sábado, 7 de dezembro de 2019

FILHO DO AMOR



            Naqueles antigos tempos em que se dançava no D.A, no Diretório Acadêmico da EFEI, eu tinha uma amiga conhecida que era apaixonadíssima por um estudante e lá ela ia todo sábado para ver se conquistava o rapaz. Ele nem aí pra ela. E ela, com o coração dolorido de amor, me disse um dia: Misa, este sábado vai ser a última vez que vou esperar por ele. Se ele não me tirar pra dançar, se ele não quiser nada comigo, o primeiro, anota aí, o primeiro fulano que aparecer querendo dançar comigo eu vou dançar com ele e se ele quiser namorar comigo, eu vou aceitar. Cansei. Pois assim foi. Ela conheceu o fulano, dançou com ele, namorou com ele, casou com ele e foi muito feliz com ele. Talvez nos primeiros tempos ela ainda pensasse no grande amor que não foi. Talvez nos primeiros tempos ela ainda não havia se apaixonado pelo fulano. Não. Mas nos tempos seguintes ela se apaixonou e amou porque amor se constrói.
            E hoje, eu abri ao acaso o livro de Mia Couto “O último voo do flamingo”, livro que guardo com muito carinho porque foi autografado pelo autor. Na verdade eu não estava presente, foi minha irmã que pediu que ele autografasse para mim. Enfim, abri o livro ao acaso e como também um livro nunca deve ser lido apenas uma vez, às vezes duas, três ou infinitas vezes porque sempre perceberemos algo mais que não havíamos percebido antes, dei com uma passagem que me matou de ternura. Os livros são mágicos. Abri em uma página em que o personagem Massimo resolve contar uma estória, que ele chama mais de lembrança do que uma história. Transcrevo aqui:
“Não é uma estória, é uma lembrança. Recordei-me do que faziam com um certo avô, quando envelheceu lá na Itália. À noite levavam o velho à prostituta. Chamavam a meretriz à parte e lhe pediam para ela lhe dar TERNURA. Simples carinho sem anexos nem sexo. Afinal, o prazo do velho já passara. A meretriz que simplesmente cantasse para o adormecer. Assim combinavam com ela, sem que o velho se apercebesse. Porém o que sucedeu, com os anos, é que a moça se converteu e se dedicou em exclusividade ao idoso avô. Nunca mais nenhum homem lhe foi conhecido. Até que um dia, a prostituta apareceu grávida. Ninguém levantava dúvida: a criança seria do avô.
- E você, Massimo, se lembra disto por que?
- Essa criança sou eu.”
Porque pagaram à prostituta para dar ternura ao velho e ela levou tão a sério que a ternura se transformou em amor e como o amor dá frutos, Massimo nasceu deste amor.
O amor é diferente da paixão, é lógico. A paixão é enlouquecida, não tem bom senso. Você quer porque quer tal pessoa que não quer você. Aconteceu comigo também. Acontece com muita gente desde que o mundo é mundo. Já o amor é sábio, é tranquilo, precisa ser alimentado dia a dia. Precisa da paciência quando um belo dia, você acha graça em algo que ele falou ou fez. Precisa da paciência para sentir sua falta quando ele viaja ou simplesmente não aparece. O amor pega a gente de surpresa porque um belo dia você se surpreende sentindo um carinho e uma ternura sem fim por ele.
Mas o amor precisa ser construído. Ah o amor é um sentimento muito fino. O amor é o sentimento mais fino do mundo.   


               

sábado, 30 de novembro de 2019

ADORÁVEL TECLADO DO WHATSAPP




Quem já não topou com uma mensagem de whatsapp que traz uma palavra completamente sem sentido no meio das outras? E não adianta prestar atenção, o erro acontece. O teclado supõe que seja tal e tal palavra e a gente bobinha digita sem conferir. Nisso a mensagem já seguiu veloz. Ou a gente faz o acerto mais abaixo explicando ou “apaga para todos” quando a palavra é comprometedora. Na verdade todo mundo já sabe que é assim, então ninguém vai se ofender. Aliás, apagar é pior. Geralmente apagamos uma mensagem que seria para outro grupo porque de fato nem sempre tudo poder ser lido ou ouvido. Aí tem sempre alguém que digita em seguida: “Deus viu o que você digitou ...”  “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado”. Eu morro de rir.
O teclado é realmente hilário. Minha prima que sempre me chamava de Misinha, nunca chegava “Misinha” pra mim, mas “Modinha”. Tudo bem, eu nem ligava pra isso. Aí ela preferiu “Misa”, mas às vezes vinha o “Miss” que eu achei superchique!  Às vezes aparecia “Muda” em vez de “Misa” e não raro meu nome era “Misantropia”, kkkkkk
É costume em nosso encontro de café, todas as vezes que uma amiga viaja, trazer lembrancinhas do lugar visitado. Apelidamos essas lembrancinhas de “regalos”, palavra que vem do espanhol e pouco usada no português. Bem, em certo encontro, uma prima e outra amiga trouxeram regalos para nós outras. E mais tarde, já em casa, fui passar uma mensagem para o grupo manifestando minha alegria de ter estado presente em nosso encontro e agradeci pelos “cavalos”. Minha prima, muito espirituosa, imediatamente respondeu: eu não ganhei nenhum cavalo. Ainda tem?  
Ontem, depois de nosso encontro, uma delas fotografou as guloseimas da mesa e mais tarde enviou mensagem digitando: “vejam as fotos dos quilates”. Eu olhei, olhei e pensei, afinal quilates tem tudo a ver, pois as guloseimas estavam pra lá de 1.000 quilates. E mais abaixo ela consertou: “vejam as fotos dos quitutes”, já morrendo de rir.
Em certo grupo que alguém me contou havia uma moça chamada Dora. No final desistiram de tentar acertar e seu apelido passou a ser “Doravante” porque ninguém conseguia acertar o nome da moça. Só saía Doravante.
Já em outro grupo, alguém tinha que passar um recado para Dona Regininha. Pois Dona Regininha passou a ser “Dona Risadinha”. Achei carinhoso!
Enfim, para mim, Maria Luiza, Misa, Misinha, Modinha, Mudinha, Miss, Muda ou Misantropia, está tudo certo. A gente se comunica bem e tudo é motivo de riso. São os ossos do ofício da tecnologia, as sequelas da modernidade. Uma coisa é certa; do celular ninguém mais se separa!      



