sexta-feira, 23 de junho de 2017

SEM DESPEDIDAS




            Há algum tempo percebi que logo de manhã um casal de canarinhos aparecia na minha área e se esbaldava entre meus vasos. Eles se esgueiravam entre os galhos da primavera que sempre gentil nos oferece prodigamente suas flores, e se refestelavam cobertos pelo sol de inverno e pelo azul infinito do céu. Brincavam em trinados sonoros de chamar atenção e como crianças exaustas pelas brincadeiras, sossegavam e voavam ganhando o céu, desaparecendo em rápidos segundos.
No dia seguinte voltavam e eu ia vê-los, dava bom dia, conversava com eles como a gente conversa com os bebês, gatinhos e cãezinhos. Meu marido colocou para eles água em um potinho dentro de um dos vasos e eu já havia alterado minha rotina matinal para não perder aquela alegria toda trazida pelos ruidosos canarinhos felizes. Já os considerava parte de minha vida. Logo os tinha por meus.
            Aconteceu que num belo dia não apareceram. Nem no outro, nem no próximo e nem nunca mais. Eu via o potinho com água, olhava para o infinito azul, via pássaros cortando o céu, mas meus canarinhos, nunca mais, “never more, never more” como dizia Edgar Allan Poe. Será que estariam em lua de mel e findado o tempo da euforia inicial de um relacionamento já haviam partido apressados para suas vidas? Acima eu disse “meus canarinhos”. Em poucos momentos de visita eu já os considerava meus. Quem falou que eram? Nada é nosso. Tudo e todos partem como também partiremos. A morte é certa, a hora é incerta.
            Fiquei um pouco triste e pensativa com a partida dos passarinhos assim sem despedidas. O pouco tempo que passaram conosco com sua fragilidade me remeteu à minha própria existência tão rápida e efêmera. Lembrei-me das pessoas queridas que também já partiram sem se despedir.  Simplesmente elas se vão, desaparecem no infinito e não sabemos delas. Como diz certa mãe quase centenária de uma amiga minha: que coisa mais estranha, ninguém dá notícias deles pra nós! Eu creio em Deus e na vida eterna. Isso deveria bastar, mas existe o bendito do sofrimento pela ausência. Paciência. Faz parte.
            Uma vida humana se compõe de poucas décadas. A mosca vive vinte e oito dias, um cão, não mais que vinte anos. Em termos de universo nossas poucas décadas não passam de ínfimos átimos de segundos. Minha mãe contava uma história de que me lembro pouco, mas mais ou menos assim: um jovem monge  que aspirava tornar-se um filósofo questionou Deus acerca do mistério do tempo, algo como o que seria o tempo de nossa vida em relação à eternidade. Enquanto ponderava essas questões, levantou-se para buscar um livro. Ao voltar, sentiu uma imensa fraqueza nas pernas. Logo levantou os olhos para um espelho e viu um homem carcomido pela velhice. Sua barba chegava ao peito e ele, evidentemente não se reconhecia naquele rosto e corpo repletos de marcas do tempo implacável. Com o coração aos pulos, compreendeu que Deus lhe mostrava como a vida era passageira e célere em relação à eternidade, pois um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia. Agora, a compreensão do mistério, este não teremos, não aqui. E para quê? O mistério não basta? A mim sim, sempre me encantei com os mistérios. Santo Agostinho nos incitava a preferir encontrar Deus não compreendendo seus mistérios a não encontrá-lo, compreendendo.
            Os canarinhos chegaram. Os canarinhos foram embora. Fiquei triste. Fim da história. Para os que não creem em Deus ou na vida eterna, tudo bem. Escolho o poeta Rainer Maria Rilke para finalizar: “Não queiras entender a vida e ela será como uma festa.”

