sexta-feira, 30 de setembro de 2016

ADORÁVEL PRETINHA




Chego ao prédio de minha irmã. Meu marido me espera no carro, tem a ilusão de que vou apenas levar o teclado até lá em cima e volto correndo. O que ele não sabe é que vamos falar atabalhoadamente sobre pelo menos dez assuntos, tudo em oito minutos. Enquanto falamos, tiro apressadamente um cheque da bolsa para acertar nossas contas. Mesmo em pé, debruço-me sobre a mesa e começo a preencher o cheque, e aí minha irmã me chama a atenção em tom baixo para não quebrar o encanto:
- Misa, olha quem está aí pertinho de você.
            Eu acordo de meu torpor robótico, imerso num universo avesso à sensibilidade das criaturas e da natureza. Paciência. Vivo no mundo da pressa, dos atos imediatistas, da correria absurda que me anestesia e me aliena. Confesso que preciso sempre me beliscar para não perder um mundo tão lindo que acontece e que displicentemente deixo passar. Sou consumida pela vida caótica, pela ansiedade e urgência das providências.  
Mas paro e olho. É ela, a adorável pretinha, Nina, em cima da mesa, pertinho de mim como se quisesse me saudar. E ela quer, de fato. Já me conhece, e demonstra seu amor por mim. É a gatinha que minha irmã salvou do mundo cruel. Como se não bastasse nosso adorável Bichinho, que já é um respeitável gatão gigante todo plácido e amoroso, Agueda traz da rua uma microgatinha pretinha, com os bigodinhos queimados por um humano capaz dessas atrocidades. A Nina chegou, toda ela, com uma personalidade totalmente dela, arisca, charmosa, dengosa. A princípio pensamos que não ia dar certo. Até já cogitávamos de fazer uma sessão de fotos para oferecê-la no Face, pois o Bichinho se encrespava todo, disposto a não ceder lugar para a nova integrante da família. Que nada! Logo se entenderam e hoje são mais amigos do que nunca. Afinal os animais se entendem, os humanos é que não.
Nina chegou doentinha. Logo foi para o veterinário, tomou isso mais aquilo, parecia uma isquinha de gato, de tão magrinha e fragilizada. Minha irmã me relatava por telefone cada progresso da recuperação da gatinha. Não houve como não me encantar de imediato com o vocabulário incrivelmente original e cheio de sensibilidade de minha irmã para falar dos bichanos. Eu achava a maior graça toda vez que ela usava certas frases com expressões que fariam os linguistas se deliciarem. Dizia ela:
- Misa, a Nina tá tomando direitinho o remedinho dissolvido na água. Tudo com muito inho e inha. Depois de dias sem se alimentar direito, ela está dando “linguadinhas” no pratinho.
Ou:
- Misa, a Nina ficou um tempão examinando minuciosamente a caixa do ventilador. Decididamente, tudo de novo que entra pela casa tem que passar “pelo crivo” da Nina. A gatinha tem se mostrado uma espiã de tal envergadura que faria Miss Marple morrer de inveja.
            Mas tornemos à Nina em cima da mesa. Mantém aquela posição típica dos felinos quando escondem as patinhas que ficam dobradas e “guardadas” junto ao corpo. Parece uma bolinha preta. Os olhos fecham-se languidamente, para depois se abrirem com jeito de sono, como se quisesse lançar piscadelas sensuais. Já sabemos que isso é sinal de amor e carinho. Eu não me seguro. Começo a falar com ela naquela linguagem que as mães adoram falar com os bebês. E eu chamo: kit kit kit kit ... ti belejinha, veio cumprimentá a tia Misa! Qué coçá baiguinha?. Mas se ergo as mãos para acariciá-la, já sei, ela se afasta, foge. Nunca soubemos se isso é da raça, ou dela própria. De vez em quando ela se joga no chão para que cocemos a barriguinha, mas se ousamos abaixar para pegá-la, ela se esquiva. Um amor. Um amor.      
            Sempre que posso vou visitar minha irmã e brincar com os gatinhos. Eles me remontam a um passado distante, quando eu, ainda menina, chegava da escola, arrancava às pressas o uniforme, botava um short velho e ia para a casa da vizinha brincar num gramado alto com um gatinho encantador que já me esperava lá escondido dentro dos tufos de capim. Eu não sabia, mas era minha dose de remédio para suprir a ternura tão necessária na vida de todos nós.
            Amo os cães e amo os gatos. São tão diferentes e tão ternos, cada um a seu modo. Nina é pequena, mas mostra que dentro dela mora uma grande alma de felino que desperta a cada instante para atender aos seus instintos. Passa longos momentos sem mover um músculo, em posição de ataque para perseguir um tiquinho de inseto no teto. Nada mais a interessa do que caçar aquele bichinho. Mesmo sendo apenas uma minúscula gatinha, parece que dentro dela vive um tigre ou um puma com todos seus instintos raciais em pleno vigor.  
            Gosto tanto dos cães e gatos e, no entanto, não os tenho comigo. Por que será? Tento justificar para mim mesma que moro em apartamento, que podem incomodar os vizinhos, ou que se formos viajar, é um sofrimento a mais. Para dizer a verdade, tenho medo do trabalho. É como se eu adorasse bebês só para brincar com eles, mas na hora da doença e de manter a área limpinha, aí to fora! Mas de uma coisa estou certa, quem convive com cães e gatos tem um olhar diferente sobre a vida. Como diz minha irmã: “não há o que pague a ternura de abrir a porta e dar com meus gatinhos bem à minha frente, esperando por mim.” Pura verdade.      



