sexta-feira, 22 de março de 2019

PAPAI SABE TUDO



            Ninguém pode negar a influência norte-americana na cultura brasileira. Por mais que queiramos nos desvincular dessa influência, gostamos dos filmes, seriados, assistimos ao Oscar, incorporamos o milk shake, os hamburgeres, a coca cola  e tudo o mais. Meu pai que gostava de inglês, estudava por conta própria e escreveu uma carta para a embaixada americana no Rio pedindo livros que pudessem auxiliá-lo. Chegou um farto material que também me ajudou muito com o inglês. Até hoje conservo um livro grosso de literatura americana com fotos coloridas belíssimas, de onde tirei a ideia de escrever o conto “Vida em Verna” baseado no conto “Of missing persons” de Jack Finney.  
E aí chegou nossa primeira TV em Pedralva e lógico que Bonanza e Papai sabe tudo passaram a fazer parte de nossa vida familiar. Papai sabe tudo era ma- ra-vi-lho-so! Mostrava uma família pra lá de perfeita. Gostávamos de tudo, da casa, da cozinha americana onde a família discutia os assuntos do dia, da sabedoria do pai, da mãe sempre feliz, dos filhos que traziam para os pais problemas irrisórios e pueris. Foi a primeira vez que vi um casal dormir em camas separadas, há que se considerar que o seriado vinha da década de 50 e antes de dormir conversavam como bons amigos que eram, e depois do boa noite, cada um apagava seu abajur. Era lindo! O que mais me encantava eram os abraços diários trocados sem que fosse aniversário ou Natal. Como não podia ser de outra forma passamos a idealizar um pai que fosse como aquele pai perfeito do filme. Uma prima me confidenciou que tudo que queria era que seu pai fosse o pai do Papai sabe tudo. Até minha mãe assistia às cenas familiares dos americanos, lançando ternos olhares para aquele marido gentil.
            Passou-se muito tempo para que compreendêssemos que aquele seriado água com açúcar não era a vida real de uma família, nem a nossa, nem de nenhuma família americana. Mas até que a ficha caísse achávamos que poderíamos ter uma casa com gramado e cerquinhas brancas, que nosso pai poderia ter a sabedoria do pacato vendedor de seguros Jim Anderson e que nossa mãe fosse doce como a Mrs. Margaret.
            Mas ainda nos dias de hoje percebo que volta e meia vamos idealizando o que existe nos filmes, não o “ser” daquela encantadora família dos anos 50 e 60 e sim o “ter” de nossa era de cruel consumismo. Confesso que já mandei fazer dois vestidos iguais ao da Lady Di, que hoje já estão fora de moda e sempre procurava um corte de cabelo parecido com o dela. Há anos passava um seriado australiano e minha irmã, rindo a não poder mais foi me mostrar os sapatos pretos que havia comprado parecidos com os da “Rachel”, uma corajosa policial. Depois me apareceu usando óculos ray ban da Olivia Benson do seriado Law e Order. E em nossa última viagem de repente ela tira da mala uma camisa branca de seda à la Stella Gibson, a enigmática detetive do The Fall. Enfim, faz parte da nossa humanidade feminina nos mirarmos em belas heroínas que sempre vencem. Nem sempre. No tal seriado australiano a Rachel morreu. Vai ver que a atriz tinha que sair do seriado, assim acabou ficando mais próximo do real como é a vida de todo mundo.
Meu pai não sabia de tudo como o Jim Anderson e minha mãe não era doce como Mrs. Margaret, contudo nós aprendemos amar nossos pais como eram, mesmo entre os problemas leves, médios e severos. O bonito da vida é o amor pelas pessoas que são como são e não como gostaríamos que fossem. 
 

domingo, 10 de março de 2019

MEU PAI


                        Hoje meu pai faria 100 anos. Melhor dizendo, hoje meu pai faz 100 anos no Céu. Falar sobre ele já me faz transbordar em lágrimas de saudades. Dizem que o tempo cura as ausências. Tudo bem. Mas esquecer? Jamais. Como esquecer você sempre lá, nunca cobrando nada, só feliz com nossa presença. Como esquecer seus adjetivos, “formidável, superior, estupendo”? Como esquecer sua gentileza?
            Mas não quero me lembrar com tristeza. Quero me lembrar dos momentos alegres. Meu pai era caçador. Naquela época isso era permitido. Nos feriados, ele era caçador sim, de andar de roupa de caçador com espingarda, cantil e sempre com as perdigueiras com ele. No final do dia ele trazia algumas codornas que minha mãe preparava para o jantar. Às vezes ele ia de ônibus para outra cidade para se encontrar com um amigo para as caçadas e levava a espingarda do seu lado, sem balas, é claro. Mas mesmo assim, que tempos aqueles!
            Nos meus oito anos meu pai foi caçar em Mato Grosso com dois amigos, o Wilson, pai da Irani e mais um de quem não me lembro. Chegou a notícia de que estavam presos, os três. Foi qualquer coisa com relação à licença para as espingardas que levavam. Era época de paz, tudo era resolvido. Entretanto, nós os filhos, ficamos apreensivos porque éramos crianças e passava um fio de medo, será que meu pai voltaria? Minha mãe, se dependesse dela, nada era grave, sempre vinha com o seu “ora gente, que bobagem”, fazendo parecer que tudo daria certo na vida.
            Bem, aí ficamos dias sem notícias do pai. Certo dia estávamos almoçando, todos nós, os filhos e minha mãe. Eu me lembro que era um almoço silencioso quando, sem mais nem menos, na maior surpresa, meu pai pulou para dentro de nossa copa, gritando e assustando todo mundo. Ele entrou em casa pé por pé para ninguém desconfiar. Foi a maior gritaria e alegria, pulávamos em seu pescoço, ele estava barbudo e cheirava mal, ai que saudade do meu pai! Minha mãe feliz, tão linda, “ora gente, que bobagem”, dessa vez tudo deu certo. Éramos crianças, felizes. O mundo era mágico e a vida era bela. Era minha inocência intacta e genuína, minha feliz vida de menina. Que saudades do meu pai!
Bem, todos se vão. Todos passarão, todos passaremos, mas meu pai, “passarinho”, emprestando esta delicadeza de Mario Quintana. Eu só queria ouvir mais uma vez que fosse, ele me chamando de “filhinha” como era seu costume. A morte devia ser proibida para os homens bons, mas aí está você encantado em alguma estrela, na grande festa no Céu, acompanhado de seus irmãos e de seus pais, posso até ver sua alegria. Imagino que se pudesse lhe perguntar, “então pai, como é aí?” “Filhinha, aqui é SUPERIOR, você me responderia.
A foto mostra meu pai, nós, os filhos, o Fernando com manga na boca, e todos com os filhotinhos da Joia. Falta a Raquelzinha, a “filhinha” caçula que devia estar a caminho. A vida é pequena para caber tanta ternura.
           