SÃO FRANCISCO DO SUL A NOVA YORK




Meu marido me conta sempre sobre sua meninice e juventude em São Francisco do Sul (SC). Eu adoro ouvir suas histórias sobre os navios que lá aportavam, vindos da Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos. Os soldados americanos davam caixinhas de fósforos para a meninada, tudo escrito em inglês. Menino pobre como era, qualquer coisa dessas era um tesouro. Hoje São Francisco do Sul é um balneário de luxo, nossa meta de viagem qualquer dia por aí. Mas o assunto que quero mesmo falar é sobre como eram as coisas no passado e são agora.
O dia mais feliz para ele era o domingo pela ida ao cinema. Os filmes eram a suprema felicidade não só para ele como para a pequena população da cidade. Lá ele assistiu a muitos filmes americanos de mocinhos e bandidos. Torcendo feito um louco para os mocinhos, vibrava quando os bandidos eram então massacrados. Não sobrava um. Tudo certo até que um dia, diante de um espelho de uma barbearia ele descobriu que fisicamente ele estava muito mais para bandido do que para mocinho. Os bandidos eram os mexicanos, morenos, tez escura e os mocinhos eram os americanos loiros de olhos azuis. E em todos os filmes os americanos venciam. Quando ele enfim se identificou com os mexicanos, não torcia mais para os mocinhos loirinhos. Estava crescendo, aprendendo a pensar.
Mas ainda não cheguei onde quero chegar. Às vezes sou duramente criticada por ser prolixa, mas o preâmbulo é importante para compreender o contexto. Bem, o assunto da semana para todos era sobre o filme assistido. Na escola, nas brincadeiras. Mesmo os adultos passavam vários dias discutindo sobre o filme que havia passado. Passavam também os filmes bons, famosos. Enfim, o cinema era o ponto alto. Todos sabiam os nomes dos atores, ninguém ficava assim, ah aquele ator, daquele filme, como é que é o nome mesmo? Por que? Porque era apenas um filme por semana que viria a ser o tema das conversas dos habitantes. Havia tempo de sobra.
E hoje? É claro que com a modernidade, primeiro com os antigos aparelhos de vídeos cassetes, depois com a internet que colocou o mundo à disposição de todos os habitantes do planeta, temos milhares de filmes a qualquer dia, a qualquer hora. Nem sempre são bons, há dias que varro a TV e não encontro nada que preste, nem na Netflix, nem nos Telecines e HBOs  da vida. E quando topamos com os bons filmes, ficamos discutindo um ou outro apenas durante alguns minutos de algum dia. Nosso estoque de informações está sempre lotado, não há como pensar muito tempo sobre um enredo que tenha nos emocionado. Lá vem outro para nos distrair.
Existe sempre aquela pergunta para qualquer pessoa famosa ou não: livro, preferido, filme preferido, uma frase. No item filme preferido, fico com “Um sonho de liberdade”, não sou só eu, já sei que muitas pessoas também. Tá aí um filme que me emocionou muito mesmo. A tenacidade do espírito do Andy (Tim Robbins), a amizade do Ellis (Morgan Freeman), a delicadeza do velho Brooks ao cuidar do passarinho na gaiola, sua impossibilidade de conviver com a liberdade por ter passado a vida na prisão, quantos simbólicos, quantas metáforas, quanta sensibilidade. Ouvi que o produtor ficou anos sem produzir nada por não conseguir se refazer do impacto da beleza daquele filme.
Há filmes e filmes. Os de antigamente eram bons, alguns ótimos, os épicos, os filmes de guerra, mas em matéria de ação, ficção, os atuais são imbatíveis, seja pelos efeitos especiais só agora possíveis, seja pela trama inteligente. Assisti novamente Bonequinha de luxo há pouco tempo. Foi meu tesouro dos anos 60, no entanto agora achei de uma ingenuidade ímpar. Mas para a época era nosso sonho. Tenho vívida em minha mente a última cena do filme em que a Audrey Hepburn tem seu gatinho no colo debaixo de uma chuva sendo abraçada e beijada pelo George Peppard.
Hoje viajei bastante, desde São Francisco do Sul até Nova York dos anos 60. Agora se alguém pensa que tenho esses nomes de atores todos na memória, ledo engano. Olhei tudo no Google. Só guardo o Tim Robbins e o imortal Morgan Freeman. 
Mais um filme dos últimos tempos, que nem todo mundo gostou, mas eu amei: Her. Que sensibilidade! E as cartas que o Theodore (Joaquim Phoenix) escrevia. Nossa! Fala a verdade! Chega né gente?                      