sexta-feira, 23 de setembro de 2016

MARIA





O nome dela era esse: Maria, só Maria. Era uma menina diferente, tinha qualquer coisa de santa, de uma vida que não era daqui. Quando ela nasceu, sua mãe já tinha oito filhos homens, razão do maior orgulho para o pai, que falava com boca cheia: tenho oito filhos homens, aqui só nasce macho. E aí ocorreu que veio a Maria, acontecimento que deveria ter sido o de maior festa e alegria para todos e foi, menos para o pai que blasfemou, manda esse bicho pro lugar de onde veio. Todos se assustaram com essa fala tenebrosa, mas passou. E é claro que em pouco tempo, o pai amou a menina muito mais do que a todos os outros oito filhos juntos. Era a alegria da casa, mimadíssima por todo mundo, principalmente pelo pai. A menina sabia tudo. A mãe dizia, ah, meu Deus, não acho onde coloquei aquela lã vermelha, e a Maria sabia, mãe, tá lá dentro daquela caixa, em cima dos guardados da tia Nicota, no quarto dos fundos. A empregada dizia, será que vai chover?E a Maria, hoje não, Dona Cida, mas amanhã o céu vai ficar escuro e vai chover muito. A mãe da Maria não gostava disso, sentia um aperto no peito, uma preocupação, um pressentimento, sabia que a filha era especial demais. E a Maria era uma menina gentil com todos. Era feliz, cantava, passeando pelo quintal, seguida pelo Suez, um velho cão, tão feliz quanto ela.
Aconteceu que quando a Maria estava com quase sete anos, ela ficou doente. Diziam que era “crupe”, uma doença que inflama e fecha a laringe e a menina quase morreu. Trouxeram para outra cidade, a mãe já com aquela dor no coração, mas silenciosa, sem coragem para externar seus pressentimentos. Pois o médico abriu a garganta da Maria e pouco a pouco ela foi sarando até que ficou completamente boa. A mãe botou os joelhos no chão, agradeceu e louvou a Deus e pensou, bobagem minha, minha filha vai me enterrar, assim como os pais sempre pensam e desejam. No ano seguinte, quando a menina já ia para oito anos, começaram os ensaios e a preparação para a Primeira Comunhão. O dia da festa seria, vamos dizer assim, por exemplo, dia 25 de junho. Um dia, lá pelo início do mês, Maria disse à mãe, antes de dormir, mãe eu queria que a senhora falasse com o Monsenhor para que eu fizesse a Primeira Comunhão já, antes do dia 25. A mãe gelou, respirou fundo e retrucou, quê é isso menina? Tem que ser junto com a turma, tá ficando maluquinha? Não pode ser antes, e criando coragem, perguntou: por que, filha? Sentindo que essa última pergunta saía com a voz trêmula e insegura. A Maria respondeu, é que não vai dar tempo. A mãe, ouvindo o que mais temeu a vida toda, engoliu um soluço doído que já ameaçava sair, resmungou qualquer coisa como que tolice! Cobriu a menina e saiu do quarto, fazendo de conta que não era com ela. Foi até ao altarzinho que tinha na sala, acendeu uma vela e pediu pra Deus que não passasse por isso, mas que se fizesse a vontade d’Ele. Depois foi dormir, quase conformada, afinal durante todos aqueles anos parecia até que já esperava por isso e o fato que agora tomava seus contornos definitivos vinha romper com aquela odiosa expectativa. O crupe fora apenas um aceno.  
A mãe não dormiu nada aquela noite e nem comentou com o marido por dois motivos: primeiro, aprendera a falar pouco e a pensar muito, segundo, pra quê deixar o pobre desesperado e sem dormir também? Tudo viria a seu tempo. E sentiu uma força divina que vinha ampará-la, porque força certamente é o que precisaria ter nos próximos dias. No dia seguinte saiu cedo. Foi até a casa da professora que preparava as crianças e contou tudo a ela. A boa mulher pensou um pouco e ponderou, isso não é pra gente decidir, mas para o padre, vamos falar com o Monsenhor. O Monsenhor ouviu com toda calma e pediu que trouxessem a menina para conversar com ele. Assim fizeram. O que falaram, o Monsenhor e Maria, ninguém nunca vai saber porque todos já morreram e mesmo que não tivessem morrido, foi como segredo de confissão. Há coisas que poucos podem saber e não devem ser reveladas. Ficou acertado que a menina fizesse a Primeira Comunhão no domingo seguinte, só ela, sem alardes para que a cidade não ficasse em polvorosa. Diziam que ela tinha um ar angelical naquele domingo, fazendo tudo direitinho e com muita devoção. O pai não se conformou, ficou bravo, não queria que fizessem assim, mas a mãe de Maria ficou firme, não arredou o pé e, mais, diziam que ela falou poucas e boas para ele. Entre outras verdades, ela disse que se culpa havia era dele por sempre falar demais, falar desnecessariamente e o que é pior, profetizar coisas terríveis. Mas ele não acreditava que isso da filha não fazer a Primeira Comunhão junto com as outras crianças fosse porque não ia dar tempo até o dia 25, como ela mesma dizia. Não, havia de ser um capricho de criança, com certeza. As crianças têm dessas manhas, ele pensava e tentava se convencer, afinal ela estava bem, com saúde e tudo.
Pois a saúde foi embora. Na semana seguinte à de sua Primeira Comunhão, Maria caiu doente e de forma grave. Tinha dores de cabeça fortíssimas, febre, convulsões. Gritava muito, coisa triste para uma criança tão inocente. A mãe de Maria engolia aquele cálice amargo com dificuldade, chorava muito longe da menina, mas quase que não saía de sua cabeceira, nem para se alimentar. Perguntava à menina, filhinha, por que você está gritando? Dói tanto assim? Ao que Maria, de uma maneira incrivelmente lúcida, respondia, mas eu não gritei, mamãe. E olhava a mãe com aqueles olhos tristes, com as pálpebras pesadas. Quem presenciou tudo isso jamais se esqueceu, tamanha a tristeza. O pai de Maria desesperou-se, ficava no quintal da casa chorando, murmurando contra Deus, sempre murmurando. O cunhado tentava acalmá-lo, mesma coisa que nada. Enfim, Maria morreu e morreu dia 25, no dia marcado para a Primeira Comunhão de todas as crianças. Dizem que seu enterro foi uma comoção só, os oito irmãos se revezando para carregar o caixãozinho. Algum tempo depois, a família de Maria mudou-se para a capital e essa história foi contada de mãe para filha, de filha para outra filha. Tudo isso é verdade. Minha mãe presenciou todo o drama. Foi ela quem ensinou a Maria a rezar a Salve Rainha e a Ave Maria. E eu repasso a história para que não se perca com o tempo.

