sexta-feira, 16 de novembro de 2018

LIÇÕES DAS CRIANÇAS SOBRE O MUNDO



Quando leio um livro, guardo o hábito de grifar, às vezes até com caneta as passagens que mais me encantam e anotar o número dessas páginas ao final. Aí, quando eu folheio meus livros preferidos e procuro pelos tais parágrafos que me chamaram a atenção, eu me encanto novamente, cada vez mais encantada que a última. Pois bem, foi assim que não só verifiquei as passagens preferidas como li de novo “As pequenas memórias” de Saramago.
Um relato em questão me tocou profundamente: ainda bem menino, Saramago subia ao Chiado acompanhado da mãe e da tia e, encantado com os balões coloridos que um homem vendia, pediu à mãe que lhe comprasse um. Este era seu primeiro balão em seus seis ou sete anos. Mais adiante, segurando o cordão e se sentindo importante e feliz como se conduzisse o universo inteiro pelos ares, ouviu alguém que se ria dele em suas costas. O menino olhou para trás e viu que o balão havia se esvaziado e que ele, sem se dar conta, arrastava pelo chão de barro uma coisa suja, enrugada e informe, e tudo isso sob a caçoada dos dois homens que vinham atrás. Naquele momento ele se sentiu como o mais ridículo dos espécimes humanos. Nem sequer chorou. Deixou cair o cordão e agarrou-se aos braços da mãe como se fosse uma tábua de salvação e continuou a andar. Para ele, aquela coisa suja, enrugada e informe era “realmente o mundo”, palavras dele. Aqui costumamos dizer que era a cara do mundo.  
Evidentemente que Saramago superou esta humilhação provocada pela covardia de dois adultos e como vingança nos presenteou com a delicadeza do mundo belo, sensível e maravilhoso de suas obras. Como é salutar realizar uma vingança boa!
Agora relato outro episódio de criança, porém que se passou com a escritora deste texto. Tinha eu por volta de sete ou oito anos e frequentava as aulas de catequese na antiga Sede em Pedralva, construção que os mais velhos devem se lembrar. Eu era uma menina inquieta e chata que às vezes dava trabalho para as professoras. Lembro-me de fazer brincadeiras e atrapalhar a aula da professora moreninha e delicada que tentava me refrear com doçura. As outras crianças, contaminadas pelo meu mau comportamento, riam e me incentivavam a continuar com as peraltices. Cheguei ao cúmulo de sair de minha carteira e ocupar a cadeira da professora que continuava a aula virada de costas para mim. Comecei a balançar na cadeira para frente e para trás fazendo macaquices até que não deu outra: caí com a cadeira e tudo de costas no chão. Tonta, ainda sem entender o que havia acontecido comigo, comecei a chorar ouvindo a turma que gargalhava a não mais poder. Eu mereci, bem feito pra mim. Mas a professora, nossa, que lição! Como assim? Quem falou? Ficou brava com a turma e me socorreu gentilmente, com muito cuidado, com muito amor. Ela me levantou, me abraçou e me acolheu. Eu fiquei com o rosto enterrado nos braços chorando mais pela humilhação do que pela dor. A aula acabou e eu continuei sem poder encarar ninguém. A professora não desistiu de mim. Continuou lá comigo, falando palavras de conforto que só faziam com que meus olhos fabricassem mais e mais lágrimas. Eu sofria pela humilhação do tombo, mas igualmente por uma sensação incômoda de algo me faltava, o castigo merecido que a professora não me impingiu. Ela sabia e eu também que já estava por mim mesma castigada. E esta compreensão doía muito. Era confuso, mas entendi: “No pain no gain”.
Fui para a casa e tratei de despistar para minha mãe não perceber meus olhos vermelhos e inchados de tanto chorar. Contar para ela era algo impensável, fora de questão, pois tenho certeza de que me puxaria as orelhas e me golpearia com uma saraivada de chineladas merecidas no lugar apropriado! Eu já havia aprendido a duras penas como deveria me comportar nas aulas. Esta lembrança me acompanhou por quase seis décadas (descobri que é bem mais suave falar “décadas” do que “tantos anos”). A professora me mostrou que o mundo poderia ser, além daquela “coisa suja, enrugada e informe”, uma delicada experiência de aprendizado. Quem seria ela? Por onde andará? Será que se lembra? Gostaria que lesse esta crônica. Fica aqui minha homenagem a ela e às professoras que nos ensinam bem mais do que os conhecimentos de português e matemática e outras infindáveis disciplinas.    