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

HISTÓRIA DE UMA AMEIXEIRA



A época foi final dos anos 70. Novinhas colegas bancárias, amigas do coração, a Sandra e eu éramos muito unidas. Pois bem, a Sandra me telefona um dia pedindo que eu fosse com ela à Santa Casa porque ela achava que havia quebrado o dedinho do pé. Lá fomos e nos ajeitamos em uma sala velha e pobre onde ficamos esperando um atendimento por muitas horas, o que não constituiu problema para nós que sempre tínhamos assuntos infindáveis.
Um pouco depois de termos chegado, apareceu um jovem casal da roça, da roça mesmo, vestidos pobremente. O rapaz, jovem, magro e alto trazia no colo um garotinho de uns seis anos que chorava cada vez que se mexia. A moça, tão humilde que não levantava os olhos para ninguém, também estava com um bebezinho ao colo que mamava avidamente em seu peito. A Sandra, sempre curiosa no bom sentido de ajudar, logo crivou o casal de perguntas. A moça, nunca conhecemos o som de sua voz. Mas o rapaz contou que o garoto havia caído de uma grande altura e eles estavam apreensivos porque ele gritava de dor. Talvez tivesse quebrado a perna.
Bom, e o tempo passando e ninguém aparecia para atender nenhum dos pacientes que esperavam. Horas e horas. Neste meio tempo apareceu por lá certa moça da sociedade, muito conhecida, muito falante e que logo soube da história de todos. Ficamos incomodados com o casal e o menino que estavam sem alimentação o dia todo, pois haviam saído muito cedo de casa. Eu, por exemplo, que nunca parei de pé sem um café quente à tarde, também já estava fraca e cansada. O único alimentado era o bebezinho que alheio a tudo, mamava e dormia. Naquela época, não havia na Santa Casa nem um barzinho mixuruca que fosse.
A moça da sociedade, muito despachada e admiravelmente bondosa invadiu a secretaria e usou o telefone para chamar sua casa e logo distribuiu ordens, tragam duas garrafas de café novo, aquela rosca, pães com manteiga, o bolo que fiz hoje, queijo e isso mais aquilo, ah também copos e xícaras. Não demorou nada e chegou um carrão com toda a matula encomendada pela moça. Se não me falha a memória ou talvez seja produto da minha criativa mente de escritora, trouxeram até uma toalha de mesa. O problema foi o casal aceitar comer. Recusavam, envergonhados, não precisa, diziam eles. Bolamos um plano, levamos tudo lá para uma salinha, dispusemos de tal forma que só eles ficassem lá com o lanche, talvez assim comessem. E deu certo. O casal comeu satisfeito, o menino com a perna quebrada não queria nada, só chorava.
Depois também nós comemos o bolo e tomamos café. Até que enfim o médico, assistentes e enfermeiros surgiram não sei de onde. O médico que já morreu faz tempo chegou com um vozeirão e perguntou para todos nós: Que que isso aqui? A Santa casa virou campo de piquenique agora? Mas ele falava brincando porque era amigo da tal moça e ela passou o maior sermão no médico e em todo mundo pela demora no atendimento. A sala de espera apinhada de gente. O garotinho foi eleito o primeiro a ser atendido e todos ficamos até tarde da noite por lá.
Ficamos sabendo pelo pai do menino que não tinham para onde ir, só a roça onde moravam, longe pra caramba, sem ônibus, sem charrete, sem nada. Eu cogitei de levar a família para a casa de minha mãe, poderiam dormir na sala, havia o sofá que poderia ser aberto e colchões, mas a Sandra achou que não dava certo pela timidez da moça. Teriam que ir para sua própria casa. Pensamos em chamar um taxi e rachar entre nós três a conta quando o carro da funerária surgiu trazendo um morto para ser arrumado e ficamos sabendo que voltaria para Delfim Moreira. O casal não morava na cidade, mas o motorista da funerária se dispôs a levá-los.
Depois de um longo tempo, lá veio o rapaz com o menino engessado da cintura para baixo. Todos entraram no carro da funerária e lá se foram. Não me lembro se a Sandra resolveu o dedinho do pé. O garoto hoje deve ser pai, provavelmente avô de um garotinho como ele e talvez nem se lembre do acontecido. Seus pais, sim. Tenho certeza de que não se esqueceram.
Se a moça da sociedade não tivesse aparecido, eu e a Sandra teríamos dividido um táxi, certamente, mas aquela moça despachada fez toda a diferença. Era um tempo em que as mulheres não eram ainda tão ousadas e esta moça era famosa por fazer balizas espetaculares estacionando o carrão num espaço considerado impossível até para experientes motoristas e em plena praça. Soube que ela está doente, nunca mais a vimos.
Registro aqui esta história real como uma homenagem a esta mulher por quem sempre tive grande admiração e peço a Deus que retribua a ela todo o bem que trazia em seu coração. Quando me lembro de suas atitudes ousadas, de como se antecipou para resolver o problema daquelas pessoas que não tinham boca para nada, de como generosamente os alimentou, eu me reporto a uma frase que li, mas não sei o autor:
 “Dizem que a ameixeira sofre porque floresce antes das outras árvores ainda nos rigores do inverno”. E eu ouso complementar: “Querida moça, parabéns por ter sido ameixeira”.              
        

