Em
2008 publiquei meu primeiro livro: Demência, o resgate da ternura. Nele eu
relato a experiência com minha mãe que sofreu de demência. Evidentemente que
ficava difícil falar sobre a demência sem falar sobre nossos relacionamentos,
nosso passado, nossa história. O drama se repete em muitas famílias porque não
existe família sem romance familiar, porém não é todo mundo que fala e que
escreve. Escrevi rapidamente, em pouquíssimo tempo, como num jorro incontrolável
que não é possível segurar. Sentia uma necessidade imperiosa de registrar tudo
o que estávamos passando. Nem por um momento pensei em escrever para ajudar
outras pessoas, o que, afinal, acabou ocorrendo. Muitas filhas aflitas me
enviaram mensagens pedindo o livro e querendo compartilhar suas experiências.
Contudo, vieram as críticas. Gelei. Paciência, não havia maneira mais suave
para descrever algo tão devastador. Hoje eu não escreveria este livro. Mas está
escrito. E por mais devastador que tenha sido, fica patente em todo o livro meu
amor por minha mãe.
Há
alguns anos tive a grata surpresa de ler uma carta de Graciliano Ramos à sua
irmã aconselhando-a sobre um conto que havia escrito. Ele preferiu criticar a
elogiar. A irmã escrevia bem, mas faltava uma boa dose de realidade. Lembrei-me
de meu livro e de alguns comentários: “mas é triste, muito triste”. E eu
rebatia: “sim, é triste, é cruel, mas é verdadeiro”. Mesmo quando os escritores
criam uma história, se não temperarem com sua vida e suas experiências, a
história ficará pobre. E Graciliano vai fundo: “só conseguimos deitar no papel
os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. As nossas
personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos ...
apresente-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é
necessária, é claro, mas se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera.”
Sorri
intimamente quando li esta carta. Compreendi que meu primeiro livro foi uma
experiência maravilhosa, pois deitei no papel não só minha vida, meus
sentimentos, meu sangue, minha carne. Deitei no papel toda minha alma,
desnudei-a, sem medo. Daquele livro vieram outros e mais outros estão por vir.
Sinceramente não sei se não tivesse ousado escrever o primeiro, talvez os
contos, as inúmeras crônicas de mais de dez anos, as histórias infantis e os
poemas ainda estivessem trancafiados dentro de mim, no mais profundo de meu
subterrâneo, esperando para sair. Eu dava os primeiros passos em alguma
história que escrevia, encantada com o tesouro que eu aprendia a brincar, mas não
passava de uma meia dúzia de cinco como dizia alguém de quem já não me lembro. Não
é possível saber, mas suspeito que foi a ternura do primeiro que abriu as
portas dentro de mim.
Dessa
forma, resgato um carinho pelo livro que ainda acho que eu não teria escrito se
fosse hoje. Um livro que acordou as palavras, o tímido discurso de quem tinha
tanto a dizer. Que bom que não foi hoje, que bom que foi na hora certa em que
eu vivia um drama do qual pude falar abertamente, sem qualquer pejo, aliás,
nunca tive problema algum em falar de mim, do que se passa comigo, haja vista
minhas crônicas onde sempre relato um fato real acontecido e de onde tiro
minhas elucubrações. Esta sou eu, a autora e personagem. Além disso não há
nada. Aprendi com Saramago que o autor é todo o livro e o livro é todo o autor.
E aprendi com Gabriel Garcia Marques que a gente sempre escreve o mesmo livro
de outras maneiras.
Se não for para abrir
o coração e desnudar a alma não vale a pena.
Deixa qu