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

BABÁ - Um encanto de pessoa



            Estava eu ontem, dia 4, assistindo à missa na Matriz da Soledade quando ouvi a Primeira Leitura que tratava dos 144.000 assinalados. Impossível não me lembrar da Babá, mulher excepcionalmente encantadora que tive a honra de conviver por longos anos. Ela e minha mãe eram muito amigas, coisa de confidentes mesmo. Lembro-me de quando minha mãe ia até sua casa e em seu quarto trocavam desabafos, mas 98% das conversas versavam sobre orações, vidas dos santos, como devia ser o Céu e tal e tal. Eram tão amigas e tão piedosas que quando se encontravam seu cumprimento não poderia ser outro:
- Mamãe: E o anjo do Senhor anunciou a Maria!
- Babá: E ela concebeu do Espírito Santo.
- Mamãe: Eis aqui a escrava do Senhor,
- Babá: Faça-se em mim segundo à Vossa Palavra.
- Mamãe: E o Verbo Divino encarnou,
- Babá: E habitou entre de nós!
            A Babá se chamava “Sebastiana Inês”, mas “Babá” acabou por ser incorporado ao seu nome, ou seja, ela era sempre chamada e conhecida pelo apelido de Babá por crianças e adultos. Menina ainda, foi criada pelos avós de minha prima. Babá ajudou a criar ou criou mesmo a primeira geração da família e depois a segunda. Era amada por todos. Lembro agora do nosso saudoso Darci que adorava de paixão a Babá e ia muito à sua casa. Em seus aniversários Babá recebia presentes de todos da família, como das amigas da igreja, aliás, Babá não saía de lá. Enquanto pôde, ela subia o morro da igreja para assistir à missa das 6 da manhã e, imagine, já ficava pra missa das 7. Todo mundo já sabia.
            Quando ficou mais velha e com mais dificuldades para andar, minha mãe arrumava seu almoço e me pedia para levar lá pra ela. Babá era extremamente carinhosa comigo. Via como eu me preocupava com a mamãe e dizia, rindo: A filha é mãe da mãe, kkkkk.
            Minha prima Musa foi encarregada de recolher certa quantia dos irmãos e primos que ajudaram a Babá em sua velhice. Musa comprava os medicamentos e levava para ela que lhe dizia: Oferece mãezinha, oferece! (a Deus). Ela chamava a Musa de mãezinha! Quando a Musa voltava do trabalho, quase sempre ia buscar a Babá para ficar com a tia Odete, e depois a levava de carro para casa. No elevador, olhando a Musa pelo espelho, a Babá dizia: Oferece, oferece, querendo dizer que “dava muito trabalho”.
            Babá cometia apenas uma “contravenção religiosa”: jogava no bicho. Alguém lhe dava algumas cartelas e logo ela mandava uma das minhas primas com um dinheiro dobrado miudinho para entregar a quem de direito. Se minhas primas não estivessem em casa, servia qualquer um. Da janela ela chamava qualquer pessoa que morasse no bairro ali pertinho onde ficava a lotérica do bicho. Seu Geraldo Charreteiro muitas vezes parou sua charrete para a Babá que acenava para ele e assim também cumpria este papel de entregador dos trocadinhos do jogo.
Não sei se por causa deste “deslize” para mulher tão santa, ela se preocupava com o portão do Céu. Seria aceita? É onde agora eu retomo o início deste relato. Em Apoc. 7, 1-8, diz a palavra: “Não danifiqueis a terra, nem o mar, nem as árvores, até que tenhamos assinalado os servos de nosso Deus em suas frontes”. “Ouvi então o número de assinalados: cento e quarenta e quatro mil  ...” E a Babá, preocupadíssima, perguntava para minha mãe se ela estaria incluída nesses 144.000. Minha dizia que sim, que “é lógico, minha filha, você está incluída, se não estiver, quem estará?” E Babá foi para o Céu mansamente, numa santa morte, em 1996, deixando muitas saudades. Sua lembrança para nós é tão doce que suponho ter ela deixado seu coração conosco.
É como ouvi de minha prima Alice Carvalho: a vida é tão rica, Deus é tão bom! 
  

domingo, 4 de novembro de 2018

SOU POETA



Sei que a alegria é fugidia,
Quem sou eu para querer sempre mais?
Depois do dia vem a agonia da noite escura,
Uma tortura.
Nada mais. Nada mais.

