quarta-feira, 29 de junho de 2016

FESTA JUNINA





De sua janela, Dona Marianinha assistia a toda a movimentação dos preparos para a festa junina. É junho outra vez, meu Deus, como o tempo passa! Lembrou-se ela do marido falecido há alguns anos no mesmo mês. Ela era apaixonadíssima por ele, e sofrera muito com sua morte. Verdade seja dita: o homem tinha um ciúme de doido e Dona Marianinha não podia dar um passo sem dar conta de onde ia. Era da casa pra igreja e da igreja pra casa. Sua maior vontade era dançar na festa junina e todo ano ela ficava namorando aquela festa alegre. Armavam as barracas, o tablado, enfeitavam com bambuzinhos verdes e bandeirinhas coloridas. A fogueira crepitava, lançando chamas que quase voavam até sua varanda, iluminando a noite escura e fria. Chegavam os sanfoneiros, os cantores e os pares fantasiados. A música mexia com ela e ela mexia os quadris com os cotovelos apoiados na janela. Meu Deus, que vontade de dançar a quadrilha! Quando o marido era vivo, não podia nem ouvir falar no assunto, era homem sério demais para essas festas. Agora bem que podia, era viúva, os filhos não mais moravam com ela. Era livre, por que não? Como se aquilo tivesse sido decidido há muito tempo, a viúva tratou de se preparar. Achou um vestido xadrez amarelo, colocou um xale, pintou a boca de vermelho e seja o que Deus quiser, estou cansada dessa vida certinha, a gente morre aí e não vive nada, não faz o que tem vontade. A mulher saiu decidida, chegou ao local coalhado de gente. Havia jovens, crianças e velhos. Sem se importar com o que podiam falar, dançou, tomou quentão, sentindo uma liberdade pra lá de gostosa! De repente recebeu um bilhete de namorado, desses que distribuem nas festas juninas. Ficou imaginando de quem poderia ser, afinal ela já era uma senhora, devia ser alguma brincadeira, mas gostou, quem tá na chuva é pra se molhar. Mas eis que apareceu o autor, era um dos sanfoneiros que também ficara viúvo há pouco tempo. Dançaram, conversaram e antes da festa junina do próximo ano já estavam casados. Nunca perderam mais festas, especialmente as juninas. Dona Marianinha, feliz da vida, costumava aconselhar as moças que encontrava no salão da Gertrude: olha gente, a vida não foi feita pra gente ficar assistindo, mas pra viver, pra fazer o que tem vontade e pra ser feliz! Passa tudo rápido demais da conta! Dá um pulinho na festa junina e depois me conta!     

terça-feira, 28 de junho de 2016

DEMÊNCIA, O RESGATE DA TERNURA





 A velhice chega e chegará para todos, a menos que a morte se adiante em sua jornada. Mas falo sobre pais velhinhos e sobre as dificuldades de relacionamento que os filhos encontram nesta fase de suas vidas. E a velhice também pode trazer a demência, o que certamente piora a situação, pois nesse caso não há um só argumento para usar com os velhos pais. Só nos restará o exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e apavorados, consultam a folha sobre as características da demência, item por item. Reconhecem quase todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que o casal fica demente ou um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o outro se torna demente. As famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse caso, pois numerosas, lá estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de revezamento para cuidar dos pais. Nem sempre. Há que se considerar que como as pessoas são humanas demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida de demência é mais um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos homens são mais raros nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre. Há filhos homens dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade do que qualquer enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um caso.
            Lidar com a demência senil é tarefa delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida. Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu. Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira exacerbado, que a convivência fica quase impossível.   
            Não nos esqueçamos dos casos em que a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque perdeu a paciência, e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.     
             Evidentemente, todo esse caos familiar vai se estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando chegava quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria essa moça que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria chamá-la saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de quando essa preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha mãe, que até então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara lucidez no meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...” ao que eu me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela voltaria, mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia se esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário dizer que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe, até que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos muitas decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha tia: “onde tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com nenhuma ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam:  “mas ninguém mesmo?” outros ainda insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar mesmo ninguém?   
Não há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso demente que não seja o do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando nos olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo. Despendendo tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão prazer, que os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de cuidados é muito precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das feridas emocionais, do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava escondida. Ainda sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe, quando ficávamos de mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca de carinhos que nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por um segundo sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha lembrança aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos bolsos ou entre os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos em frente à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e que fizemos três dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também em seguida. Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo o período difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.          
Num dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado, tentando preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os ajudasse, o conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr. Fulano”, depois riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e já não entendemos o restante, não tem final, parece que não conseguiram concluir. Tampouco enviaram a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de expor seus medos, suas inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na época as providências para a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto eles, era o início daquela desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele bilhete com tanto amor e tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero que esse amor e essa ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso coração o tempo todo. Também olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco quando ainda éramos crianças, olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua confiança no futuro cheio de projetos.  Ainda são eles, são os nossos velhos.
A princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha, dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de todas as nossas experiências. Nunca saberemos por que tivemos que passar por isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar por outros dramas, são mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei, podemos transformar o sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da velhice uma época em que podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos, como naquela agradável viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que o trem chegue seguro ao seu destino final e saberemos que a viagem terá valido a pena.  


sexta-feira, 24 de junho de 2016

"TENHO MEDO, LOGO EXISTO."