               

domingo, 3 de março de 2019

O MAIOR PEIXE DO MUNDO


E aqui estou eu no primeiro dia de março para dizer alguma coisa. Meu marido passou por mim todo sujo de massa corrida e eu, empolgada, disse a ele: hoje é o primeiro dia de março! Ele se virou para mim com uma cara de quem diz: realmente deve ser um dia importante para um comunicado tão assombroso. Sorri. Todo dia é importante, a gente é que não percebe. Vai ser carnaval né? Nunca fui de carnaval e ainda que tenha empregado muitas tentativas para me entusiasmar, não passaram de vãs tentativas. Então como sempre, aqui estou rodeada de café, livros, os preferidos, aqueles a que sempre torno para reler preciosidades e me encantar. Para variar me debruço sobre a poesia que permeia os escritos de Saramago.
Como ontem já havia lido algo a respeito de sonhos que não se concretizam e também como acredito que muitas pessoas, inclusive a autora que escreve este artigo, devam carregar pelo menos um sonho que não passou de sonho, ouso contar a história que Saramago contou: menino nos anos 30, como todos os outros, gostava de pescar. Pobre que era, tinha uma “cana vulgar com o anzol, a chumbada e a boia de cortiça atados ao fio de pesca”, nada de artefatos modernos. Nunca havia pescado mais do que alguns poucos peixinhos, “capturas” simples.
A história é grande, mas para resumir, já findava o dia, quando o menino sentiu uma violenta puxada indicando que um grande peixe mergulhava ferozmente tentando se livrar do anzol e quase arrancando a cana de suas mãos. Saramago puxou a cana, foi puxado, mas a luta não durou muito, logo o peixe sumiu levando tudo, anzol, boia e a tal da chumbada. Desesperado, sem conseguir acreditar que o maior peixe do mundo havia escapado de suas mãos, ficou em estado de choque até que lhe ocorreu voltar à casa da avó e regressar para ajustar contas com o monstro. Acontece que a casa dos avós ficava a mais de um quilômetro do rio onde se encontrava, mas ele tinha a disparatada esperança de que o peixe ficasse ali à espera. Contra toda a razão e bom senso, disparou a correr, atravessou olivais para fazer atalhos, irrompeu pela casa da avó preparando outra cana e apetrechos. A avó perguntou-lhe se ele realmente acreditava que o peixe ainda estaria lá, mas ele não quis ouvir, não podia ouvir. Voltou, o sol já ameaçava sumir, lançou o anzol e esperou. Só silêncio. Um silêncio de que ele nunca se esqueceu. Ali ficou até tarde quando por fim, com a tristeza na alma, enrolou a linha e voltou para casa. Aquele peixe certamente não morreria fácil, mas um dia seria pego por alguém. Entretanto, de qualquer maneira, o menino obstinado foi surpreendido por um sentimento de realização e de vitória. O maior peixe do mundo com o anzol enganchado nas guelras levaria para sempre a sua marca, o peixe era seu. 
Portanto, se você tem um sonho, não pode ser só um sonho. Tem que ter luta, batalhas e guerra, sangue, suor e lágrimas. Você tem que lutar por ele. Tem que percorrer dez quilômetros até à casa de sua avó, tem que preparar outra cana, anzóis e chumbadas quantas forem necessárias, tem que fazer ouvidos moucos a quem queira fazer você desistir de seu sonho. Tem que fazer o caminho de volta, e esperar. Se o peixe foi embora, não importa. O importante é o sonho, o importante é saber que você deu tudo de si para alcançá-lo. A energia que vem deste sonho e desta luta é o que o mantém vivo.   
Há momentos em que temos que lançar fora a razão e o bom senso e nos deixar guiar por uma força tão poderosa quanto cheia de mistério, sentir a adrenalina agir no sangue até o limite da inconsciência. Meus sonhos sempre foram assim, ainda que não tenham sido realizados. Intensos ou nada. Assim tem que ser, a menos que você se contente com uns meros peixinhos.