diabos as bolsas e sapatos exercem tamanho fascínio sobre as
mulheres? Sucumbi, pronto. Amanhã começo meu dia com novas e boas intenções de
conter os gastos desnecessários. Se fosse um livro, eu me sentiria mais
consolada.
Enfim,
li um artigo sobre o livro “Prosperidade sem crescimento”, do britânico Tim
Jackson, lançado no Brasil em novembro de 2013. Em uma entrevista, o autor questionou
o crescimento econômico como sinal de prosperidade, argumentando que
prosperidade engloba muito mais do que comprar, acumular e descartar. Este
crescimento tão almejado principalmente pelos países em desenvolvimento é
calcado no modelo econômico ocidental baseado no famigerado consumismo. Segundo
Jackson, ser próspero não significa poder comprar coisas e mais coisas, mas
estar bem, e enfatiza que algumas vezes a expansão da economia pode enfraquecer
a prosperidade que queremos.
O
escritor também lembrou que em 2050 haverá 9 bilhões de pessoas na Terra, e
este modelo de crescimento econômico que foi considerado símbolo de progresso
do século passado tem contribuído cada vez mais para causar impacto no meio
ambiente. Para reverter este quadro e lutar por uma vida melhor, ele nos
convida para um desafio: fazer o caminho de volta, libertar-se dessa ideia
obsessiva de crescimento econômico, libertar-se da cultura do consumo que nos
foi praticamente imposta, subliminarmente, é verdade, mas foi, assim como uma
dose diária de veneno que somente a longo prazo revela seu nefasto resultado. Esta
cultura do consumo veio ao encontro do egoísmo inerente ao homem, de sua
necessidade de ter e exibir um status perante o grupo. Porém o próprio homem se
tornou um prisioneiro em sua “gaiola de ferro”, expressão usada por Jackson
para a dependência do consumo.
Frases
como “meu sonho de consumo” e “quem não deve não tem” são ditas
despudoradamente e servem como incentivo e desculpa para quem ainda traz certa
culpa ao comprar de forma impulsiva. De repente aprendemos a viver dependentes
de uma porção de coisas que na realidade não nos fazem falta. A cultura do
consumismo também gerou consequentes mudanças em outras áreas como empresas em
que os funcionários se digladiam por uma posição melhor e renda melhor porque é
preciso atender às novas necessidades modernas. Quem não ambiciona crescer na
empresa, não liga para chegar num carrão, ou ser um chefe, não é bem visto pelo
grupo ou então é visto como um fracassado ou um esquisito.
Comprar
foi a grande epidemia da segunda metade do século passado. Mas este fenômeno
trouxe angústia, ansiedade e muita depressão. Faltou um componente básico:
felicidade. E esta felicidade decididamente não está nas coisas que compramos. O
fato é que realmente as pessoas estão saturadas e querem fazer o caminho de
volta. Só que toda libertação custa muito caro, mas este é um preço possível e esta
libertação, necessária. Evidentemente que ter dinheiro é bom, o que não é bom é
viver em função dele e ser participante dessa economia de excessos. A escassez
é saudável, não se trata de privação, mas viver com menos, cultivar outros
prazeres que não comprar.
Jackson
lembra que curiosamente a palavra prosperidade vem do latim “prosperare”: “obter
o que se deseja, ter sucesso”, e o que é melhor - “prosperus”: “afortunado”,
palavra que é formada por “pro”: a favor, mais “spes”: esperança. Portanto, vamos
ser prósperos no sentido da esperança de poder desmantelar essa estratégia de
consumismo desenfreado e construir habilidades mais humanas para todos se
saírem bem na sociedade, fora da ideia de mercado. Afinal, o homem, além de
naturalmente egoísta, é também um altruísta em potencial e sempre capaz de
gestos extraordinariamente altruístas.
domingo, 5 de junho de 2016
ALEGRIAS E AGONIAS DE MÃE
Uma noite dessas, eu já me preparava
para dormir quando mudando o canal da TV
dei com o “Animal Planet”. Parei. Algo prendeu minha atenção. Era uma
praia com milhares e milhares de focas. Machos, fêmeas e filhotes. Alguns de
barriga pra cima, outros se arrastando, parecia não haver um único lugar vago
em que não houvesse uma foca. A reportagem mostrava uma mãe foca angustiada,
desesperada, que por um ínfimo momento de negligência deixou o filhote passear
e o perdeu. Ela saiu a procurar por seu bebê e ele também andava a esmo,
perdido sem a mãe. De quando em quando ela soltava um grunhido de dor, cheirava
a areia procurando identificar naquele infinito de focas o cheiro do próprio filho.
