Chego
ao prédio de minha irmã. Meu marido me espera no carro, tem a ilusão de que vou
apenas levar o teclado até lá em cima e volto correndo. O que ele não sabe é
que vamos falar atabalhoadamente sobre pelo menos dez assuntos, tudo em oito
minutos. Enquanto falamos, tiro apressadamente um cheque da bolsa para acertar nossas
contas. Mesmo em pé, debruço-me sobre a mesa e começo a preencher o cheque, e
aí minha irmã me chama a atenção em tom baixo para não quebrar o encanto:
-
Misa, olha quem está aí pertinho de você.
Eu acordo de meu torpor robótico, imerso
num universo avesso à sensibilidade das criaturas e da natureza. Paciência.
Vivo no mundo da pressa, dos atos imediatistas, da correria absurda que me
anestesia e me aliena. Confesso que preciso sempre me beliscar para não perder
um mundo tão lindo que acontece e que displicentemente deixo passar. Sou consumida
pela vida caótica, pela ansiedade e urgência das providências.
Mas
paro e olho. É ela, a adorável pretinha, Nina, em cima da mesa, pertinho de mim
como se quisesse me saudar. E ela quer, de fato. Já me conhece, e demonstra seu
amor por mim. É a gatinha que minha irmã salvou do mundo cruel. Como se não
bastasse nosso adorável Bichinho, que já é um respeitável gatão gigante todo
plácido e amoroso, Agueda traz da rua uma microgatinha pretinha, com os
bigodinhos queimados por um humano capaz dessas atrocidades. A Nina chegou,
toda ela, com uma personalidade totalmente dela, arisca, charmosa, dengosa. A
princípio pensamos que não ia dar certo. Até já cogitávamos de fazer uma sessão
de fotos para oferecê-la no Face, pois o Bichinho se encrespava todo, disposto
a não ceder lugar para a nova integrante da família. Que nada! Logo se
entenderam e hoje são mais amigos do que nunca. Afinal os animais se entendem,
os humanos é que não.
Nina
chegou doentinha. Logo foi para o veterinário, tomou isso mais aquilo, parecia
uma isquinha de gato, de tão magrinha e fragilizada. Minha irmã me relatava por
telefone cada progresso da recuperação da gatinha. Não houve como não me encantar
de imediato com o vocabulário incrivelmente original e cheio de sensibilidade
de minha irmã para falar dos bichanos. Eu achava a maior graça toda vez que ela
usava certas frases com expressões que fariam os linguistas se deliciarem. Dizia
ela:
-
Misa, a Nina tá tomando direitinho o remedinho dissolvido na água. Tudo com muito
inho e inha. Depois de dias sem se alimentar direito, ela está dando
“linguadinhas” no pratinho.
Ou:
- Misa,
a Nina ficou um tempão examinando minuciosamente a caixa do ventilador.
Decididamente, tudo de novo que entra pela casa tem que passar “pelo crivo” da
Nina. A gatinha tem se mostrado uma espiã de tal envergadura que faria Miss
Marple morrer de inveja.
Mas tornemos à Nina em cima da mesa.
Mantém aquela posição típica dos felinos quando escondem as patinhas que ficam
dobradas e “guardadas” junto ao corpo. Parece uma bolinha preta. Os olhos
fecham-se languidamente, para depois se abrirem com jeito de sono, como se quisesse
lançar piscadelas sensuais. Já sabemos que isso é sinal de amor e carinho. Eu
não me seguro. Começo a falar com ela naquela linguagem que as mães adoram falar
com os bebês. E eu chamo: kit kit kit kit ... ti belejinha, veio cumprimentá a
tia Misa! Qué coçá baiguinha?. Mas se ergo as mãos para acariciá-la, já sei,
ela se afasta, foge. Nunca soubemos se isso é da raça, ou dela própria. De vez
em quando ela se joga no chão para que cocemos a barriguinha, mas se ousamos abaixar
para pegá-la, ela se esquiva. Um amor. Um amor.
Sempre que posso vou visitar minha
irmã e brincar com os gatinhos. Eles me remontam a um passado distante, quando
eu, ainda menina, chegava da escola, arrancava às pressas o uniforme, botava um
short velho e ia para a casa da vizinha brincar num gramado alto com um gatinho
encantador que já me esperava lá escondido dentro dos tufos de capim. Eu não
sabia, mas era minha dose de remédio para suprir a ternura tão necessária na
vida de todos nós.
Amo os cães e amo os gatos. São tão
diferentes e tão ternos, cada um a seu modo. Nina é pequena, mas mostra que
dentro dela mora uma grande alma de felino que desperta a cada instante para atender
aos seus instintos. Passa longos momentos sem mover um músculo, em posição de
ataque para perseguir um tiquinho de inseto no teto. Nada mais a interessa do
que caçar aquele bichinho. Mesmo sendo apenas uma minúscula gatinha, parece que
dentro dela vive um tigre ou um puma com todos seus instintos raciais em pleno
vigor.
Gosto tanto dos cães e gatos e, no
entanto, não os tenho comigo. Por que será? Tento justificar para mim mesma que
moro em apartamento, que podem incomodar os vizinhos, ou que se formos viajar,
é um sofrimento a mais. Para dizer a verdade, tenho medo do trabalho. É como se
eu adorasse bebês só para brincar com eles, mas na hora da doença e de manter a
área limpinha, aí to fora! Mas de uma coisa estou certa, quem convive com cães
e gatos tem um olhar diferente sobre a vida. Como diz minha irmã: “não há o que
pague a ternura de abrir a porta e dar com meus gatinhos bem à minha frente, esperando
por mim.” Pura verdade.