sexta-feira, 16 de junho de 2017

LOUCADEMIA


            Confesso que sempre negligenciei os exercícios físicos, volta e meia estou procurando desculpas para não me exercitar. Fico eternamente recomeçando de tal forma que quando meu médico pergunta: e aí, tá fazendo exercícios? Eu respondo, no momento sim. Reiniciei pela enésima vez a musculação. Sei que é necessário, mas sigo para a academia cambaleante e sofrida como uma condenada arrastando ferros para subir ao cadafalso. Quando vai chegando a hora sou acometida por uma tristeza sem igual, além de um sono irresistível que se pudesse deitaria e dormiria por horas o sono precioso que me foge à noite. Mas tenho ido, não sei até quando. O fato de ir com alguém ajuda bem. Minha irmã e eu vamos juntas, isso quando ela vai, pois mais não vai do que vai.
            Nosso personal trainer é um anjo, um menino educadíssimo, encantador e competente que nos incentiva a todo instante: Vamos Dona Misa, falta pouco! Muito bem Dona Misa! Desde a hora que chego lá até a hora de sair padeço de um estranho transtorno obsessivo compulsivo: não tiro os olhos do relógio contando os minutos para vir embora. Abro a boca, bocejando como se não dormisse há séculos. Mas vamos lá, a gente não faz apenas o que dá prazer, mas o que precisa fazer.
            Por incrível que pareça, o exercício que me atrai é aquela remada no verdadeiro sentido da palavra. Sinto-me um autêntico Ben Hur nas galés, puxo os braços e empurro os pés. Fecho os olhos e me imagino lá, eu e Charlton Heston com o suor escorrendo seguindo aquela batida ritmada. Aliás, imaginar é minha especialidade. Olho em volta e vejo seres do outro mundo: homens musculosos, moças de músculos durinhos que empurram pneus grossos fazendo-os cair estrondosamente pelo chão. Esteiras a 120 por hora, música maluca de fundo, e de repente lembro-me da Caverna de Platão ... “que estranhos seres são estes?” e fico pensando se meus pais e avós pudessem visitar uma academia de musculação, o que diriam? Certamente pensariam que estavam transportados para outro planeta. Enfim, faço o tempo passar.
            Outro dia o personal achou de exercitar certo pequeno músculo chamado “manguito do rotador”, do qual nunca ouvi falar mais gordo ou mais magro, fica mais ou menos dentro da escápula (sabe-se lá o que é isso, acho que é o ombro). Bem, ele disse que é um músculo pouco exercitado. Na aula seguinte, eu e minha irmã estávamos literalmente quebradas, tudo doía, e cheguei à conclusão de que o moço estava certo. O tal músculo na verdade nunca tinha sido exercitado, simplesmente jazia inconsciente entre as fibras de minha escápula desde meu nascimento, e fora enfim acordado de seu sono de mais sessenta anos. Pela primeira vez era incentivado a trabalhar e já o imaginei se espreguiçando todo com mais preguiça do que meu corpo que o abrigava comodamente.
Agora o rapaz pegou a mania de nos manter enganchadas numa barra, soltando todo o corpo para nos esticarmos. Fecho os olhos porque, aterrorizada, compreendo finalmente a razão de as pessoas não conseguirem se manter penduradas em pontas de telhado ou parapeitos de janelas. As pobres mãos não aguentam. Enquanto ele faz a contagem: 1,2,3 ...20, eu fecho os olhos e vivo momentos de intenso terror lembrando-me do filme “Um corpo que cai” do Hitchcock”.  
            Finalmente os ponteiros do relógio sinalizam que a aula chegou ao fim. Sinto-me
 ótima! Nada como o depois da musculação. Tudo passa. Saio da loucademia, que alegria!


sábado, 10 de junho de 2017

ETERNO NAMORADO



“Quando eu sei que ele vem, eu fecho a porta para a grata surpresa. Vou abri-la como o fazem as noivas e as amantes. Seu nome é: Salvador do meu corpo.” (Adélia Prado)
Quando meu amor ainda não tinha chegado à minha vida, eu achava a maior antipatia quem chamava pelo namorado ou marido de bem, beiêeee! Para pagar a língua, só chamo meu bem de bem, beiêee vem cá, beiêee põe água nas plantas pra mim, bem pra cá, bem pra lá, afinal “amor, tem que falar meu bem”, diz Adélia Prado. Como não chamar de bem quem me advertiu com uma adorável e solene seriedade na véspera do casamento: casamento pra mim é pra toda a vida, viu? E eu sorrindo concordei feliz como são todas as noivas, embora soubesse que o futuro a Deus pertencia. Que me importava o futuro? O presente era tudo e continua sendo. O futuro não existe, não é assim que dizem?
Bem, agora este bem em início da frase não significa bem de amor, nem é substantivo, tampouco advérbio, talvez mais para interjeição. É algo como “vamos lá” ou talvez “vejamos”, sei lá, mania de continuar a conversa. Bem, e vamos vivendo o presente cheio de pequenas coisas grandiosas, como quando ouço seus passos na escada e chamo pelo seu nome, e ele me responde solícito. Ou quando conversamos na hora do almoço e falamos de filosofia, de gramática, de história, de filmes, de pratos a serem testados e até de alienígenas.
E ele sempre me conta histórias bobinhas para desmanchar minha cara feia. Como aquela em que eu não queria mais comer carne e ele, sério com um riso no canto da boca, me segreda que um boi seu amigo disse que neste mundo de Nosso Senhor um come o outro, por isso ele, o boi, está de acordo que a gente coma sua carne. E aquela em que os homens das cavernas pensavam que a mulher tinha poderes sobrenaturais,  pois podiam procriar e eles não. Aí um dia descobriram que sem seu sêmen os bebês  não seriam feitos e então fizeram o diabo a quatro, arrastaram suas mulheres pelos cabelos e deram início a milênios de dominação machista.  
Às vezes fico amuada, coisa de menina mimada. Ele acha graça e me diz que eu pareço a personagem da música de Juca Chaves, “de dia uma menina, de noite uma mulher”. 
No entanto, não desejo amores arrebatadores nem paixões avassaladoras ou corações tresloucados, amar baixinho já é loucura demais. Quero a presença calma, a gentileza dos momentos comuns de todos os dias, a empada de palmito, as empanadas, o pão caseiro, o chope amargo ou o vinho bem seco. Quero andar de mãos dadas, o sorriso certo, sempre a cama simples, mas quente, sem pudores. Quero o amante e o eterno namorado. Quero o presente porque o futuro a Deus pertence. Quero a presença.
Mas no dia dos namorados vou querer bolo de noiva sim senhor, camafeu e champanhe. O amor deve ser tudo isso. A gente é que nunca percebe.  