Em vão. O filhote também cheirava o chão, subia em cima de outra foca que o
repelia, pois não era o seu filhote, vá entender, coisas da natureza. O
filhotinho também soltava grunhidos de medo e angústia e já apresentava sinais
de exaustão, desidratação e fome. Quando eu já me preparava para passar horas
insones de aflição e dor, eles se reencontraram. Cena linda e divina! A mãe alcançou
o pequeno e abraçou-o com aqueles braços e mãos de foca, e o filhote se enrodilhava
nela como se saciando de amor e proteção da mãe. Imediatamente começou a mamar
guloso e depois adormeceu enquanto a foca mãe mantinha vigilante o filhinho
aconchegado em seu colo ou seu corpo.
Naquela multidão de focas e
foquinhas iguaizinhos, a mãe sabia qual era o seu bebê, conhecia seu cheiro,
sabia que era ele ou ela. Isso me remeteu a outra cena de desespero de uma mãe
gorila que se arriscou num precipício para salvar seu filho, tarefa dificílima
porque poderiam ter morrido os dois, mas ela conseguiu, felizmente.
Lembrei-me de notícias de mães que
nunca aprenderam a nadar e se atiraram em águas profundas e geladas para salvar
seus filhos, de mães que lutaram com tigres, que enfrentaram cães ferozes.
Lembrei-me de minha mãe que nunca foi afeita a gestos de carinho (não se usava
abraçar salvo no aniversário e no Natal), e abraçou-me naquele medo de me
perder quando um carro quase me atropelou. Nunca pude me esquecer daquele seu
olhar de imenso terror e depois de alívio, tentando me justificar perante o
sujeito que saiu bravo do carro. No momento era tudo de que eu mais precisava
nos meus espinhosos treze anos, sofrendo de uma total inadequação à vida. Eu
sabia que se no futuro faltasse entendimento entre nós, eu jamais me esqueceria
de seu olhar compassivo, pois ela compreendeu minhas angústias na iminência de
me perder. Como eu a amei! Vendo o bebê foca com a mãe, lembrei-me de minha mãe
me abraçando.
Também lembrei-me com tristeza daquelas
contas de água e embalagens que trazem fotos de crianças desaparecidas. Pensei
no desespero de mães que nunca mais encontraram seus filhos. O sofrimento daquelas
que perdem os filhos também é devastador, mas uma vez sepultados, é possível
que um dia possam dormir tranquilas porque sabem que a história teve um fim,
por mais triste que tenha sido. Que dizer daquelas que nunca mais souberam do
paradeiro de seus filhotes? que nunca souberam se estariam bem tratados ou
sofrendo toda espécie de horror? Nem ouso pensar nisso.
A
ligação entre mãe e filho é algo muito além de nossa imaginação ou compreensão.
Elas próprias, as mães, não sabem avaliar a magnitude deste elo, apenas o
sentem de modo avassalador e surpreendente. Mães são um mistério. Parece que
trazem dentro de si verdadeiros exércitos com legiões de soldados preparados em
ordem de ataque, vulcões em ebulição, ou tornados que levantam casas, carros e
arrancam árvores. É força sobre-humana de amor puro, ousado, incondicional,
inigualável, inominável. Dizem que algumas células dos filhos ficam
incorporadas ao corpo da mãe e vice-versa. Convém não esquecer que as mães já
alimentam seus filhos dentro do útero. Assim, não é de se estranhar que elas
sejam capazes de proezas inacreditáveis como levantar carros e nadar quando
nunca o fizeram antes, tudo para salvar seus filhos.
Tudo
bem quando tudo acaba bem. Oxalá todas as mães do mundo pudessem salvar seus
filhos de todos os perigos, mas nem sempre é assim. A reportagem da TV dizia
que muitos bebês focas acabam sendo pisoteados pelos machos que sequer os veem
ou morrem de fome e sede. E as mães focas continuam procurando por eles
incansavelmente até que se dão conta de que não vai ser mais possível
salvá-los. É da vida. Vamos seguindo ...
quarta-feira, 1 de junho de 2016
Avatares: de vez em quando até que não seria má ideia!