Quando ando pelas ruas ou quando estou sozinha arranjando a casa, sempre estou acompanhada de pensamentos desordenados e incontroláveis como cavalos selvagens. Penso em tudo, desde as mais esquecidas lembranças de menina, cenas de filmes ou parágrafos poéticos de livros e até o que preciso comprar no supermercado. Todos esses pensamentos vêm atabalhoadamente, misturando-se, girando incessantemente, vão e voltam trazendo outros tantos novos. Até hoje não aprendi a controlá-los. Penso que isso é meio louco, no entanto é bom porque muitas vezes é num pensamento fugidio que dispara em um voo cego em minha cabeça é que agarro a inspiração de alguma coisa bonita que mereça ser registrada. 
Bem, lembrei-me de quando deixei a casa de meus pais para viver sozinha. Minha mãe, ainda de um tempo bem mais antigo, deixou claro que moça solteira só deixava a casa paterna para se casar e que o lugar da filha que ainda não tinha se casado ou não ia se casar era ao lado dos pais. Argumentei com ela. Disse-lhe que pela lei natural da vida, os pais partem antes dos filhos e que se assim se passasse conosco, eu, que sempre fui pessoa tão sensível, teria muita dificuldade em aprender a viver sozinha. Ela ficou pensativa de um jeito tal como se esta situação nunca tivesse lhe ocorrido, e acabou se rendendo. Embora eu tivesse apenas mudado de casa e não de cidade, nem de país e nem de pais, senti um certo tremor porque palavra de mãe é como uma espada afiada, um descuido e a gente se corta. Mãe quase sempre tem razão. E quando ela falou a frase: Maria Luiza, você me mude o nome se não estiver de volta em dois meses! Aí gelei.
Naquela época, ainda se dizia em tons maliciosos: aquela moça é solteira e mora sozinha. Eu, orgulhosa de quebrar paradigmas, sentia-me empolgada e famosa como a fascinante *Amelia Earhart em seus voos maravilhosos rasgando os céus sobre os oceanos ou como uma pequena feminista que acabou de ser aceita para um importante aprendizado num grupo fechadíssimo de mulheres corajosas. Mas não era bem assim. Uma coisa é como as pessoas nos veem e outra é como somos de verdade. Logo constatei que morar sozinha tinha o ônus e o bônus, como qualquer situação na vida.
Por exemplo, desfrutaria do silêncio tão necessário, poderia deixar minha cama desarrumada pelo dia todo, assistiria televisão até a hora que bem entendesse, e outras vantagens desse tipo. Tudo bem, só que quando caía a noite, eu que sempre fui muito medrosa de tudo, desde assaltantes, baratas e principalmente de fantasmas, bem, eu me sentia desconfortável. Quando o medo era de fantasmas eu deixava as luzes acesas, mas às vezes quando o pavor insuportável me dominava eu corria para a casa paterna. Se o medo era de barata, eu deixava panos de chão dispostos estrategicamente em baixo da porta para bloquear os inoportunos insetos. Para evitar catástrofes em minha cozinha eu almoçava na casa de minha mãe e aproveitava para fazer uma trouxa de roupas mais difíceis de lavar que ficavam por lá. E minha mãe, que nunca teve papas na língua, nem pejo para reclamar do que fosse, dizia: assim é fácil morar sozinha ... até eu! E sorria sarcástica e divertida.

Meus primeiros tempos de Amelia Earhart ao morar sozinha foram pueris. Era quase como brincar de casinha e fazer cozidinho de meninas em tijolos imitando fogãozinho. De casinha em casinha fui aprendendo a ser dona de casa, e até bolo de nozes aprendi, olha só! Porém logo compreendi que havia um bilhão de anos luz entre mim e Amelia Earhart. Eu não era corajosa. Não sei não. Será que não era? Segurei a mão de minha mãe quando ela deixava esta vida para entrar nos bulevares celestiais. Encarei fazer o papel de Inês de Castro e de Edipo já com idade para ser mãe de minhas colegas! Amei ser atriz de faz de conta, emocionei-me e emocionei a plateia. Talvez todas as mulheres tenham algo de Amelia Earhart e talvez a própria Amelia Earhart tivesse um pouquinho de medo como todo mundo. Afinal, como dizia Roland Barthes: “tenho medo, logo existo.”  