Penso que hoje Maria e minha mãe rezam juntas lá no Céu. Amém.          

terça-feira, 20 de setembro de 2016

DANIEL DIAS - O CARA - O MAIOR NADADOR PARALÍMPICO DA HISTÓRIA!







             O cara é de Camanducaia, mineiro como nós, uai! Daniel Dias encerrou sua participação nos Jogos Rio 2016 com chave de ouro, quero dizer, com quatro medalhas de ouro, três de prata e duas de bronze. Nas últimas três Paralimpíadas (Rio 2016, Londres 2012 e Pequim 2008) ele faturou um total de vinte e quatro medalhas, assim conseguindo um lugar notável, digno de semideus: o maior nadador paralímpico do mundo. E é brasileiro, é do Brasil.
            Li um depoimento de sua mãe sobre o filho notável. Ela conta que Daniel veio ao mundo com 37 semanas, pesando 1,970 kg e medindo 41 centímetros. Quando soube que ele não tinha os pés e nem as mãos, chorou muito e pediu forças a Deus. Disse ela que a primeira vez que ela e seu pai o viram, ele, bebezinho recém-nascido, sorriu quando sentiu o carinho em sua pele. Com quase três anos ele teve que sofrer uma cirurgia para poder usar prótese. Sua mãe fala dos momentos de lutas, de lágrimas e de vitórias. Ela enfatiza que o filho é um jovem especial, não por ser deficiente, mas por ser como ele é.
            Refleti sobre a importância dos pais na vida de uma criança deficiente, seja física ou mental. Em uma entrevista pela televisão, Daniel disse que sua mãe não “passava a mão em sua cabeça”, dava-lhe tarefas. Ele mesmo aprendeu a arrumar sua cama, a lavar o que sujava, a estudar. Enfim, ela o educou para a vida, queria que ele estivesse preparado para enfrentar obstáculos e vencê-los. Quanto a ser o maior nadador paralímpico da história, bem, certamente ela não ousou sonhar tanto, pois jamais imaginava que ele fosse seguir o caminho dos esportes e conquistar tantas vitórias.
            Fez-me lembrar de Jacques Lusseyran, um herói cego da Resistência Francesa que conta em sua autobiografia façanhas consideradas impossíveis às pessoas. Quando os companheiros da Resistência queriam saber se tal pessoa era confiável, levavam-no à presença de Jascques. Ele conta que a pessoa jamais suspeitava que ele fosse capaz de ler sua voz como se fosse um livro. Ele ainda menino, apostava corridas com outro garoto que enxergava, e ganhava sempre. Tendo perdido a visão em um acidente, com 7 anos, ele aprendeu a se direcionar pelo barulho do vento, pelas folhas que farfalhavam, mas ele aprendeu muito mais do que isso: aprendeu que a força de sua vida estava dentro dele e havia outros olhos que não os do corpo. Dizia: “Negaram-me os olhos de meu corpo. Outros olhos se abririam em mim: eu o sabia e queria. Jamais me veio uma dúvida sobre a equidade de Deus... eu próprio permanecia íntegro, descobrindo que bastava pensar nas coisas para que elas existissem e bastava querê-las para que me fossem liberadas. Sendo cego, eu apenas tinha de querê-las mais intensamente do que outras pessoas ... o mundo é duplo, triplo, incontável e sempre novo.”
            Parece que Daniel Dias descobriu também esta essência, este segredo. Não se fixou nas impossibilidades, mas na força que ele sabia possuir dentro de si. Já conquistava o mundo sem nem saber que os poetas há séculos já diziam a quem quisesse ouvir que um desejo é mais importante do que uma fortuna, e que um sonho é bem capaz de pesar mais do que ferro e aço.
            Na entrevista, alguém lhe perguntou se ele não tinha momentos tenebrosos ou de simples mau-humor, pergunta cabível e apropriada, uma vez que só vemos um largo e franco sorriso em sua face em todas as fotos. Ele respondeu que sim, que também era humano como qualquer pessoa. Só ele sabe de suas lutas e tal como Jacques diz em seu livro, ele já havia aprendido que “não é sempre fácil ser diferente.”
            Valeu Daniel, obrigada pelas conquistas, parabéns por você ser uma pessoa tão especial, por você ser quem você é.             
           


