Era véspera de Ano Novo. O velho acordou,
abriu lentamente os olhos e lembrou-se. Não estava no asilo onde morava, e sim
na casa de uma sobrinha que tinha por hábito trazê-lo pra sua casa em dias de
festa. Já havia se acostumado com os sons da casa, o barulho de louça na
cozinha, um galo cantando ao longe, música no velho rádio da família, o menino
esperto falando qualquer coisa com a mãe. O homem virou de um lado, virou de
outro e por fim sentou-se na beirada da cama. Passou a mão pelos ralos cabelos
que ainda lhe restavam. Olhou para os lados por puro hábito. A escuridão era a
mesma de sempre, fosse noite, fosse dia. Nem uma sombra, nem uma réstia de luz.
Isso não era novidade, estava habituado à escuridão. Era cego,
irremediavelmente cego, desde seus cinco anos. Lembrava-se muito vagamente de
algumas nebulosas imagens, porém era algo tão remoto no tempo que já não sabia
ao certo se havia sonhado com essas imagens imprecisas ou se de fato tinham
existido.
Vestiu sua roupa, uma espécie de
uniforme de algodão azul desbotado. Sem necessidade de mirar-se no espelho,
galgou com passos largos o corredor que dava ao banheiro. Após lavar-se foi se
sentar na varanda, onde sentiu o calor do sol que banhava todo o ambiente.
Recebeu bons dias e logo ouviu a mãe do menino lhe chamar para um café quente
com broas de milho. Ele falava pouco, não por tristeza, apenas por uma solidão
forçada pela cegueira que o obrigou a construir uma vida dentro de si em que
falava com ele próprio, com seus pensamentos, com Deus ou sabe-se lá com quem.
Mas o homem era afável com todos e não trazia nenhum traço de amargura.
Aceitava seu fardo com coragem, aliás, quando não mais pôde mais enxergar não
precisou de coragem, apenas do afeto da mãe que enxergava por ele e lhe abria
os caminhos coloridos do amor. A cegueira não era um fardo para ele. Decididamente
não.
O
menino, como é próprio das crianças, sentia curiosidade ao conviver com quem
tinha os olhos brancos e mesmo sem enxergar, conseguia andar pela casa sem
esbarrar nos móveis e conversava sobre diversos assuntos, como se para
conversar fosse preciso enxergar. Eles se davam bem. E a hora que o garoto mais
gostava era quando o velho cego se preparava para escrever.
Naquela
noite, pouco antes da virada do ano, o homem colocou uma folha de papel grosso
entre duas tábuas de metal. Suspirou profundamente e em seguida, sem hesitar um
segundo, com uma velocidade assombrosa, pôs-se a picar o papelão como num
transe, como se tivesse a visão mais perfeita do mundo. Finda a operação, o
homem cego ainda permaneceu em silêncio, inebriado, ausentado de si, como se
sua alma tivesse se soltado delicadamente de seu corpo. Ele quedou-se
encantado, preso num momento mágico que o transcendeu por completo. O garoto,
intuitivo, sabia que algo muito grandioso havia se passado com o homem. E lhe
perguntou o que tinha escrito, ao que o homem respondeu: escrevo o que sinto e
quando escrevo eu vejo. Não sei se é um poema, diga-me você. E passando os
dedos pelas saliências do papelão, leu para o menino:
“Sinto
o coração pulsar forte, desço às cavernas profundas dos oceanos onde a vida
teve início. Alço voo até o céu, compartilho o universo com os pássaros batendo
as asas e saboreando o vento numa imensidão azul. As águas são lindas e o céu é
fulgurante. Deixo a masmorra triste da cegueira, e finalmente, liberto, provo
do êxtase pela beleza da vida neste momento de rara epifania. Meu escrever é a
forma de acender as estrelas nesta irremediável escuridão de cegueira
física.”
Os
fogos pipocaram na noite escura. Feliz Ano Novo, exclamaram todos! O velho cego
abraçou cada pessoa, sentindo-se agraciado pela vida, afinal talvez enxergasse
bem mais do que todos. Bastava escrever.
(Inspirado em um relato verídico de José
Saramago)