quinta-feira, 23 de junho de 2016

ÚLTIMO DIA DE UM GORILA




            Harambe acordou naquele dia com aquela sensação de desconforto. Era um mal estar interior, embora ele soubesse que não era exatamente uma sensação de fome. Já estava alimentado com frutas e legumes. Ficou um tempo olhando para o chão, para os pés. Depois levantou os olhos e suspirou profundamente. Aqueles seres esquisitos já estavam chegando. Ele sabia que daquele momento em diante ouviria gritos, e seria alvo de exclamações. Havia seres grandes e outros pequenos, ele pensava ou intuía, tal como eram sua mãe e ele juntos. Harambe não se lembrava exatamente da mãe, mas no seu íntimo sabia que houvera uma gorila que tinha cuidado dele. Ele havia conhecido o amor de ser amamentado e afagado. Ser cuidado e amado incondicionalmente é algo inesquecível para os animais, até para os humanos.   
            O dia de seu sequestro também havia ficado gravado no íntimo de sua alma, bem, não posso afirmar que seria alma, mas se não fosse alma, seria algo muito parecido. Ser arrancado da mãe é absurdamente doloroso, talvez mais doloroso ainda é assistir a sua morte. Ele se lembrava do medo, sabia que haveria de dormir e acordar com o medo, sabia que jamais se livraria dele. Também se lembrava e sentia a angústia da separação, pois não só os humanos sentem angústia, mas os animais também, e ainda são poucos os que os defendem. Sua mãe havia sido morta, assassinada e ele colocado numa gaiola de ferros. De repente foi sendo afastado para longe de sua casa, a grande floresta, deixava as árvores, o vento e o cheiro da mata para sempre. Para sempre. Durante a viagem, um humano vinha alimentá-lo com algo esquisito. Queria o leite da mãe. Que nada! Nem leite nem mãe, nem o rumor das folhas.
            Neste momento de lembranças difusas, lapsos mentais animais ou qualquer outra coisa que possa definir o que os animais têm ou sentem, o sofrimento batia forte, e era isto que Harambe sentia: sofrimento. Para aplacar a dor de ser órfão e viver em cativeiro, ele descobriu que uma coisa aliviava a dor de existir: bater a cabeça com força nas grades. Ele agarrava os ferros e batia a cabeça com toda a força até doer e doer muito. A dor física o fazia esquecer o passado perdido. Isto arrancava aplausos da multidão de humanos grandes e pequenos. Que aplaudissem, tanto fazia, só queria sentir alívio para a sua dor.
            De repente um garotinho travesso ainda inocente apareceu ao seu lado. Era um pequeno ser, infinitamente menor do que ele, o grande gorila de 17 anos e 180 quilos. Era quase um bebê. Inconsciente de seu tamanho e força, Harambe puxou o menino para si, talvez quisesse abraçá-lo, confortá-lo, sentir seu cheiro, seu amor, afinal era tão pequeno quanto ele quando foi arrancado de sua mãe. Quem sabe gostaria de ir para a água, ele próprio amava os rios! Mas enquanto arrastava o pequeno para a água, Harambe foi abatido com vários tiros pelos funcionários do Zoológico. Eles não sabiam, mas libertaram Harambe. Sim, eles o libertaram da dor de ter que bater sua cabeça nas grades por muito mais anos.

            Zoológico, o que é isto? Apenas um circo de horrores. Nada mais do que isso. Haverá um tempo em que animais e humanos poderão conviver com respeito e amor. Mas para que isso aconteça, o homem precisará se elevar acima das pequenezas humanas. Bastaria ver os olhos tristíssimos de Harambe, ainda que morto.         

quarta-feira, 22 de junho de 2016

MEA CULPA





Ela apareceu naquela tarde e ficou espiando nossa brincadeira de rua. Era uma menina linda, esguia, de cabelos loiros e olhos azuis como bolinhas de gude, lembrava uma pequena dinamarquesa. Morava lá para baixo, mas não foi direto para casa. Ficou ali, tímida, só espiando. Eu era a dona da brincadeira. Cheia de poder, conduzia o jogo, mandava aqui e ali, elevava a voz até que minha mãe aparecesse no alpendre me chamando: Maria Luiza, mais baixo, isso não é modo de menina! E a Maria Helena ali, com uma vontade imensa de entrar no jogo. Antes não tivesse chamado a menina para brincar. Chamei. Ela entrou, ficou feliz, jogou pouco tempo até que chutou uma pedra e seu dedo do pé abriu numa ferida muito feia, sangrou bastante. Queríamos ajudá-la, eu queria chamar minha mãe, mas ela não deixou, só fazia que não com a cabeça, foi embora, daquele jeito que acontece quando se a gente falar uma palavra, começa a chorar. Na semana seguinte, na igreja, ensaiávamos para a Primeira Comunhão. Vi Maria Helena, e ela também me viu. Nossos olhares se cruzaram, e então eu olhei para seu pé, lembrando-me do machucado. Ela tinha um pano enrolado no pé descalço.