            

domingo, 18 de setembro de 2016

AINDA CASAMENTO



 Dizem que casamento é loteria, pura sorte, e também afirmam que é agulha no palheiro, quer dizer, bem poucos dão certo. A princípio o casal se estranha, depois se estranha um pouco mais ainda e depois se acostuma, se acomoda. Um percebe que o jeito do outro é assim mesmo e o melhor a fazer é se adaptar ou se separar. É fato incontestável que o casamento nunca será igual ao namoro, isso não. Se até os amigos depois de uma longa viagem, compartilhando o mesmo quarto podem se estranhar e até mesmo se decepcionar, que dirão os casais em uma longa jornada de vida? Uma coisa é conviver no idealizado, aprontando para sair com roupas bonitas e maquiagem, com ares de mistério, sussurros ao pé do ouvido. Outra é chegar cansado, aborrecido, e desejar mais do que nunca estar só. Dizem que ocupar o mesmo banheiro é desastroso para a união de um casal, já brincava um amigo meu enfatizando que um casamento é feito de maus humores e maus odores. 
No geral, todo mundo pensa que seu casamento dará certo, pouquíssimos mais racionais e objetivos são capazes de antever um pouco como será depois, a grande maioria não vê nada. O amor é cego. Amor, amor não, paixão. Para que o amor nasça e renasça diariamente, é preciso fazer das tripas o coração, como minha mãe costumava dizer. Por exemplo, segurar um pouco para não brigar por pouca coisa como no caso da gordura na cozinha, da famosa pasta de dentes em cima da pia, da toalha molhada no chão, do marido que reclama porque a carne queimou, e outras coisinhas que dá para relevar. A pior coisa que existe é uma mulher megera, mal humorada e o mesmo se aplica aos homens. Homem mal humorado destrói qualquer relacionamento.
Muitas mulheres juram de pé junto que seu casamento será diferente do que foi o de sua mãe, prometem a si mesmas que não repetirão os erros, mas existe um abismo imenso entre a teoria e a prática. Sem que se possa explicar, uma crise é desencadeada e às vezes por motivos bobos, por coisas pequenas que vão se acumulando como uma bola de neve que não para de crescer nunca mais. Conheci homens que tratavam e tratam suas mulheres como se fossem rainhas e elas, por sua vez, acabavam por tratá-los como reis. Teoricamente, a gente recebe o que dá. Mas de fato há casos e casos, e há casamentos que nunca deveriam ter acontecido.  

Percebi que de fato eu era feliz em meu casamento quando eu já me preparava para confidenciar a meu marido que havia aprendido com ele a economizar um pouco, a conter meus impulsos consumistas, e qual não foi minha surpresa quando ele, antes que eu falasse qualquer coisa, me confidenciou que aprendera comigo a não ser tão rígido com as economias, a se permitir gastar mais em coisas que lhe dão conforto e prazer! Fizemos trocas e adquirimos aprendizados, que não se restringiram apenas à área econômica, mas em muitas outras. Não tem jeito, casamento é cumplicidade, companheirismo, é cuidado um com o outro, é compreensão, e acima de tudo, de uma boa dose de perdão diário, indiscutivelmente. 

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

UM ANO SEM VOCÊ, SANDRA!