JUGO SUAVE



Meu marido e eu não costumamos sair juntos. Isso realmente ficou nos primeiros tempos quando tudo é novidade, éramos mais novos e tal ... (coloquei esses pontinhos aí porque parei de digitar e fiquei tentando encontrar outra desculpa para justificar por que não saímos mais, rss). A verdade é que nunca fomos de sair, somos caseiros, curtimos ficar em casa. Saio com minhas amigas, mas pouco também. De resto saio para o supermercado, o banco. Fico muito em casa.
Bem, tudo isso só para dizer que de vez em quando nos encontramos na rua, eu e ele.  Isso mesmo. E quando eu o vejo, por um átimo de segundo sou tomada por uma sensação de estranhamento. É como se eu dissesse para mim: eu conheço este cara não sei de onde. Claro que é menos de um átimo de segundo. E ele também tem esta sensação. A verdade é que eu adoro encontrar com ele assim, de repente, acho uma delícia, é como se flertássemos ainda, o coração fica feliz. Eu sorrio, ele sorri, vou ao seu encontro. Que lindo!
E isso aconteceu justamente hoje. Eu saí toda faceira e quem vejo? Aquele bonitão do meu marido. Abri o maior sorriso e ele também. Parecia até que não nos víamos há tempos. E depois do almoço já quase pegando no sono, ele falou qualquer coisa sobre mim, bonitinha, que eu entendi que assim eu estava há 17 anos. Ele sorriu e disse: não, estou falando de você agora, hoje, bonitinha, cinturinha fina, sorrindo, vindo ao meu encontro,  rssss. Achei a maior graça! Um amor!
Já ouvi que casamento bom é loteria, é agulha no palheiro. Não sei, não sei. Um casamento tem suas dificuldades, impossível não ter! “No mundo tereis aflições” e tempestades, mesmo um bom casamento. Sei que até um casamento feliz tem seu ônus e seu bônus como qualquer situação na vida. Por exemplo, comparação, como diz a “coisinha” Conceta: minhas amigas já andaram combinando aí uma estada em Portugal de dois meses. Eu fiquei com água na boca e de olho comprido porque não vou ficar dois meses longe do meu marido, nem convém e nem quero. Nem ele. Viajo sim, máximo de 15 dias. Se eu fosse sozinha, iria ficar com elas. Pois não?
Em um casamento existe um jugo. Não há como negar. Não sou inteiramente livre. Compartilho uma vida com meu marido. Ele nunca exigiu nada de mim, nem eu dele. Tudo é implícito, de boa vontade, é companheirismo, cumplicidade, cuidado um com o outro, compreensão e, acima de tudo, uma boa dose de perdão diário. É um jugo suave. “Não temos amarras”. Temos laços. Sabemos que o elo que nos une é forte. Não precisa estar no papel, não precisa ser dito. É amor.
Não foi o que Jesus quis dizer com “meu jugo é suave”?       

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

ACADEMIA E HEIDEGGER




Vi uma postagem no Face outro dia que me fez rir muito: “Eu queria deixar meu corpo na Academia e ir buscar só quando estivesse pronto.” Esta sou eu. Não é a primeira nem a última vez que falo em Academia de ginástica, musculação e essas torturas aí. Alguém poderá argumentar: ora, então não vá, não faça, ou faça hidroginástica ou Pilates. Bem, é verdade que reclamar é uma coisa que sei fazer muito bem. Hidroginástica é uma delícia quando já estou na água morninha. Mas tirar o maiô molhado, vestir a roupa, lavar o maiô, por pra secar, isso mais aquilo. E no tempo de frio? Não. Definitivamente não. Pilates também é menos pior de ruim, mas caríssimo. Enfim, odeio, e adoro brincar com o assunto.
E aproveitando em “deixar o corpo na Academia e ir buscar quando estiver pronto”, quem sabe no futuro, teremos um avatar que vai fazer as coisas chatas que não gostamos. E não há como não me lembrar do filme Avatar. O protagonista entra numa espécie de coma profundo, ausenta-se do próprio corpo e passa a ocupar um novo invólucro ou um avatar criado, saudável e perfeito. Uma experiência maravilhosa para Jake Sully que, sendo paraplégico, consegue andar, correr, sentir o contato dos pés com a terra e realizar proezas incríveis como voar. Este avatar ocupado por Jake traz para ele a liberdade perdida, a autonomia sonhada. Na verdade, nosso avatar não precisaria de Academia, era só acordar do coma, perfeitinho. Poderíamos escolher o corpo, mas isso seria um problema porque todas as mulheres seriam Gisele Bündchen.
Já me conformei, porém não sou perfeccionista em se tratando de fazer ginástica. Se surge algo que dificulta minha ida, não vou e pronto. Ah, mas você é magrinha, não precisa. Quem falou? E a artrose? Artrite? Como é que fica? Magrinha ou não, sabemos que os exercícios fortalecem os ossos, músculos e articulações impedindo as limitações físicas mais tarde. Então batalhamos não só para o futuro, mas exatamente para agora, pois não nos esqueçamos de que vivemos o momento presente. Por outro lado, não quero chegar lá na frente e dizer, ah eu poderia ter me preparado. Garantias, não temos nadica de nada nesta vida, mas façamos o dever de casa.
Estou lá, né gente, remando como um autêntico Ben Hur nas galés, puxo os braços e empurro os pés, sou abduzida no exercício de Abdução na máquina e outros tantos que nem sei falar o nome. Os meninos e as meninas instrutores são uns amores, a secretária, nem tenho palavras. Dou o maior trabalho, nunca decoro nome de nada, erro na postura, mas estou lá, isto é, quando vou.
Mas por que Heidegger? Por que Academia e Heidegger? Bem, hoje eu presenciei dois meninos novatos que estavam confabulando baixinho algo sobre os exercícios, aí captei um deles perguntando ao outro qual era o exercício de “encolimento”. E eu, aquela que odeia Academia, me dirigi a eles explicando com detalhes o tal exercício. Eu própria fiquei estupefata com meu atrevimento. Não é que passados seis meses de Academia, três de presença concreta, eu de repente me flagrei familiarizada com aquele ambiente? O sábio e filósofo Heidegger que tinha razão: “O homem é um ser de possibilidades.”  
 