Alguns dias mais tarde, ouvi minha mãe ao telefone com minha tia. Minha mãe perguntava, assustada, a filha do Lorenzo? Sei, sei quem é. Ah meu Deus, tétano, mas não tem jeito? Está mal, sei, sei. Senti uma zonzeira, fiquei apavorada como quem cometeu um crime e teme ser descoberto. Fui atrás de meu primo e ele já sabia, também sentia o mesmo medo meu, acho até que traçamos algumas estratégias de fuga, pensávamos que seríamos presos. Não me lembro exatamente quando tivemos que confessar o crime e quem nos livrou da culpa. Sei que Maria Helena logo morreu, depois de ter sofrido horrores com o tétano. Não tive culpa, mas eu me sentia culpada assim mesmo. Se bobear até hoje sinto essa culpa. Como punição, segui pela vida com um medo danado do tétano. Não devia ter chamado a menina para brincar, aí eu sentiria outra culpa, eu sei, mas ela teria vivido, teria tido um amor, filhos, tristezas e alegrias, tudo que é da vida e não da morte. Ainda era muito cedo pra morrer. Ela não chegou a fazer a Primeira Comunhão. Aprendi que a culpa é uma das coisas mais difíceis dessa vida. Mea culpa.

sábado, 18 de junho de 2016

VESTIDA DE PASSARINHOS





            Ela estava encantada com o vestido de passarinhos. É verdade que mais parecia um vestido de menina, e talvez fosse exatamente por isso que ela se sentiu tão atraída pela roupa. Era um vestido vermelho pintado de passarinhos azuis e verdes, assim, dois a dois em cima de um galho e eram milhares de passarinhos. Como não se usa mais ir comprando assim de tudo o que se vê, ela segurou o impulso, afinal não precisava mais de nenhum vestido, ainda mais um vestido grande demais para seu tamanho. Mas ela gostou tanto dele que chegou a sonhar já vestida de passarinhos. Aí se decidiu e depois de decidido, foi acometida por uma sofreguidão intensa, uma urgência descabida, era preciso adquirir logo antes que alguém o comprasse. Foi desabalada para a loja, debaixo de um sol escaldante como se fosse salvar o planeta de uma terrível catástrofe. Finalmente ele estava em seus braços e ela o abraçou forte como se abraça um tesouro perdido e finalmente reencontrado. Agora a costureira espetava os alfinetes aqui e ali para apertar o vestido, e também tecia elogios para a estampa singela e original.
Foi exatamente naquele momento que ela sofreu um ataque fulminante de ternura. Voltada para o espelho, com o olhar perdido nos passarinhos, ela esboçou um sorriso gostoso e sem pensar, sem compreender, mas com o coração transbordando de amor, falou mais para si do que para a outra: “se minha mãe estivesse viva, ela ia gostar muito desse vestido de passarinhos”. Imediatamente estranhou a própria fala, pois não havia ensaiado e nem pensado nessa frase. Era como se tivesse sido outra pessoa a falar e não ela, pois no momento, ela própria estava transportada para outro mundo ou outra vida, tanto fazia. Foi algo que saiu do âmago de sua alma. Aquela fala atravessou o tempo, idades, vidas, mundos, e saiu como alguém que ressuscita ou que nasce ou como alguém que está em completa paz. Aquela voz era dela e não era. Talvez fosse um quase falar dormindo.
Naqueles pequenos momentos, ela se lembrou de uma vida inteira, lembrou-se da mãe que costurava cantando na velha máquina debaixo da janela do quarto do meio, lembrou-se de seu estojo de corte e costura, das réguas, tesouras, moldes, agulhas, linhas e retalhos espalhados pelo chão. Lembrou-se do riso das alegres aprendizes de costura. Daí foi direto para a copa da casa da infância, com a mesa de fórmica e as cadeiras coloridas, cada uma de uma cor. Viu os cachorros lá fora, o piso de pedras, viu a escada de madeira, os quartos. Viu pela janela da sala a enxurrada que descia com violência durante a chuva forte. Viu-se acompanhando a mãe à sacristia da igreja para trocar as flores do altar. Tudo isso em poucos minutos, enquanto a costureira a prendia em milhares de alfinetes no vestido repleto de passarinhos. Ela admirou-se de como a vida podia caber em apenas alguns minutos. O vestido era grande demais para ela. 
Seus olhos ameaçaram transbordar as lágrimas. Ela fungou constrangida. Contemplou o vestido e achou-o lindo. Contemplou a vida e achou-a triste e bela. A costureira acabara de espetar o último alfinete. 