            Querida Sandra
            Aqui o tempo passa velozmente e assim, já vai para um ano que não convivemos mais com você. Não sei como é o tempo aí, ninguém sabe. Acredito na vida eterna, mas sinceramente não acredito que você vá ler esta carta, pois as coisas no Céu certamente não se passam como aqui. Escrevo literariamente, poeticamente, pois na literatura podemos criar mundos, vidas e histórias de acordo com nosso desejo e construir o fim que queremos, ou melhor, podemos construir histórias encantadas sem fim. Escrevo pelo incorrigível hábito de fingir que é possível que você possa ler uma carta minha. Você sabe que esta pretensa ilusão é apenas produto de minha limitada capacidade humana que me faz viver apegada a todos a quem amo tanto, os que ainda estão aqui e os que já se foram. Nossos queridos se vão como iremos nós, mas eles continuam vivendo em nossos corações, fazendo parte de nossa vida diária.
            Dizia um grande amigo meu, ateu convicto, que não existe vida eterna. Afirmava que as pessoas permanecem eternas em nossa memória afetuosa pelas coisas que costumavam dizer e da maneira como diziam. É fato, isso acontece. Assim permaneceriam eternos meu pai e minha mãe pelos seus adjetivos preferidos que passaram a ser nossos também. E não é que é tão bom dizer que uma coisa é “superior” ou “formidável”, tipo um sorvete, ou uma torta só porque meu pai assim dizia? Ou que tal pessoa é “extraordinária” como enfatizava minha mãe? E aí rimos muito com muito carinho quando empregamos as expressões da mamãe: “fulana ficou chaleirando sicrana”, ou “fulano passou um respe em beltrano”. Mas não pode ser só isso. Não, definitivamente não acredito apenas em adjetivos eternos, acredito em vidas eternas.
            E como a morte faz parte da vida quer queiramos ou não, sobre ela já foi escrita uma infindável e vasta literatura. Todos os filósofos, escritores, poetas, estudiosos, religiosos já falaram e falam sobre a morte. Até as pessoas mais simples filosofam sobre ela de maneira acertadíssima, como fazia certa pessoa querida quando dizia: “vai quem vai, feijão no fogo pra quem fica”. Quer maior verdade? E lá se apressava ela indo para o fogão alimentar os familiares com os corações feridos, narizes fungando e olhos vermelhos. É. A vida continua. É doloroso, mas a vida continua. Há os que tentam amenizar ou suavizar a morte, como dizia Montaigne: “Em vez de dizer, morreu, dizem: ela cessou de viver; ela viveu”. Mas por ocasião da morte de meu pai, entre lágrimas, eu fiz questão de dizer, talvez pela dor, por revolta ou saudade: papai não faleceu e foi sepultado, ele morreu e foi enterrado, assim impingia a mim mesma um sofrimento que eu julgava merecido. A morte sempre será um silêncio abissal.      
            Minha querida amiga, falar em saudades suas é chover no molhado. Estamos todos bem, estão todos bem, na medida do possível. Nossas Cimeiras do Café da Ciça nunca mais foram as mesmas e nem serão, mas continuam com aquelas indefectíveis poses para fotos, e haja gentileza da nossa adorável caçulinha Gigi! Parecemos “As alegres comadres de Windsor” com todas falando ao mesmo tempo. Até hoje as meninas não acreditam que eu que faço o bolo, dizem que é “o bolo do Motta”. Paciência. E de vez em quando alguém grita: “deixa eu falar”! Eu continuo dançando o “Boneco de Olinda”, sempre me lembrando de quando você insistia rindo sem fôlego: “Misa, faz de novo o Boneco de Olinda”. Seu riso permanece entre nós, bem como sua alegria, sua presença marcante para sempre insubstituível.
Tenho ido visitar sua mãe que sempre me recebe com a mesma gentileza inigualável, e conversamos sobre tudo, como quando você ainda estava aqui. Ela me diz sempre que “Deus é soberano”. Nossos laços ficaram mais fortes e mais amorosos. Quando trocamos abraços ela costuma me segredar que precisa me abraçar forte para sentir o seu gostinho em mim e eu digo o mesmo para ela. Há muitas outras coisas a dizer, amiga querida, mas meu coração já começa a chorar. Eu sei, eu sei, o Céu não podia esperar.
Com amor

Misa 

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

CASAMENTO E GORDURA



Dizem que para que duas pessoas se conheçam de fato, têm que comer um saco de sal (ou farinha) todo dia juntos. Realmente, uma coisa é namorar, outra é morar juntos, dormir juntos e fritar juntos. Cada casal tem seu ponto nevrálgico. O meu, melhor dizendo, o ponto nevrálgico do meu casamento foi a gordura. Gordura, isso mesmo, aquela coisa que gruda na panela, no fogão, nas paredes, no chão e na gente mesmo, no corpo e se bobear até na alma. Meu marido, que é um cozinheiro de paixão, ficou horrorizado comigo. Foi num dia, logo no início em que tudo são flores, como dizia meu pai. Eu voltava da escola, onde fazia estágio. Entro em casa e juro, havia uma névoa de gordura que pairava como um véu sobre a sala, lembrando aqueles fogs londrinos. Ele havia fritado mandioquinhas e eu aprontei um estardalhaço, disse que as cortinas estavam cheirando e manchadas. Nosso almoço foi pro espaço, ele ficou aborrecido e eu admiti minha intransigência, pedindo desculpas carinhosamente. Olha que muito amor foi preciso para que a barreira da gordura fosse derrubada. Foram anos de persistência, de uma friturazinha aqui, outra ali. Aos poucos, fui reabrindo os processos e revogando as sentenças, até que carimbei liberado, com restrições. Por exemplo, uma vez em quinze dias, que depois já caiu para uma vez por semana. Há alguns anos eu fechava a porta da cozinha, abria todas as janelas e no dia marcado para a fritura, eu amanhecia deprimida, sem fome alguma, até com alguma indisposição. Foi caso para o psicanalista que após muito me analisar, arriscou que eu transferia o medo da gordura para a gordura do próprio corpo, quero dizer, ou melhor, ele queria dizer que eu tinha medo de engordar, logo eu, tão magra de ruim. Também analisamos juntos todas as etapas do meu passado, até chegar à infância, até o tempo em que não havia fogão à gás, fritava-se no fogão à lenha. Faltou pouco para uma análise de outras vidas, quem sabe teria sido eu uma cozinheira inconformada, presa numa cozinha de idade média e cheirando gordura por todos os poros. Como não sou dessas crenças, encerramos a análise a respeito da gordura e como última estratégia, ele sugeriu que eu comprasse uma frigideira de titânio, dessas que o fabricante jura que não é preciso nem uma gota de óleo. Comprei. Caríssima. Mandei fazer uma embalagem que ficou linda, colocaram uma fita vermelha assim por cima, fazendo um laço. Não deu certo, o que meu marido gosta mesmo é de um bom bife e essa coisa de que a frigideira não precisa de óleo é pura cascata.
 Superamos, quer dizer, eu superei, mais ou menos. Há um tempo para tudo, tempo para fritar, tempo para cozinhar e tempo para amar. A coisa está ficando tão relaxada que até já aceitei que fritasse pastéis de palmito e tenho que admitir, estavam deliciosos. Valeu a pena! Estou ficando curada e, é claro, engordurada. Nada é perfeito.           