TRAÇOS E LAÇOS DE TERNURA



            O quão longe no tempo pode cada pessoa guardar suas mais ricas e remotas lembranças? Bem, eu me lembro de quando morava na “casa de cima”, como a chamávamos. Minha mãe se referia ao lugar onde morou em Cristina como “a rua de baixo” e eu adoro essas expressões familiares tão originais, tão queridas! Mas não é sobre isso que quero falar. Então, já estávamos na cama, nós os primeiros filhos, os mais velhos, quando minha mãe entrou em nosso quarto para mostrar à tia Odete que nos visitava, como estávamos bonzinhos e bonitinhos em nossas caminhas. Foi quando apontou para mim e disse: ela dorme igualzinho ao pai, com o braço debaixo do travesseiro, já o irmão dorme como o tio, e por aí vai ou por aí ia. É como diziam e como dizemos, o fulano puxou mais ao pai, ou puxou ao avô.
            Todas as vezes em que fico recostada em minha cama com meus livros de oração eu me lembro de minha avó com a “Liturgia das horas” ou algum missal, em seu colo. Ela descansava a perna que tinha uma ferida profunda e de quando em quando parava a leitura para coçar em volta da ferida. Não preciso de uma foto para guardar essa lembrança tão preciosa. Ficará impressa em minha mente e em meu coração para sempre. Mas então eu penso: lá estou eu aqui com meus livros de oração exatamente como minha avó. Eles se vão e nós continuamos em seus postos.
E também, fisicamente, vamos ficando como nossos pais. Ah o fulano era tão bonitinho, tão magrinho, agora está o pai escrito, sem cabelo, bochechudo. Ele quando jovem não tinha nada do pai, agora! Nossa! Incrível! Nossos traços vão sendo configurados e reconfigurados até que ficamos como eles. E nós, mulheres, vamos “salvando” em nós os traços de nossas mães.
Um dia, eu voltava do mercado, carregando sacolas, distraída da vida quando parei em frente a uma clínica de vidros espelhados. Mulher vaidosa que sou, não resisti ao impulso de me ver refletida nos vidros. O fato é que me achei incrivelmente parecida com minha mãe, parecia vê-la surgindo das brumas do tempo. Já ouvi dizer que se as mulheres quiserem saber como serão no entardecer da vida, basta olhar para suas mães. Terão um retrato fiel de sua imagem no futuro. Mas não é só o físico, na verdade é muito mais. Parece vir de dentro, são os modos, os cacoetes, o jeito de sorrir ou falar. São muitos os detalhes, antes escondidos, como se às filhas estivesse destinada a missão de ocupar o lugar do corpo e alma de suas mães.
E não paramos por aí. Vamos empregando as mesmas expressões que usavam. Quando minha irmã me conta algo que acho descabido, eu digo, “essa é de gloriosa” como minha mãe dizia sempre. Ou quando duvido que algo seja feito ou cumprido, por exemplo, de hoje em diante, vou ser assídua na ginástica. Aí eu digo pra mim: “vai que frange”. Era assim que minha mãe falava, como quem queria dizer: “vai nada”. 
É com emoção que constato que de tudo que já escrevi na vida, de todos os livros, crônicas, contos e poemas, eu posso seguramente afirmar que 80% é sobre minha mãe.  Tá certo. Mãe é mãe. E como dizia Adélia Prado: “Quero minha mãe”.           