                                                                                              

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O PENSAMENTO DOS OUTROS





Estava assistindo a um seriado do gênero fantástico pela televisão e algo me fez pensar: a protagonista ganhou de um alienígena um colar com um pingente que lhe dava o poder de ouvir os pensamentos das outras pessoas. Amedrontada, ela se recusou a usar tal apetrecho, pois como estavam em um bar, logo um barulho infernal se instalou em sua cabeça, e só aos poucos é que ela identificou o pensamento de uma pessoa e outra. Bem, qual não foi sua surpresa ao chegar ao ambiente de trabalho e constatar o que pensavam seus colegas, por exemplo, um pensou: “ah como esta moça é antipática”, uma colega também pensou: “coitada, ela não sabe que não se usa mais este tipo de roupa”. No entanto, ao se dirigirem diretamente a ela, exclamaram: “bom dia!”, “você conseguiu terminar aquele projeto?”. A moça ficou arrasada, deprimida mesmo. É verdade que ela não era muito sociável, mas era amável com todos e nunca pensou que eles pudessem vê-la de tal e tal maneira.
Aí fiquei pensando - e se cada um de nós também ganhasse o pingente que faz ouvir pensamentos? O que será que pensam de nós? Melhor não saber. Há quem diga: não me importa o que pensam de mim. É fato, porém em tese, na teoria, não na prática. Gostamos que gostem de nós, gostamos de elogios, não gostamos de críticas. Dizem também que as críticas constroem e os elogios destroem. A crítica já destruiu muita gente e o elogio também. Cada um é que tem que fazer bom uso de um e de outro para seu próprio crescimento. Eu gosto de elogio, o elogio é um incentivo. A crítica me faz sofrer, mas me faz pensar, refletir e crescer. Posso seguir em frente um tanto machucada, mas é fato que crescemos é no sofrimento. Não podemos ser reféns de elogios, mas não podemos ser reféns da crítica também, ou seja, não podemos deixar que as críticas nos destruam.
Somos humanos, demasiadamente humanos. No filme do seriado, os dois colegas de trabalho da garota eram boas pessoas, tinham pensamentos bons e pensamentos maus. Todos nós estamos sujeitos aos maus pensamentos, mas podemos melhorar, podemos crescer. Quando a gente tem um mau pensamento acerca de uma pessoa, se nos colocarmos no lugar dela, imediatamente reformulamos nosso pensamento, pois o que não desejamos para nós, não desejamos para os outros, bem, isso se temos um pingo de caráter, um pingo de humanidade, um pingo de caridade. Não temos responsabilidade sobre o caráter dos outros, mas sobre o nosso sim.  
Certa vez li que uma pessoa deveria ser o que é em qualquer lugar, até e principalmente em sua casa, sozinha. Quero dizer, se alguém come com elegância em lugar público, também deveria fazê-lo em sua privacidade. Se não falamos mal de determinada pessoa para outra porque não é correto, também não deveríamos pensar mal dela. É que ocultamente achamos que estamos incólumes, que ninguém nos julgará. Santa ingenuidade, ledo engano, é preciso cuidar do caráter, ou do espírito, como cuidamos do corpo porque as coisas ocultas às vezes escapam sem que a gente perceba. Sta. Teresa de Ávila sabiamente já dizia: “Nunca penseis que há de ficar oculto o bem ou o mal que fizerdes”, ao que eu, ousadamente, acrescento: também o bem ou o mal que pensardes. Os pensamentos e as emoções são como crianças desordenadas nos primeiros tempos de escola. É preciso vigiá-los constantemente.
 Enfim, gente, é melhor não usar o pingente, é melhor não saber o que pensam de nós. O melhor mesmo é que cuidemos do nosso pensamento em relação aos outros, isso sim.
Vamos melhorando ...    







sábado, 11 de junho de 2016

O PRÍNCIPE




Quando o príncipe bateu à minha porta, eu não podia saber ainda que era ele. Depois de tantos desencontros, eu estava quase por desistir do homem que fosse um companheiro para caminhar ao meu lado. Ele chegou de ônibus, e eu, nervosa, já o espreitava do outro lado da rua. Eu colocava a mão em concha sobre os olhos porque o sol da manhã de inverno era forte. Tudo o que eu sabia dele era muito pouco e sua foto, bem, eu não me animei muito, isto por causa da bendita mania que as mulheres têm de esperar um príncipe belíssimo numa carruagem dourada. Bom, meu príncipe chegou de ônibus e não era belíssimo. Era calvo, magro na época, um homem real de realidade e não de realeza. O meu real e não o idealizado. E ele sorria de um jeito que não havia como não ser o amor de minha vida.
Tudo bem, vamos falar a verdade, eu esperava um príncipe, como a maioria das mulheres que um dia ousaram sonhar serem princesas. E daí? Como não? Logo eu que nunca deixei de acreditar em reinos encantados, de fadas que usavam varinhas com pó de estrelas e de príncipes reais? Não, eu não havia desistido coisíssima nenhuma do homem que faria sentir-me uma rainha, ou uma princesa, tanto fazia como tanto faz. E quando ele chegou sem carruagem e sem aspecto de príncipe, eu me lembrei a tempo de que às vezes os príncipes chegam disfarçados até em sapos, imaginem, ou simplesmente em homens comuns e vividos, com um passado de alegrias e dores como todos os mortais. Então convinha ser cautelosa, pois quase sempre as pessoas vivem disfarçadas, e é por baixo da pele que elas são de verdade e para isso é preciso aprender a enxergar o que existe do lado de dentro.
Naquele dia, justamente naquele dia eu sofria com uma dor de dente infernal, um canal que nenhum dentista conseguia localizar. Mas conversamos, eu e ele. Eu, “devastada de carência” como dizia Adélia Prado, e ele tímido, mas nem tanto. Ele me olhava agudo direto nos olhos e sorria sempre. Ousou me fazer duas perguntas que jamais esquecerei. Primeiro me perguntou qual era meu projeto de vida. Surpresa, percebi que nunca nenhum homem até então me fizera tal pergunta. E depois, pasmem, perguntou se eu gostava de sexo! Ousado ele, mas me fez sorrir. Até hoje me faz sorrir, me protege como se eu fosse uma menina quando tenho pesadelos, e também me faz rir quando estou triste. Nunca chegou até mim sem estar acompanhado de uma gentileza inigualável, daquelas que só príncipes encantados são credenciados para ter. Também faz comida cantando, me abraça apertado para dar bom dia, e acha graça quando corro de baratas. Ele me conhece, me consola, me conforta e me convence.