quarta-feira, 7 de setembro de 2016

COMO APRENDI A GOSTAR DE ESTUDAR PORTUGUÊS




            Às vezes as coisas acontecem na vida da gente de um estranho jeito, e de uma hora para outra, abre-se uma porta que nem sabíamos que existia. Eu era uma jovem de 16 ou 17 anos que havia mudado de colégio. Praticamente eu ainda tentava sobreviver a uma hecatombe nervosa pelo trauma da mudança de cidade. Eu odiava ter me tornado uma moça, por dentro ainda me sentia menina (ainda me sinto). Não me adequava em nenhum lugar, em nenhuma idade. Não estudava. Assistia às aulas com o corpo preso à carteira e a alma em outras paragens. Eu conversava quase que só com duas colegas, jamais pertenceria à turma top. Nesta turma top, havia uma garota em especial que tornava minha vida um inferno ainda maior do que já era, sempre repetindo a pergunta em voz alta para que todos ouvissem: e aí Luiza, quando você vai arrumar um namorado? E beijar? Você já beijou? E ria maldosamente. Eu ficava quieta, beijar, eu? Nem em sonhos. Namorado? Nem em sonhos. Eu estava longe disso tudo.
            Bem, vamos lá. O professor de português estava mais perdido do que eu. Deixou a língua portuguesa de lado, e sabe-se lá porque mudou de pato pra ganso. Falava em sexo. A sala era dividida de um lado meninas e de outro, meninos. Eu estava na fileira justamente ao lado dos meninos. E o assunto foi caminhando de um jeito que ficou seriamente impróprio. O professor comparava a mucosa dos lábios da boca com a mucosa dos lábios vaginais, enfatizando a sensibilidade dessas mucosas quando tocadas, tudo entre risinhos debochados por parte do professor e dos rapazes. Nada demais falar sobre isso desde que fosse numa aula de biologia ou coisa parecida, mas sem malícia. Mas na aula de português? Eu só me lembro que senti uma raiva imensa da situação. Eu não sabia, mas aquilo era um assédio, era um abuso do professor que se aproveitava da fragilidade das meninas, desrespeitando-as escancaradamente, e ria sem pudor com os garotos maldosos. Eu simplesmente me levantei sem que tivesse planejado, segui meus instintos, saí e bati a porta. Lá fora pensei: Misa, você está louca?
            Mas não podia ficar ali do lado de fora da porta. Então, tudo o que eu queria era fugir, fui andando em direção às escadas. Meus cadernos estavam na sala, não podia ir embora pra casa. Neste momento, a garota que me atormentava, aquela que já tinha beijado pra caramba e sabia mais coisas neste sentido do que minha avó, saiu da sala e também e bateu a porta. Veio ao meu encontro querendo fazer estranhos acordos. Disse que aquilo era um absurdo e que devíamos fazer isso ou aquilo, para dizer a verdade, nem me lembro. Não fizemos nada. Acho que esperamos dar o sinal, ficamos misturadas aos outros alunos que saíam das salas e só voltamos depois do intervalo. Não me lembro se conversei com mais alguém sobre o assunto, na época acho que com ninguém. Estou certa de que não falei nada em casa. Nunca fui chamada na Secretaria, se tivesse sido não tenho a mínima ideia do que falaria, se falaria. Na próxima aula com o tal professor, a matéria foi só língua portuguesa. E depois da aula, ele pediu que eu esperasse. O professor se desculpou comigo, explicou algo como “às vezes acontece”, deixando claro que se desculpava apenas comigo, não com a outra menina porque ela não se dava ao respeito, mas eu era uma menina séria, palavras dele. Eu ouvi tudo calada, como era meu jeito. Eu era tímida, ainda sou, só que agora finjo que não sou e engano todo mundo.
            Bem, eu não sabia nada de português nem de nada vezes nada. E dali por diante, o professor dava suas aulas de olho em mim, como que esperando aprovação. Senti que eu cresci aos olhos dele, talvez de toda a turma, pois eu havia sido capaz de um feito heroico e histórico ao deixar a sala batendo a porta em protesto pela minha indignação. Então, sabe como é? Eu não podia vacilar. Quando conquistamos o respeito de alguém, somos investidos de responsabilidades. Numa tarde em casa, eu peguei minha apostila e comecei a estudar, coisa por coisa, decorei as próclises, mesóclises e ênclises, fiz exercícios com locuções prepositivas, me familiarizei com sujeitos e predicados, verbos transitivos e intransitivos. Mas o mais bonito do mundo é que eu descobri que estudar era bom, que era gostoso saber, que o conhecimento era um tesouro. Eu era uma menina de respeito. Na próxima aula, ele fez perguntas, ninguém sabia porcaria nenhuma e eu arrisquei uma resposta, ele abriu o maior sorriso como se quisesse dizer: gente, como eu não percebi que ela era minha melhor aluna?
            No processo de aprender português para corresponder ao meu novo status, eu me esqueci um pouco de meus sofrimentos. Minhas angústias e conflitos não ficaram exatamente curados, mas abriu-se uma nova porta em minha vida, eu me sentia alguém que possuía algo precioso. Quanto a namorar e beijar, bem, isso ainda iria demorar um bocado, mas já era alguma coisa conquistada. Saber português era mais importante do qualquer beijoca bobinho.