Felicidade não existe,
A gente é que insiste e resiste,
Que teima e tenta ser feliz.
Mas Deus fez e faz tudo como sempre quis.
A gente faz e Deus desfaz.
Tudo bem. Amém.

Para a tristeza, uma boa caneca de café,
E biscoitos quentinhos. Consola.
Também um bom prato de mingau. Uau!
É meio caminho andado. Comprovado!
Cumpre sempre cantar.
Se a voz desafina, a alma se anima.
Cantar até adormecer.
Cantar até morrer.

Meus sentimentos vivem numa gangorra permanente.
Uma hora triste, outra contente.
Sou poeta, sou diferente.
                                                                                 

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

MULHERES DESDOBRÁVEIS



 Há pouco tempo postei uma crônica já mais antiga, “Quem canta seus males espanta” em que cito a famosa passagem de Jesus com Marta e Maria. Como uma cereja traz outra cereja, logo nasceu o poema Marta e Maria que amei fazer. Então, guardei um comentário da amiga Zali Alkmin que achei muito legal. Ela disse: “seu texto me fez lembrar de uma reunião realizada em minha casa com o Padre Geraldo Barbosa e um grupo de jovens! Eu, tentando servir um lanche e ao mesmo tempo participar dos diálogos! Padre Geraldo então me falou: sossega um pouco, você quer ser Marta ou Maria? Todos riram quando eu respondi: quero ser as duas!...”
            Querida Zali, o fato é que nós mulheres, “somos desdobráveis”, já dizia Adélia Prado. Assim fomos feitas, está em nosso DNA. Somos mulheres, mães (eu não sou mãe mas sou cuidadora por excelência, instinto maternal todas temos ou quase todas), trabalhamos fora de casa, em casa, trabalhamos na Igreja com diversas funções, somos conselheiras, enfim, fazemos de tudo. Eu sempre brinco que Jesus curou a sogra de Pedro "que logo se pôs a servi-los” (Lucas, 4,38) porque decerto Ele e seus discípulos estavam famintos e não havia outra mulher por perto, e afinal, esta era a função que ela mais amava. O que seria dos homens sem nós, mulheres?
            Que bom que somos desdobráveis, mas fiquemos atentas, gente, para saber a diferença entre ação e agitação, pois realmente, o que Jesus condenava não eram os trabalhos de Marta, mas a agitação com que ela se entregava a eles. Também é fato que fomos criadas para sermos Martas, pelo menos as mulheres de minha geração. Porém acredito que isto esteja de fato em nossa fantástica condição de mulher. É da nossa natureza e acho lindo que assim seja. É só chegar alguém que a gente já põe a água no fogo para fazer um café, e logo algum filho ou o marido pergunta: “beeem, onde está aquela calça assim, assim?” E nós sabemos tudo. Estamos sempre atentas, vigilantes em nosso amor. Nosso olhar abarca tudo, tipo assim 360 graus. Somos capazes de perceber que fulano não comeu direito, que beltrano está triste, e lá vamos olhando o assado no forno, sem perder nada.
            Como não me lembrar de minha mãe, sempre tão trabalhadeira, vindo do mercado? Rindo muito, ela dizia que se não tivesse outra coisa para apresentar a Deus depois de sua morte, mostraria as sacolas pesadas com que nos sustentava. Ainda ensinava o corte e costura e jamais perdeu uma cerimônia da Semana Santa. Era uma mulher enamorada de Deus, ou seja, desdobrável ao máximo, era Marta e Maria.
Bem dizem que não deveria existir o “Dia Internacional da mulher” porque todo dia é para se comemorar a grandiosidade de ser mulher. Repito, somos desdobráveis,  somos Marta e Maria, e sem dúvida que Jesus sabia. E em sua sabedoria, Ele só quis alertar Marta a pisar no freio, que mal algum não lhe faria.