Contudo, só tive mesmo a certeza de que era de fato o amor de minha vida quando o vi na biblioteca lendo em pé alguma coisa que até hoje não sei. Eu não quis que ele me visse, sei lá, talvez para não quebrar o encanto daquela cena. Então, me escondi para observar melhor aquele homem que entrou em minha vida, ousado e gentil, alimentando minha devastada carência, minha alma e corpo sequiosos de amor. Só me lembro de que tive uma imensa vontade de chorar de ternura. Isso seria o amor? Seria o amor por quem eu esperava desde a juventude? Era ele. Finalmente o príncipe havia chegado.   

quarta-feira, 8 de junho de 2016

ESCASSEZ E PROSPERIDADE



           
Ontem comprei uma bolsa. Não precisava, mas comprei. Ao entrar em casa com o pacote, senti uma pontinha de arrependimento porque quebrei minha meta de não comprar nada que não seja absolutamente necessário. Aliás, no momento não se trata de querer ou não querer, mas de não poder. O orçamento está apertado, eu sei, mas sou mulher, e por que diabos as bolsas e sapatos exercem tamanho fascínio sobre as mulheres? Sucumbi, pronto. Amanhã começo meu dia com novas e boas intenções de conter os gastos desnecessários. Se fosse um livro, eu me sentiria mais consolada.
Enfim, li um artigo sobre o livro “Prosperidade sem crescimento”, do britânico Tim Jackson, lançado no Brasil em novembro de 2013. Em uma entrevista, o autor questionou o crescimento econômico como sinal de prosperidade, argumentando que prosperidade engloba muito mais do que comprar, acumular e descartar. Este crescimento tão almejado principalmente pelos países em desenvolvimento é calcado no modelo econômico ocidental baseado no famigerado consumismo. Segundo Jackson, ser próspero não significa poder comprar coisas e mais coisas, mas estar bem, e enfatiza que algumas vezes a expansão da economia pode enfraquecer a prosperidade que queremos.
O escritor também lembrou que em 2050 haverá 9 bilhões de pessoas na Terra, e este modelo de crescimento econômico que foi considerado símbolo de progresso do século passado tem contribuído cada vez mais para causar impacto no meio ambiente. Para reverter este quadro e lutar por uma vida melhor, ele nos convida para um desafio: fazer o caminho de volta, libertar-se dessa ideia obsessiva de crescimento econômico, libertar-se da cultura do consumo que nos foi praticamente imposta, subliminarmente, é verdade, mas foi, assim como uma dose diária de veneno que somente a longo prazo revela seu nefasto resultado. Esta cultura do consumo veio ao encontro do egoísmo inerente ao homem, de sua necessidade de ter e exibir um status perante o grupo. Porém o próprio homem se tornou um prisioneiro em sua “gaiola de ferro”, expressão usada por Jackson para a dependência do consumo.
Frases como “meu sonho de consumo” e “quem não deve não tem” são ditas despudoradamente e servem como incentivo e desculpa para quem ainda traz certa culpa ao comprar de forma impulsiva. De repente aprendemos a viver dependentes de uma porção de coisas que na realidade não nos fazem falta. A cultura do consumismo também gerou consequentes mudanças em outras áreas como empresas em que os funcionários se digladiam por uma posição melhor e renda melhor porque é preciso atender às novas necessidades modernas. Quem não ambiciona crescer na empresa, não liga para chegar num carrão, ou ser um chefe, não é bem visto pelo grupo ou então é visto como um fracassado ou um esquisito.
Comprar foi a grande epidemia da segunda metade do século passado. Mas este fenômeno trouxe angústia, ansiedade e muita depressão. Faltou um componente básico: felicidade. E esta felicidade decididamente não está nas coisas que compramos. O fato é que realmente as pessoas estão saturadas e querem fazer o caminho de volta. Só que toda libertação custa muito caro, mas este é um preço possível e esta libertação, necessária. Evidentemente que ter dinheiro é bom, o que não é bom é viver em função dele e ser participante dessa economia de excessos. A escassez é saudável, não se trata de privação, mas viver com menos, cultivar outros prazeres que não comprar.    
Jackson lembra que curiosamente a palavra prosperidade vem do latim “prosperare”: “obter o que se deseja, ter sucesso”, e o que é melhor - “prosperus”: “afortunado”, palavra que é formada por “pro”: a favor, mais “spes”: esperança. Portanto, vamos ser prósperos no sentido da esperança de poder desmantelar essa estratégia de consumismo desenfreado e construir habilidades mais humanas para todos se saírem bem na sociedade, fora da ideia de mercado. Afinal, o homem, além de naturalmente egoísta, é também um altruísta em potencial e sempre capaz de gestos extraordinariamente altruístas.          


