quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

QUERIDO DIÁRIO


            Assim como muitas pessoas já tentei manter um diário. Ainda tento. O último, para meu espanto, teve início em 14/11/2017. Abandonei depois de quinze dias, como sempre. Meu primeiro diário sobreviveu por quatro anos, dos meus doze aos dezesseis. Depois rasguei tudo, penso que num momento de raiva, de frustração ou porque eu tinha a consciência nítida de que não era um diário sincero, honesto, como se eu quisesse impressionar alguém, no caso eu mesma, coisa de louco. E rasgar esses cadernos foi uma verdadeira tragédia, pois de qualquer maneira todas aquelas anotações saíam de mim, assim deveriam conter alguma verdade. Até de mentiras ou fingimentos a gente extrai um fragmento de verdade. O fato é que restou dos cadernos apenas um desejo imenso de resgatar o que não pôde mais ser resgatado.
            Enfim, voltemos ao último diário de 2017. Depois de uma semana ou pouco mais, ao ler o que tinha escrito, achei bobinho, como se o diário tivesse a obrigação de ser solene e de ter valor literário. Tal como em outros diários, captei laivos narcisistas nos meus relatos confessionais. Concluí que um diário sempre vai martirizar quem escreve com esta sensação de fingimento, de não ser sincero consigo mesmo. No entanto, perseguida pelo desejo de manter um diário, torno a ele e recomeço sempre. Ao ler o primeiro parágrafo do que escrevi em 2017, achei graça, sorri aqui enquanto digito porque me deparei com um verdadeiro e sincero propósito de escrever simplesmente pelo pungente desejo de escrever. Assim, transcrevo para cá o primeiro parágrafo e endosso o que escrevi. Fica valendo esta promessa para meu próximo diário:
             “Como me propus a escrever diariamente qualquer impressão do dia vivido, acabei de configurar a página, ainda nem salvei, mas vamos falar sobre alguma coisa. Antes de tudo, prometo solenemente não ficar preocupada com alguém ou outrem que possa ler. Prometo solenemente escrever pelo puro desejo de escrever”. Não me lembrava ter escrito esta promessa. Fiquei surpresa e achei o propósito super honesto! Valeu!
            O problema do diário é que se alguém realmente o tiver em mãos vai complicar porque é evidente que o diário pode envolver outras pessoas além de mim. Mas eu me pergunto: não poderia ser um diário apenas de pensamentos e sentimentos? Posso simplesmente escrever o que me der na telha, porém não citar nomes. Humm, não sei, vou acabar me policiando e não será mais sincero. Na verdade o problema do diário é outro, está na imagem que desejo preservar até de mim. Uma coisa é escrever uma crônica do cotidiano e outra escrever só para mim. Um diário é um confronto com a gente mesmo, é um livro de confissões. Acho que superei Freud ou pelo menos dei a ele um prato cheio que sou.
            No fim de tudo, uma coisa é certa: é bobagem não querer se expor. Quem escreve se expõe, invariavelmente. Querendo ou não, quem escreve abre a alma e a deixa registrada em romances, crônicas, contos, poemas, blogs, ainda que pretenda delegar suas impressões a um pobre e indefeso narrador. Já dizia Saramago, “o leitor não lê o romance, lê o romancista... o Autor é todo o livro.”
Posto isto, declaro que não prometo solenemente coisíssima nenhuma. A gente vai vivendo e vai escrevendo sem se impor regras rígidas. Vou indo de crônicas e um poema aqui e ali, o que gosto de fazer. O que eu sei é que sou a memória que tenho, eu sou a única história que posso contar, se não para os outros, para mim mesma, ainda que doa, meu querido Diário!       
              