Num dia desses aí assisti mais uma
vez ao filme “Avatar”, de James Cameron. Como sou apaixonada por ficção
futurística, este filme de alguns anos atrás atendeu a todas minhas
expectativas, pudera, foi um estouro de bilheteria e mais um sucesso do
talentoso produtor. Combinando tecnologia e natureza, o resultado obtido foi
uma explosão de beleza e sensibilidade até para os que não gostam deste tipo de
filme. Mas venhamos e convenhamos, quem não gostaria de viver em Pandora, com
suas montanhas flutuantes e formas de vida que brilham no escuro? Ou em
Pasárgada de Manuel Bandeira, onde se é “amigo do rei”, pretendendo fazer um
ousado paralelo. Afinal, quem não gostaria de pelo menos de vez em quando, ausentar-se
de si mesmo para, contraditoriamente, não deixando de ser o próprio, poder
realizar ousados e secretos desejos e o que é melhor – desembaraçando-se de
peias que atravancam o que na imaginação é possível e no real não o é?
No filme acontece o seguinte: ao
tempo em que o protagonista dorme ou entra em uma espécie de coma profundo,
ausenta-se do próprio corpo e passa a ocupar um novo invólucro ou ainda um
avatar criado, saudável e perfeito, uma experiência maravilhosa para Jake Sully
que, sendo paraplégico, consegue andar, correr, sentir o contato dos pés com a
terra e realizar proezas incríveis como voar. Este avatar ocupado por Jake traz
para ele a liberdade perdida, a autonomia sonhada. Avatar, vocábulo originário
do sânscrito, significa a “descida do céu à terra”, reencarnação de um deus num
ser humano, proporcionando uma liberdade poderosa e divina, que possibilita à
pessoa existir sem as amarras que aprisionam tanto o corpo como a mente. Pois
é, de vez em quando, até que não seria má ideia, quero dizer, tirar férias da
gente mesmo, principalmente nos aborrecimentos, nas doenças, nas carências, nas
impossibilidades, e poder voar como um pássaro liberto.
A experiência é fascinante e
tentadora. Já pensaram? As mulheres obsecadas por um corpo perfeito ou pela
juventude perdida correriam em busca de avatares nos moldes de La Bündchen ou
de outras belíssimas, os criminosos poderiam se esconder em outros corpos e
noutros lugares. Cansados dos problemas, das doenças que fazem doer o corpo e a
alma, ou mesmo cansados da mesmice dos dias, aí dormimos, vestimos outro corpo
e vamos viver em outros cantos com outras gentes, porém com outros novos
problemas, o que dá no mesmo. Faz-me lembrar o caso de uma senhora que recebeu
um exame trocado em que acusava uma doença. Ela, bem humorada, disse: “acho que
vou ficar com este exame mesmo, vai que o meu está pior ...” Ou ainda aquilo
que costumam dizer que se a gente pudesse levar nossa cruz e depositar em um
monte cheio de cruzes, acabaríamos por pegar a nossa de volta, pois não
sabíamos que as dos outros eram bem piores.
Outros filmes também abordaram este
tema, como “Os substitutos” com Bruce Willis no papel principal. As pessoas
fugiam de seus problemas, abandonavam a vida real por uma realidade virtual.
Utilizavam belos robôs para os substituírem, até descobrirem que a máquina
também tem seus defeitos. Este filme foi considerado medíocre pela crítica, mas
a vale a reflexão sobre o tema.
Bem, avatares à parte, pois ficção é
ficção, pelo menos por enquanto, temos que contar mesmo é com nosso próprio
corpo e alma. Posto isso, como diz Elika Takimoto, tratemos muito bem deles.
Resta-nos viver como humanos que somos, procurar a conformidade e alegria que
podem nos levar a amar ao próximo como a nós mesmos, numa luta que nunca
deixará de ser nobre e digna, num mundo que sempre será “muito misturado”,
expressão usada por Riobaldo, personagem do “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães
Rosa. Inconformado, Riobaldo queria que o “bom fosse bom” e o “ruim, ruim”,
coisa difícil de compreender e mais difícil ainda de separar, pois ninguém é
totalmente mau, nem totalmente bom. Para viver, “carece de ter coragem” e
apesar de todos os pesares, ainda é bom ser a gente mesmo!
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