            Este professor morreu logo depois num triste acidente. Nunca soube o que significou para mim aquele estranho episódio.       

sábado, 3 de setembro de 2016

AVENTURA EM MADRI




            Aconteceu nos tempos em que ainda se usava comprar dólares para passear na Europa. De férias, lá fomos nós exultantes, três amigas ainda jovens, sem problemas, sem preocupações, sem marido, sem filhos, sem lenço, mas com documentos. Iniciamos nossa jornada com a Espanha. Não cabíamos em nós de contentes. Madri, que linda! Que antiga! Que charmosa! Guardávamos nosso passaporte, cartão de crédito e o “grosso” do dólar em capangas sob a roupa, e todos os dias, antes de sair, abastecíamos nossa carteira com uma pequena quantidade de dólares para o dia servindo para compras e alimentação. Num dia em particular que saímos, resolvi colocar uma quantidade maior de dólares na carteira: 300 dólares mais precisamente. E fomos conhecer um parque muito bonito.   
            Eu me lembro com nitidez absoluta de que ainda não havia comprado nada. Era uma linda manhã e curtíamos o passeio no parque. Em seguida fomos a uma cafeteria para um lanche. Cada uma de nós escolheu o que lhe apetecia e fomos pagar. Abri minha carteira e não havia nem um dólar! Santa Madre de Dios! Estupefata, afastei-me para procurar melhor, mas não havia como o dinheiro não estar ali! Sentindo-me amedrontada e nervosa, fui comer o lanche pago por uma das amigas. Sentamos no fundo da cafeteria, ao lado de um balcão. Ficamos refazendo nosso trajeto para entender o que havia se passado. Nós nos lembramos de um fato: um rapaz simpático e falante havia nos abordado no parque. Mas não abrimos a bolsa, conversamos pouco tempo, dizendo de onde vínhamos e coisas assim normalmente faladas em ocasiões como esta. Só podia ter sido ele. Mas eu não abri a bolsa, não tirei a carteira, nós três estávamos certas quanto a isso.
            Bem, em dado momento, uma das amigas, minha prima Musa, foi pegar algo em sua bolsa e sem acreditar, viu que sua bolsa havia sumido. O perigo desses balcões ao lado de mesas é comprovadamente real. Aprendi há muito tempo que fora de casa, lugar de bolsa quando vamos comer é no colo mesmo, seja a bolsa de que tamanho for. Aí foi a vez de minha prima se sentir medrosa, na verdade ficamos as três apavoradas. Olhamos em volta, nada. Impossível saber quem roubou. Seria o mesmo cara do parque que me roubou 300 dólares hipnotizando nós três? Sim, porque não seria possível que ele tivesse conseguido a façanha de abrir minha bolsa, pegar a carteira, tirar o dinheiro e devolver a carteira para a bolsa. Fomos hipnotizadas, mas ele nem era tão bonitão assim.
            Saímos arrasadas da cafeteria. Minha prima havia perdido uma máquina fotográfica, sua carteira, porém com pouquíssimo dinheiro, ainda bem. Humm, o que mais? Escova de dentes, escova de cabelos, batom, colírio, itens básicos de beleza e higiene. Ficamos andando a esmo feito baratas tontas, sem saber o que fazer, até que a Sandra, nossa saudosa amiga teve a ideia de irmos à delegacia para prestar queixa dos dois roubos. A princípio não quisemos, ah que mico! Mas afinal parecia o mais certo a fazer. Perguntamos onde ficava e fomos a pé mesmo, não era longe. Lá chegando, ficamos admiradas com a limpeza, organização, ambiente acolhedor e até música clássica de fundo. Aí a Sandra disse: nossa! Que beleza, que diferença de nossas delegacias. Logo se vê que é primeiro mundo!
            Não passam dois minutos e num salto ficamos de pé apavoradas com gritos, berros, palavrões em espanhol é claro, barulhos de pesadas, de murros, de cadeiras caindo. Eis que surgem subindo pela escada acima, policiais segurando uma mulher desgrenhada, suja, com cara de louca que desferia chutes pra todos os lados feito uma desvairada. Ela estava drogada, era evidente, mas sua força era maior que a dos quatro policiais que não conseguiam segurá-la. Foi um Deus nos acuda, ficamos espremidas num cantinho da sala, eu com a cabeça enterrada no peito da Sandra, morrendo de medo. Daí a pouco o delegado, um homenzarrão a la sargento Garcia mexicano com barriga proeminente e bastos bigodes, nos chamou à sua sala. Narramos o acontecido em inglês e o homem que não estava de cara boa ficou nos olhando como quem não estava acreditando em nossa história. Bem que eu não queria ir. Até que enfim, com muita má vontade, nos deu um formulário com inúmeras páginas com carbono para preencher todos os minúsculos quadradinhos requeridos. Acho que foi a Sandra que preencheu. Curiosas, logo verificamos que nas últimas folhas o escrito não saía. Mostramos para o delegado que impaciente, disse num vozeirão estrondoso que deu medo: strrronguiiiiii (forteeee, com um sotaque terrível). A Sandra calcou a caneta e finalizamos a tarefa. Respirando fundo saímos da delegacia e fomos direto para o hotel, não sem antes passarmos no supermercado para ajudar a Musa a fazer seu “enxovalzinho”, como dizia a Sandra: escova de dentes, escova de cabelos, pasta dental, batom e outros itens imprescindíveis que as mulheres sempre carregam.   
            No caminho, a Musa perguntou: para que tantas vias daquele famigerado formulário? Até parece que vão fazer alguma coisa! Ao que a Sandra respondeu: uma via para a delegacia, outra para a embaixada, outra para nós, outra para a mãe do delegado e outra para o ladrão! Rimos muito e foi bom para afastar nossos temores.
            Nos dias seguintes sofremos uma sucessão de perdas: esqueci no ônibus de turismo uma estampa que pensava em colocar num quadro. Compramos algo em um bar e nos deram o troco errado, inútil reclamar. Aí pegamos a mania de dizer: stolen again (roubadas de novo) sempre que novo episódio do tipo acontecia. Lembro-me de que compramos umas miniaturas de garrafas de vinho e logo constatamos que o preço na outra loja estava pela metade do que pagamos. Stolen again foi nosso slogan para o resto da viagem.
            No último dia na Espanha fomos ao Valle de lós caídos, e flagrei a Musa no meio de um pátio enorme, com os olhos brilhando ao encontrar algumas moedas que estavam no chão. Eis que ela elevou uma moeda contra o sol, olhou, olhou bem, examinou, depois jogou dentro de sua nova bolsa exclamando com um sotaque espanhol perfeito: Hei de recuperar peseta por peseta que yo he perdido. Morri de rir, principalmente pela determinação com que proferia esta promessa.