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

MINHA MÃE E O MAR



            Em algum dos anos 70 minha irmã que já trabalhava alugou uma casa para passarmos o carnaval em Caraguatatuba. E lá fomos em uma Kombi e mais um carro. Meu pai não foi. Adorou ficar sozinho em casa curtindo o Jornal do Brasil e o silêncio de que tanto gostava. Minha mãe, minha tia, meus irmãos e algumas colegas de minha irmã lotaram os carros, cada um com um colchonete. Foi uma festa! Éramos jovens, o sol despontou maravilhoso todos os dias, voltávamos para a casa bronzeadas, famintas, e com bom humor enfrentávamos a fila interminável para o único banheiro existente. Algumas de nós lavávamos o cabelo na torneira do tanque espirrando água umas nas outras e tudo era motivo de riso e felicidade.
            Bem, quero mesmo é falar de minha mãe, uma pessoa sempre presente em meus pensamentos, em minhas lembranças e tudo que escrevo. Ela era uma mulher muito séria, muito religiosa, sem qualquer traço de vaidade. Nunca vi minha mãe usar um batom, nem uma base de esmalte, nunca a vi se admirar no espelho, a não ser para conferir se estava vendendo farinha. Pra quem não conhece esta expressão antiga é quando a anágua ou combinação deixavam um pedacinho de renda para baixo do vestido. Nunca a vi rir abertamente, gargalhar. Não, minha mãe não. Quando achava muita graça e o riso era incontrolável, ela colocava as mãos sobre a boca. Que coisa né? E era uma mulher fantástica!
            Não sei quantas almas subiram do purgatório para o céu naquele passeio à praia, mas o fato é que minha mãe se permitiu vestir um maiô de minha irmã e se lançou ao mar. O que quero dizer é que ela fez uma coisa inédita e ousada. A princípio entrou timidamente sentindo a água bater em seu corpo e logo já pulava as ondas que eram suaves. Nunca vi minha mãe tão feliz em toda minha vida. Como ela deixava o riso sair, como vibrava. E ela ficava mais bonita do que já era.  Seu corpo era escultural! Pela idade e já com seis filhos é lógico que uma barriguinha se mostrava, mas coisinha de nada. Pernas bonitas. E a tez? ah a tez! Aquela tez linda, aquela testa de Ingrid Bergman, aquele nariz!
            Fizemos outros passeios à praia, mas ela já não se permitiu mais sentir aquela alegria. Voltou a se conter, depois foi se fechando cada vez mais, cada vez mais até que uma tristeza irremediável cobriu seu semblante.
Eu fico sempre imaginando que depois de nossa morte teremos que comparecer sim diante de Deus, mas não é aquele Deus carrasco, acusador, não. Deus não é assim. Mas compareceremos. E acho que ele vai conversar com a gente. Deus vai fazer duas perguntas: você atropelou alguém? Você se deixou atropelar por alguém? Ou, de outra forma: você foi feliz? E você fez o que pôde para fazer felizes outras pessoas? São perguntas que levam um tempo pra a gente responder porque a felicidade vem sempre muito mascarada. Mas Deus que é o maior psicanalista de todos tempos e todos os mundos e que sabe de tudo e se lembra de tudo vai nos fazer lembrar. Então minha mãe deve ter ficado em silêncio. E Deus teria dito: e o mar em Caraguá, tava bom? Aí os olhos dela devem ter brilhado e ela deve ter aberto um sorriso lindo e certamente disse: ah eu fui tão feliz! E Deus também deve ter sorrido feliz. Aí Ele encaminhou minha mãe para uma estação de águas em mares nunca dantes navegados, os maravilhosos mares celestiais onde ela está sempre sorrindo e onde um dia eu vou encontrá-la. A morte é a cura final, disse Guimarães Rosa. 
Mas enquanto isso, enquanto cá vivemos é tempo de nos lançarmos ao mar. Que assim seja feito.
      
           

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

COM TODO MEU CORAÇÃO


Acompanho minha tia à missa aos domingos e como ela anda com muita dificuldade, geralmente esperamos a igreja ficar vazia pra irmos embora. Aconteceu que um casal muito jovem com dois filhinhos vieram para frente do primeiro banco onde estávamos. A mãe, uma graça de menina linda dava a mão para a filhinha e o pai vinha logo atrás empurrando um carrinho com um bebê. De repente o moço tirou o celular e enquadrou a família, fazendo um selfie que captou todos sorrindo felizes tendo como fundo o altar e as paredes com imagens coloridas da igreja. Para minha surpresa o moço mostrou a foto para o bebezinho e ele sorriu exultante como se estivesse entendendo tudo o que significava e quem pode dizer que não? Percebi que a garotinha sentiu ciúmes e se enrodilhava nas pernas do pai dando uma clara manifestação do complexo de eletra. Os pais trocaram um olhar de cumplicidade e o moço, astuto, percebendo a carência da menina, abaixou-se, mostrou a foto para ela também. A menina vibrou com a atenção recebida. O bebezinho ficou aos cuidados da mãe e a menina foi embora feliz nos braços do pai. Naqueles pequenos momentos fiquei pensando se daqui a vinte anos o casal estará sorrindo. Estarão juntos até lá? Ou não serão capazes de resistir aos revezes da vida? Porque os revezes às vezes vêm inesperadamente com a intensidade de um tsunami. Aquela fase do início, em que tudo são flores passa, os filhos crescem, mostram seus temperamentos, sobrevêm doenças ou dificuldades financeiras, conversas são necessárias, desentendimentos acontecem, discussões são inevitáveis, palavras duras são trocadas, o casal se estranha, dormem agora de costas um para o outro e as mágoas são guardadas até que então chega o tempo em que o amor enfraquece e a chama se apaga. Não, a vida de casados não é fácil, mas é possível, é louvável tentar, é preciso amar. São felizes agora e não se dão conta de que a felicidade é frágil, fugidia, trapaceira. Mas ainda assim vale a pena tentar. Nunca saberei se continuarão felizes para sempre. Talvez sim porque são tão jovens e já se alegram com dois filhos, coisa impensável para muitos casais nesses tempos de modernidade, de vida difícil em que todos trabalham. Gostaria de dizer a eles que devem fazer de tudo para manter e perdurar esses momentos alegres, que se acolham sempre e que se perdoem diariamente, que não sejam tão duros nos momentos em que o que mais se precisa é de um abraço. Entre esperançosa e amedrontada com tantas elucubrações derrotistas, logo eu que sou tão feliz em um amor tardio, odiei sentir-me acossada por pensamentos lúgubres. Afugentei as bruxas e disse para minha tia: que lindo casal jovem! A moça ouviu, olhou para trás e me deu de presente um sorriso maravilhoso como a me tranquilizar, a dizer que eu estava enganada. Eu sorri plena de esperança.     
Fui apenas uma testemunha ao acaso de sua felicidade de hoje. Espero que sejam felizes para sempre. Com todo o meu coração.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