           

ARMADURAS


ARMADURAS
Misa Ferreira

            Fuçando aqui na minha papelada achei uma frase do Oscar Wilde que gostei muito quando li. Acontece que é tanta coisa que a gente lê, tanto livro, tanta informação que a gente se esquece, sem contar que com a idade vamos nos esquecendo de nomes e de tudo com mais rapidez e facilidade. Aí a gente começa a dizer assim: ah, aquele ator, ah meu Deus, como é que é mesmo o nome dele? Ah aquele que fez aquele filme com aquela atriz, ah meu Deus, aquele filme, como que é mesmo o nome?
            Bem, vamos à frase do Oscar Wilde: “quando somos felizes, somos sempre bons, mas quando somos bons, nem sempre somos felizes.” Legal né? Verdadeiro. É fácil ser bom quando se é feliz. A felicidade, mesmo frágil, passageira, facilita nossa bondade. Mas quando a felicidade faz as malas e parte, quando o céu escurece e as nuvens despejam aquele aguaceiro, ficamos pessimistas, tristes, desanimados e ficamos tão envolvidos com nossa dor ou nossa tristeza que nos esquecemos de ser bons. Vamos dizer de outra forma, acariciamos nossa dor e nem percebemos a dor dos outros.
            E quando passamos por algo triste, por alguma perda ou mesmo quando alguém pisa em nossa honra, vamos fechando as portas. E vamos nos encerrando em nossas armaduras porque elas aparentemente nos protegem dos ferimentos. E nos armamos até os dentes para que tudo fique devidamente guardado. Não queremos ser feridos, é lógico, quem quereria? Mas gente, a armadura é uma armadilha porque se não enfrentamos o dragão olhando nos olhos, ele nos destrói, a armadura é um ledo engano. Olhar o dragão nos olhos eu até olho, já deixar que ele me olhe nos meus, isso não. Se ele fizer isso, vai perceber minha fraqueza. E isso eu não mostro. Não entrego o ouro pro bandido. Sorrio enquanto digito.
            Recebo uns artigos em meu email e outro dia li algo muito pertinente à armadura: “Nós nos sentimos como impostores porque, de fato, somos. Sabemos que somos falhos e sabemos que é perigoso mostrar às pessoas tudo sobre nós, assim, nós escondemos algumas partes de nós.”(Dan Pedersen). Com a armadura temos a ilusão de nos protegermos.
            Bom, eu sou transparente, mas nem tanto, há partes obscuras de mim que não mostro, nem sei se as conheço bem. Por outro lado, tenho tentado melhorar, tenho tentado me desarmar, até já tiro a armadura para dormir. Quando estou feliz, minhas asas se aprontam para voar, mas quando chegam as nuvens pesadas, aí o mundo acaba, desaba, é a hora de deixar a armadura no modo ligado, é a hora perigosa, a hora em que estamos fragilizados.
Mas, bobagem, bom mesmo é dar a cara à tapa, é andar de cara lavada, de ser uma só na tristeza e na alegria e tentar ligar a bondade no modo ativo.
            Recebi de uma amiga um livro muito bom que recomendo aqui: O Cavaleiro Preso na Armadura de Robert Fisher. Este livro me inspirou a escrever sobre nossas armaduras e suas armadilhas. 
P.S. Quando nascemos recebemos entre outros bens, a ousadia e a coragem, mas aí vieram os dragões e as tiraram de nós, deixando o medo. Cumpre resgatar o que é nosso. Enfrente o dragão. Sem armadura.
                        

CONSELHOS



            Tive a oportunidade de ler um texto muito bonito de uma escritora coreana em que em determinado momento ela conta que quando foi para a universidade nos Estados Unidos, seus pais a acompanharam como bons pais que eram. Lá eles foram com ela até o alojamento dos estudantes onde ela iria morar com mais duas colegas. As duas colegas não foram acolhedoras, o que a moça logo percebeu e também seus pais. Quando eles foram se despedir da filha, viram como ela estava destroçada. Era uma nova fase de sua vida e já começava com duas colegas de quarto que não eram nada amáveis. Então sua mãe foi firme e lhe deu conselho: “você sabe que pode transformar qualquer coisa em ouro” (“you can transform anything into gold”). A filha nunca se esqueceu, enfrentou a situação da melhor maneira que pôde e outras situações que viriam no futuro. 
            Bem, isso não é inédito, a gente sabe que pode fazer das tripas o coração para enfrentar qualquer coisa. Só que a frase me pegou de jeito, talvez porque o longo texto já chegava num ponto em que eu emocionada, recebi aquelas palavras como um presente. A mãe coreana deu um conselho à filha que ela nunca mais se esqueceu. Fiquei pensando nos conselhos que a gente já recebeu na vida.
Lembrei-me da indecisão de minha irmã quando terminou o Curso Normal, percebendo que não queria ser professora, e não sabendo nada sobre o que poderia ser. Afinal, fazer o famoso Curso Normal e seguir a carreira de professora era o usual para as moças. Uma vizinha muito bondosa deu à minha irmã não propriamente um conselho, mas uma sugestão de trabalhar num banco. E não é que logo depois o Banco do Brasil abriu pela primeira vez em sua história um concurso em que mulheres puderam participar? Minha irmã fez e foi aprovada. Ser bancária não era exatamente uma vocação, mas melhor que o magistério que não lhe agradava. E depois eu segui seus passos. Ainda não sabia que minha vocação era escrever, mas isto é outra estória. O conselho de nossa vizinha foi bom. Na época era um bom emprego.
Bons conselhos direcionam, iluminam, transformam e salvam vidas. Fiquei pensando em algum conselho de minha mãe. A princípio só me lembrei de coisas práticas como: “você deve sair da mesa sentindo que até poderia comer mais, mas não deve”.
Mas minha mãe fez uma coisa preciosa por mim. Até então eu era já adulta, ainda em sua casa e não obstante toda a educação religiosa e demonstrações de seu grande amor por Deus, eu não conhecia este amor. Ela me deu um livro que já não me lembro o título. Foi a primeira vez que me senti tocada por Deus como Pai, as lágrimas brotaram de meus olhos e eu tive que fechar a porta do quarto para que ninguém visse, mas Deus já havia entrado e fez morada em meu coração. Obviamente que no correr da vida, eu me afastei, me aproximei, me afastei de novo, sempre mundana e sempre sedenta. Aquela atitude de minha mãe e aquele livro também não foram exatamente um conselho, foram muito mais do que isso, foi uma semente plantada, ainda que o solo fosse tão ruim.
Benditos conselhos de mães tão sábias!  
   