domingo, 5 de junho de 2016

ALEGRIAS E AGONIAS DE MÃE






            Uma noite dessas, eu já me preparava para dormir quando mudando o canal da TV  dei com o “Animal Planet”. Parei. Algo prendeu minha atenção. Era uma praia com milhares e milhares de focas. Machos, fêmeas e filhotes. Alguns de barriga pra cima, outros se arrastando, parecia não haver um único lugar vago em que não houvesse uma foca. A reportagem mostrava uma mãe foca angustiada, desesperada, que por um ínfimo momento de negligência deixou o filhote passear e o perdeu. Ela saiu a procurar por seu bebê e ele também andava a esmo, perdido sem a mãe. De quando em quando ela soltava um grunhido de dor, cheirava a areia procurando identificar naquele infinito de focas o cheiro do próprio filho. Em vão. O filhote também cheirava o chão, subia em cima de outra foca que o repelia, pois não era o seu filhote, vá entender, coisas da natureza. O filhotinho também soltava grunhidos de medo e angústia e já apresentava sinais de exaustão, desidratação e fome. Quando eu já me preparava para passar horas insones de aflição e dor, eles se reencontraram. Cena linda e divina! A mãe alcançou o pequeno e abraçou-o com aqueles braços e mãos de foca, e o filhote se enrodilhava nela como se saciando de amor e proteção da mãe. Imediatamente começou a mamar guloso e depois adormeceu enquanto a foca mãe mantinha vigilante o filhinho aconchegado em seu colo ou seu corpo. 
            Naquela multidão de focas e foquinhas iguaizinhos, a mãe sabia qual era o seu bebê, conhecia seu cheiro, sabia que era ele ou ela. Isso me remeteu a outra cena de desespero de uma mãe gorila que se arriscou num precipício para salvar seu filho, tarefa dificílima porque poderiam ter morrido os dois, mas ela conseguiu, felizmente.  
            Lembrei-me de notícias de mães que nunca aprenderam a nadar e se atiraram em águas profundas e geladas para salvar seus filhos, de mães que lutaram com tigres, que enfrentaram cães ferozes. Lembrei-me de minha mãe que nunca foi afeita a gestos de carinho (não se usava abraçar salvo no aniversário e no Natal), e abraçou-me naquele medo de me perder quando um carro quase me atropelou. Nunca pude me esquecer daquele seu olhar de imenso terror e depois de alívio, tentando me justificar perante o sujeito que saiu bravo do carro. No momento era tudo de que eu mais precisava nos meus espinhosos treze anos, sofrendo de uma total inadequação à vida. Eu sabia que se no futuro faltasse entendimento entre nós, eu jamais me esqueceria de seu olhar compassivo, pois ela compreendeu minhas angústias na iminência de me perder. Como eu a amei! Vendo o bebê foca com a mãe, lembrei-me de minha mãe me abraçando.
            Também lembrei-me com tristeza daquelas contas de água e embalagens que trazem fotos de crianças desaparecidas. Pensei no desespero de mães que nunca mais encontraram seus filhos. O sofrimento daquelas que perdem os filhos também é devastador, mas uma vez sepultados, é possível que um dia possam dormir tranquilas porque sabem que a história teve um fim, por mais triste que tenha sido. Que dizer daquelas que nunca mais souberam do paradeiro de seus filhotes? que nunca souberam se estariam bem tratados ou sofrendo toda espécie de horror? Nem ouso pensar nisso.
A ligação entre mãe e filho é algo muito além de nossa imaginação ou compreensão. Elas próprias, as mães, não sabem avaliar a magnitude deste elo, apenas o sentem de modo avassalador e surpreendente. Mães são um mistério. Parece que trazem dentro de si verdadeiros exércitos com legiões de soldados preparados em ordem de ataque, vulcões em ebulição, ou tornados que levantam casas, carros e arrancam árvores. É força sobre-humana de amor puro, ousado, incondicional, inigualável, inominável. Dizem que algumas células dos filhos ficam incorporadas ao corpo da mãe e vice-versa. Convém não esquecer que as mães já alimentam seus filhos dentro do útero. Assim, não é de se estranhar que elas sejam capazes de proezas inacreditáveis como levantar carros e nadar quando nunca o fizeram antes, tudo para salvar seus filhos.