E SE BRUMADINHO TIVESSE SIDO POUPADA



“Só males são reais. Só dor existe ...” (Antero de Quental)

            E se naquela noite que antecedeu a tragédia, cada funcionário da empresa, cada morador das imediações tivesse tido um sonho, desses sonhos proféticos que às vezes as pessoas têm? Aí o funcionário já tomando seu café com a família, interrompeu e telefonou para um colega: cara, sonhei que a barragem arrebentou e veio em cima de nós. E o outro: jura? Pois eu também. E assim em poucos minutos quase todos se falariam e decidiriam que não iriam trabalhar enquanto a barragem oferecesse perigo e também não trabalhariam mais se seu escritório estivesse na passagem da água. Uma dúvida pairou no ar, aquilo parecia loucura. Quem os ouviria? Os grandões lá de cima? Mas se todos haviam sonhado! Não iriam trabalhar. Pronto. Poderiam ser demitidos. Sabe o que é ficar desempregado? Só os que são é que sabem.
Ou quem sabe se depois do massacre de Mariana, houvesse alguém, algum chefe, diretor ou presidente da Vale que não vale um centavo que lucra, tivesse culhões e sob risco de ser morto por suas decisões, dissesse: chega! Que parem todas as barragens! Que ninguém mais morra por causa do descaso da Vale. Vamos rever tudo.
Se os deputados tivessem aprovado decretos, se os fiscais e engenheiros tivessem feito corretamente seu trabalho, às vezes até jurados de morte para assinarem pareceres enganosos. Se tudo isso pudesse ter acontecido, tantas vidas teriam se salvado.      
 Porque a vida é tão preciosa! Mais preciosa que qualquer coisa, que qualquer dinheiro do mundo, que qualquer ouro de Esmirna. Para um condenado à morte, a vida é tudo. Bastaria a vida, o resto seria reconstruído com garra, com luta. Em qualquer canto, qualquer pasto, com qualquer burrinho, plantariam ou trabalhariam de sol a sol. Mas voltariam pra casa todos os dias para abraçar seus filhos, para vê-los crescer. Para sair de mãos dadas com a mulher ou marido, tomar um sorvete na praça, irem ao cinema todos juntos, enfim, para viver essas pequenas coisas que são tão grandiosas. Morreriam sim, um dia, quando a vida já tivesse sido cumprida, morreriam sim porque todos morrem um dia, mas não devia ser tão estupidamente, com morte tão trágica, tão dolorosa. Morreriam sim, um dia, mas não porque uma minoria podre de rica e cheia de poder fechou os olhos para o perigo que seus funcionários corriam.
Não há dinheiro que pague uma vida. Não há indenização que aplaque a dor da moça que se salvou, mas teve seu menino de dois anos arrancado de seus braços pela lama cheia de fúria. As pessoas lá do alto do poder sabem o preço das ações milionárias, do lucro, sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada.
Sou escritora, sou poeta, carrego a dor dentro do peito e muitos “se” que ficaram enterrados no fundo da lama. Mas o “se” é apenas um sonho. Nesse momento de tanta tristeza e desesperança, podemos, ou refletir sobre o desespero dos oprimidos, ou concluir, como Antero de Quental que, “só dor existe”, ou ainda e apenas as duas coisas, o que dá no mesmo.