sexta-feira, 23 de agosto de 2019

CONFISSÕES DE UMA OVELHA


Nasci uma ovelhinha muito especial. Todas as ovelhas são especiais para o Bom Pastor. É que esta é a minha história. Então, muito espertinha, logo que finquei os pés no chão, admirei os verdes pastos e pensei: que mundo mais lindo! É meu. E era mesmo, Deus nos deu infinitas graças e belezas neste mundo: a terra para morar, a lua para admirar, as flores para nos alegrar, a água para regar, os frutos da terra para nos alimentar. Mas não nos deu este mundo para sermos seduzidos e consumidos por ele.
Logo descobri ovelhas que pastavam do outro lado da cerca. Gente, a grama parecia muito mais verde do que a nossa. Sei que nosso Pastor era bom e nossos prados eram verdejantes, porém não posso precisar se era o brilho daquela grama vizinha que a fazia tão atraente e convidativa. Não pensei duas vezes, forcei a cerca até que me vi do outro lado. Foi quando o Bom Pastor me puxou, me aplicou uns corretivos com seu cajado. Doeu. Eu não desisti, tornei a passar para o outro lado. Outra vez apanhei. Finalmente aprendi que a grama do vizinho só parece mais verde. Não é. E comi tantas ervas daninhas, algumas até venenosas. Poderia ter morrido. O Bom Pastor me salvou, me curou e me bateu com seu cajado. Bendito seja para sempre seu cajado!
E eu era tão travessa, tão forte e ao mesmo tempo tão frágil que acontecia de ficar virada com minhas pernas pro ar sem conseguir me por de pé. A respiração ficava difícil, quase morria sem ar. Ele contava as ovelhas, via que faltava uma, advinha quem? E vinha, me desvirava e o ar chegava límpido em meus pulmões. Perdi a conta de quantas vezes fiquei virada e o Bom Pastor voltava até me encontrar e me desvirar. 
E quando eu fiquei infestada de enxames de insetos, de moscas varejeiras, moscas-do- berne? Que tortura! Cheguei a ver outras ovelhas desesperadas baterem as cabeças contra as árvores para se libertarem do ataque! Por milagre, sempre fomos salvas pelo Bom Pastor que nos banhava em óleo de linhaça, sulfa e alcatrão, aplicando de forma suave o tal preparado principalmente em nossos focinhos, nos inundando de alívio. Como nós, ovelhas, somos indefesas e felizes de nós que nos deixamos conduzir pelo Bom Pastor. As ovelhas do aprisco vizinho foram quase todas dizimadas porque seu pastor era indolente e não cuidava de suas ovelhas. 
De outra vez, em minhas andanças pelas colinas deste mundo, caí de boa altura e fiquei presa num pedacinho de rocha num desfiladeiro sem fim. Simplesmente eu não podia dar um passo que cairia num vale tenebroso. Seria o fim. Senti medo. Intimamente chamei pelo Bom Pastor. Demorou um pouco, tive que sofrer suas demoras, e até que enfim Ele veio. Desceu seu cajado e encaixou direitinho minha cabeça no gancho torto que se forma na ponta. Ele me tirou do vale tenebroso e me levou para o alto. Ele nunca desistiu de mim. Bendito seja para sempre meu Bom Pastor.
Envelheci. Amadureci. Compreendi com meu limitado conhecimento humano que em nossas vidas seremos sempre sujeitos aos perigos, aos sofrimentos, à dor, às perdas, só que o Bom Pastor segue sempre junto de nós, está sempre presente nos verões infestados de moscas que nos atormentam e nos outonos quando descansamos nas sombras ao lado de fontes de águas puras. Ainda contemplo o mundo de prados e campinas, ainda sou fascinada por ele, mas agora mantenho meus olhos fixos no meu Pastor. Ele é o meu Senhor. Amém para sempre.