sexta-feira, 2 de junho de 2017

ALGUNS MINUTOS



            O que são alguns minutos? Depende. Eu estava na fila da farmácia. De repente a fila empaca na minha frente. Apenas uma caixa a postos. A mulher já havia dado o dinheiro para a caixa que perguntou:
- Por acaso a senhora tem um real e cinco centavos aí?
E a mulher diz:
- Vou procurar.
            Aí vai, abre a bolsa, procura a carteirinha de moedas e nada. Com muito custo acha, e abre na maior calma do mundo. O fecho empaca! Ai, ai, é pesado, mas vai. Agora ela procura entre as moedas, a de um real e a de cinco centavos. Uma eternidade! A fila começa a se irritar. Alguém solta uma frase:
- Não tem mais caixas não?
A mulher não acha a moeda de um real nem a de cinco centavos. A caixa se arrepende do pedido, diz que não precisa, porém a mulher não ouve, quer colaborar de tudo quanto é jeito na maior gentileza. A fila chega ao seu ponto máximo de impaciência. A mulher diz:
- Pera aí, tem a outra bolsinha e desata a procurar a outra bolsinha. Esperemos, minha gente! A bolsinha está dentro da bolsa grande. Todos topariam contribuir com o trocado pedido, mas é indelicado, fica chato. A solução é esperar.
Eu tento me controlar porque minha natureza também é impaciente, não é à toa que desde menina era chamada de formiguinha, sou ágil, ando depressa, acho as coisas depressa, vivo depressa. Não é possível essa demora, ainda preciso passar no supermercado.
Felizmente reflito: o que são alguns minutos a mais? Qual o problema de esperar? Que diferença farão seis, oito ou dez minutos na minha vida? Bom, em alguns minutos eu posso morrer, ou posso receber um telefonema avisando que fui premiada num desses sorteios de capitalização, ou no bilhete para a festa da igreja.    
Em alguns minutos alguém muito querido que eu não vejo há tanto tempo pode entrar na farmácia e me dar um abraço apertado daqueles especiais!  Em alguns minutos de atraso alguém pode perder um voo do avião que logo depois pode cair. Em alguns minutos deste mundo impaciente, aqui, enquanto espero, posso receber aquela revelação celestial ou aquela inspiração dos deuses e então poderei escrever uma crônica ou um poema genial, quem sabe, o melhor de minha vida.
 Em alguns poucos minutos eu já não serei mais a mesma, pois sei que a cada instante mudamos, nunca somos mais os mesmos e às vezes isto se dá não apenas em anos, dias, mas em segundos, verdade benfazeja e ao mesmo tempo dolorosa. Em alguns poucos minutos tudo pode acontecer. E no frigir dos ovos, se nada acontecer mesmo, eu terei tido, pelo menos, a oportunidade de pensar e refletir sobre a fragilidade e a transitoriedade da vida.
            Finalmente a mulher acha a bolsinha, tira a moeda de um real e a de cinco centavos, entrega para a caixa. Depois olha para todos nós na fila, sorri e vai embora. Só seis minutos.