Tudo bem quando tudo acaba bem. Oxalá todas as mães do mundo pudessem salvar seus filhos de todos os perigos, mas nem sempre é assim. A reportagem da TV dizia que muitos bebês focas acabam sendo pisoteados pelos machos que sequer os veem ou morrem de fome e sede. E as mães focas continuam procurando por eles incansavelmente até que se dão conta de que não vai ser mais possível salvá-los. É da vida. Vamos seguindo ... 

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Avatares: de vez em quando até que não seria má ideia!





            Num dia desses aí assisti mais uma vez ao filme “Avatar”, de James Cameron. Como sou apaixonada por ficção futurística, este filme de alguns anos atrás atendeu a todas minhas expectativas, pudera, foi um estouro de bilheteria e mais um sucesso do talentoso produtor. Combinando tecnologia e natureza, o resultado obtido foi uma explosão de beleza e sensibilidade até para os que não gostam deste tipo de filme. Mas venhamos e convenhamos, quem não gostaria de viver em Pandora, com suas montanhas flutuantes e formas de vida que brilham no escuro? Ou em Pasárgada de Manuel Bandeira, onde se é “amigo do rei”, pretendendo fazer um ousado paralelo. Afinal, quem não gostaria de pelo menos de vez em quando, ausentar-se de si mesmo para, contraditoriamente, não deixando de ser o próprio, poder realizar ousados e secretos desejos e o que é melhor – desembaraçando-se de peias que atravancam o que na imaginação é possível e no real não o é?
            No filme acontece o seguinte: ao tempo em que o protagonista dorme ou entra em uma espécie de coma profundo, ausenta-se do próprio corpo e passa a ocupar um novo invólucro ou ainda um avatar criado, saudável e perfeito, uma experiência maravilhosa para Jake Sully que, sendo paraplégico, consegue andar, correr, sentir o contato dos pés com a terra e realizar proezas incríveis como voar. Este avatar ocupado por Jake traz para ele a liberdade perdida, a autonomia sonhada. Avatar, vocábulo originário do sânscrito, significa a “descida do céu à terra”, reencarnação de um deus num ser humano, proporcionando uma liberdade poderosa e divina, que possibilita à pessoa existir sem as amarras que aprisionam tanto o corpo como a mente. Pois é, de vez em quando, até que não seria má ideia, quero dizer, tirar férias da gente mesmo, principalmente nos aborrecimentos, nas doenças, nas carências, nas impossibilidades, e poder voar como um pássaro liberto.
            A experiência é fascinante e tentadora. Já pensaram? As mulheres obsecadas por um corpo perfeito ou pela juventude perdida correriam em busca de avatares nos moldes de La Bündchen ou de outras belíssimas, os criminosos poderiam se esconder em outros corpos e noutros lugares. Cansados dos problemas, das doenças que fazem doer o corpo e a alma, ou mesmo cansados da mesmice dos dias, aí dormimos, vestimos outro corpo e vamos viver em outros cantos com outras gentes, porém com outros novos problemas, o que dá no mesmo. Faz-me lembrar o caso de uma senhora que recebeu um exame trocado em que acusava uma doença. Ela, bem humorada, disse: “acho que vou ficar com este exame mesmo, vai que o meu está pior ...” Ou ainda aquilo que costumam dizer que se a gente pudesse levar nossa cruz e depositar em um monte cheio de cruzes, acabaríamos por pegar a nossa de volta, pois não sabíamos que as dos outros eram bem piores.
            Outros filmes também abordaram este tema, como “Os substitutos” com Bruce Willis no papel principal. As pessoas fugiam de seus problemas, abandonavam a vida real por uma realidade virtual. Utilizavam belos robôs para os substituírem, até descobrirem que a máquina também tem seus defeitos. Este filme foi considerado medíocre pela crítica, mas a vale a reflexão sobre o tema.    

            Bem, avatares à parte, pois ficção é ficção, pelo menos por enquanto, temos que contar mesmo é com nosso próprio corpo e alma. Posto isso, como diz Elika Takimoto, tratemos muito bem deles. Resta-nos viver como humanos que somos, procurar a conformidade e alegria que podem nos levar a amar ao próximo como a nós mesmos, numa luta que nunca deixará de ser nobre e digna, num mundo que sempre será “muito misturado”, expressão usada por Riobaldo, personagem do “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa. Inconformado, Riobaldo queria que o “bom fosse bom” e o “ruim, ruim”, coisa difícil de compreender e mais difícil ainda de separar, pois ninguém é totalmente mau, nem totalmente bom. Para viver, “carece de ter coragem” e apesar de todos os pesares, ainda é bom ser a gente mesmo!