Fiz este relato me baseando no livro “Nada me faltará”, presenteado por uma querida amiga. O autor deste livro, Phillip Keller, criado na África Oriental, foi durante oito anos um criador de ovelhas. Portanto, ele escreveu este livro como alguém que conheceu pessoalmente todas as fases da vida de uma ovelha. Mais tarde, como pastor leigo de uma igreja comunitária, ele ensinou as verdades reveladas pelo salmo 23 ao seu “rebanho” de pessoas, com real conhecimento de causa, estando apto a discorrer sobre as ressonâncias existentes entre a vida de ovelhas conduzidas por um bom pastor e a vida cotidiana dos homens com Deus.
As ovelhas são os animais mais indefesos que existem. Exigem atenções especiais e cuidados meticulosos quase como os bebês. Um Bom Pastor vive para suas ovelhas. O autor do livro comprovou ao viver vinte e quatro horas por dia cuidando de seu rebanho. Não é por acaso que Jesus nos chamava de pequenino rebanho. O bom Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas.       

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O MORADOR DE RUA


            Há algum tempo um morador de rua tem sido nosso vizinho. Aproveitou um nicho entre um prédio e uma casa e ali fica dia e noite. Algumas vezes percebo que ele não está, mas suas roupas em frangalhos e restos de comida em quentinhas frias indicam que ali é onde mora. Às vezes passo durante o dia e o vejo dormindo profundamente como se estivesse em cama de rei. Certa vez passei e ele estava recostado na parede e de olho no movimento. Me deu um bom dia e eu respondi. Perguntei se não tinha família, se não tinha ninguém. Ele nada disse, apontou para o alto, olhando demoradamente para o céu. Captei a mensagem. Só Deus. E logo em seguida, estendeu a mão para mim. Entendi, tirei o pouco que restava em minha carteira e dei para ele que sorriu amigavelmente.
Vim pensativa para casa pensando em sua história que não conheço. Sei que sua vida não foi fácil, que já nasceu em desvantagem, certamente criado em um ambiente pobre com nenhum ou pouquíssimo acesso às mordomias ou simplesmente o conforto de uma ducha de água quente bem gostosa ou, sei lá, qualquer coisa dessas que temos e nem percebemos como são boas. Este pobre homem não tem culpa de ser um morador de rua. Também sei que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus, mas acredito que nem todo rico seja mau e a misericórdia de Deus é grande. Esta questão de nascer uma criança já condenada a sofrer tanto pela miséria, pelos maus tratos, pelo preconceito e já outra nascer filho de príncipes sempre me faz pensar sobre a inexatidão da vida.
Bem, evidentemente que o caso do morador de rua passou a fazer parte de nossas discussões filosóficas em casa. Como entrou julho com aquele frio atroz de matar que me fez pegar uma gripe do cão, pensei no homem lá fora. Procurei e achei uma blusa quentinha já usada de meu marido. E fui saindo de casa quando ele me flagrou: peraí, esta blusa é minha. Não é mais, respondi, agora é do senhor que está lá fora morrendo de frio. O quê? Redarguiu ele, vai lá e vê. Todo mundo daqui de perto levou blusa e cobertor pra ele. Ali tem agasalhos e cobertores para vários invernos. Eu ri porque sei que ele é espirituoso e brinca muito. Levei a blusa. O homem nem viu. Dormia a sono solto em meio ao burburinho da tarde. Pude perceber que meu marido tinha razão, o homem dorme por cima de pilhas de agasalhos. E já o vi vestindo uma jaqueta acolchoada em ótimo estado. Não sei se é a solução adequada, só sei que as pessoas têm pena. Agora o homem achou como fazer uma tenda com um lençol cor de rosa que ele prendeu pelas pontas nas grades ao lado.
            Bem, no domingo, já ao final da missa das quatro, enquanto a comentarista dava os avisos, eis que o protagonista desta crônica irrompe pelo corredor central da igreja, com um saco preto nas costas e carregando sua magreza extrema, aproximou-se da escada que conduz ao altar. Expectativa geral. Em seguida levantou o braço exibindo um dinheiro nas mãos. Ficou um tempo parado com a nota tremulando ao alto. O padre, a princípio preocupado, acabou abrindo um sorriso acolhedor. Então o homem subiu, depositou seu “dízimo” no último degrau e saindo rindo, triunfante.
            Há alguns dias passei em frente à tenda do homem. Ele estava acordado e fumava lá dentro. Talvez por isso tenha deixado uma fresta para respirar. É esperto, percebeu meus olhos e fixou seu olhar em mim. Ele é um homem, um ser humano, um filho de Deus como qualquer um de nós, com todos os direitos que não tem.  
Hoje passei e vi que o homem não está mais lá. Foi retirado. Meu marido disse que o pessoal da companhia de água precisou fazer a medição e onde estava o registro? Justamente dentro da tenda do sujeito. As pessoas estavam lavando o local para se livrarem do mau cheiro. Esta é a vida real. Foi-se embora nosso vizinho, sabe-se lá para onde.  Foi-se embora com sua história de vida que não conheço nem conhecerei. Nem todo morador de rua nasceu em uma família pobre. Já conheci gente que levava uma vida normal, que acabou sem emprego, sem família e foi para as ruas. Um alcóolatra ou uma pessoa destroçada por um trauma pode acabar nas ruas.
Desejo que nosso ex-vizinho seja feliz. Parodiando Rabindranath Tagore, cruzo com muitas pessoas todos os dias e sei que cada uma delas é meu irmão. O morador de rua também. Sequer eu soube seu nome.