            No dia seguinte deixávamos Madri com péssimas lembranças das perdas, mas mesmo assim enamoradas da bela cidade. Tomamos o trem para Lisboa sem dificuldades porque nossos bilhetes ficaram a salvo dos ladrões, posto que permaneceram guardados quentinhos dentro da capanga da Musa. Valeu! Oh saudades da Sandra!

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

MINERVINA CRUZ



A Minervina era de amargar, como diziam os antigos. Acostumada a falar o que bem entendia, não sabia com quem estava lidando – minha mãe. Bem capaz de minha mãe tolerar que lhe dessem ordens! E não é que a Minervina prepara um doce e grita para minha mãe, Ohhh Zezé! Fiz um doce pra vocês, manda alguma criança subir aqui pra pegar. Minha mãe respondeu, agora não dá, Nerva, estou ocupada. Nossa casa ficava abaixo da casa de Nerva e para não ter que dar a volta, costumávamos subir a ladeira do quintal para chegar lá na casa de nossa tia. Mas criança carregando ladeira abaixo doce em travessa de vidro? Nem pensar! A Nerva perdeu o juízo. Aí a Nerva grita de novo, Ohh Zezé, o doce ainda tá aqui, ninguém veio? E minha mãe, já disse que estou ocupada, não tem nenhuma moça feita aí (minha mãe sabia que havia pelo menos duas) pra trazer aqui? E a Nerva, aqui não tem, manda uma criança. Aí minha mãe encerrou a questão, mando coisa nenhuma, recolhe esse doce que ninguém vai buscar e eu não quero mais. Mais tarde minha tia trouxe o doce e falou para minha mãe que Minervina estava chorando, muito sentida. Minha mãe não ficou nem aí.
Minervina veio da roça ainda muito mocinha para trabalhar com meus avós e tios. Era pessoa considerada da família, ajudou a criar a meninada. Sentia o maior orgulho de cozinhar para todo mundo e era um honra para ela quando havia convidados. Quanto mais convidados, mais honrada a Nerva ficava em servir. Nunca cogitou namorar e casar. Sua missão de servir vinha acima de tudo. Certa vez, quando estávamos no terceiro ano primário, eu, meu primo e outros colegas queríamos fazer uma surpresa para a professora que por sinal era casada com outro primo nosso. Pensamos num bolo daqueles que a Nerva sabia fazer como ninguém no mundo. Fomos lá pedir pra ela. Ela fez o maior suspense, rodeou aqui, ali, disse que não podia, que estava muito ocupada, perguntou quanto poderíamos pagar. Disse que iria pensar. Um belo dia, a Nerva nos chamou lá e quando entramos pela cozinha, lá estava o bolo mais lindo do universo inteiro, acho que tinha mais de um andar, verde, de um glacê durinho que ninguém nunca mais na face da terra conseguiu fazer, tinha umas florzinhas cor de rosa enfeitando. Não quis receber nada, o que foi ótimo porque também não tínhamos dinheiro algum. Ficou feliz em servir.     
Só que era gente como todo mundo, e sentia carência de afeto como qualquer um. Bem mais tarde, já velhinha, quebrou a perna e o dia mais feliz de sua vida foi quando, no hospital, recebeu a visita de dezenas e dezenas de pessoas. Era a própria imagem da felicidade, sentia-se importante como a rainha da Inglaterra e falava como quem houvesse recebido o prêmio Nobel, abrindo o maior sorriso: quebrei a perna!