sexta-feira, 19 de julho de 2019

NA CARNE


Em 2008 publiquei meu primeiro livro: Demência, o resgate da ternura. Nele eu relato a experiência com minha mãe que sofreu de demência. Evidentemente que ficava difícil falar sobre a demência sem falar sobre nossos relacionamentos, nosso passado, nossa história. O drama se repete em muitas famílias porque não existe família sem romance familiar, porém não é todo mundo que fala e que escreve. Escrevi rapidamente, em pouquíssimo tempo, como num jorro incontrolável que não é possível segurar. Sentia uma necessidade imperiosa de registrar tudo o que estávamos passando. Nem por um momento pensei em escrever para ajudar outras pessoas, o que, afinal, acabou ocorrendo. Muitas filhas aflitas me enviaram mensagens pedindo o livro e querendo compartilhar suas experiências. Contudo, vieram as críticas. Gelei. Paciência, não havia maneira mais suave para descrever algo tão devastador. Hoje eu não escreveria este livro. Mas está escrito. E por mais devastador que tenha sido, fica patente em todo o livro meu amor por minha mãe.
Há alguns anos tive a grata surpresa de ler uma carta de Graciliano Ramos à sua irmã aconselhando-a sobre um conto que havia escrito. Ele preferiu criticar a elogiar. A irmã escrevia bem, mas faltava uma boa dose de realidade. Lembrei-me de meu livro e de alguns comentários: “mas é triste, muito triste”. E eu rebatia: “sim, é triste, é cruel, mas é verdadeiro”. Mesmo quando os escritores criam uma história, se não temperarem com sua vida e suas experiências, a história ficará pobre. E Graciliano vai fundo: “só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos ... apresente-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro, mas se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera.”
Sorri intimamente quando li esta carta. Compreendi que meu primeiro livro foi uma experiência maravilhosa, pois deitei no papel não só minha vida, meus sentimentos, meu sangue, minha carne. Deitei no papel toda minha alma, desnudei-a, sem medo. Daquele livro vieram outros e mais outros estão por vir. Sinceramente não sei se não tivesse ousado escrever o primeiro, talvez os contos, as inúmeras crônicas de mais de dez anos, as histórias infantis e os poemas ainda estivessem trancafiados dentro de mim, no mais profundo de meu subterrâneo, esperando para sair. Eu dava os primeiros passos em alguma história que escrevia, encantada com o tesouro que eu aprendia a brincar, mas não passava de uma meia dúzia de cinco como dizia alguém de quem já não me lembro. Não é possível saber, mas suspeito que foi a ternura do primeiro que abriu as portas dentro de mim.   
Dessa forma, resgato um carinho pelo livro que ainda acho que eu não teria escrito se fosse hoje. Um livro que acordou as palavras, o tímido discurso de quem tinha tanto a dizer. Que bom que não foi hoje, que bom que foi na hora certa em que eu vivia um drama do qual pude falar abertamente, sem qualquer pejo, aliás, nunca tive problema algum em falar de mim, do que se passa comigo, haja vista minhas crônicas onde sempre relato um fato real acontecido e de onde tiro minhas elucubrações. Esta sou eu, a autora e personagem. Além disso não há nada. Aprendi com Saramago que o autor é todo o livro e o livro é todo o autor. E aprendi com Gabriel Garcia Marques que a gente sempre escreve o mesmo livro de outras maneiras.
Se não for para abrir o coração e desnudar a alma não vale a pena.  Deixa qu

quinta-feira, 18 de julho de 2019

LIÇÕES NO CAMPO



            
 No último final de semana fui com minha irmã para a Oka Katupé, sítio de minha prima Lígia. Há muito que queríamos compartilhar um tempo de plena ociosidade, ficar por conta de papo, cafés, cervejas, risos e vinhos. Para minha surpresa foi um tempo de aprendizagem, ainda que só num final de semana. Aprendi algumas coisas sobre a natureza, sobre os animais, sobre a vida. Algumas coisas não eram propriamente desconhecidas para mim, afinal eu já bebi leite na canequinha esmaltada diretamente do peito da vaca, mas isso foi há milhares de anos luz.
            Aprendi que andorinhas são pequenas e pretinhas, já as rolinhas são maiores e marronzinhas. Há que se ter cuidado para não confundi-las com o João-de-Barro que é um tanto maior que as rolinhas. Fui apresentada à árvore que produz castanhas portuguesas. Imagina só: a gatinha Gaia bebe água do laguinho onde três peixinhos, Bocudo, Barriguda e Trinca vêm roçar na barbichinha da Gaia. Não acreditei quando vi os peixinhos atendendo pelo nome quando a Lígia chamava. Eles conhecem sua voz. Que coisa!
            Minha prima, ao observar a gatinha dormindo profundamente em sua caminha banhada pelo sol da manhã, faz a seguinte reflexão: com que sonha um gato? Com sua mãe que nunca mais viu, talvez com seus possíveis irmãozinhos, com os bichinhos voadores que ela persegue. Vai saber. Gaia é livre, vai e vem conforme seu desejo. Passeia pelo telhado, entra pela janela da cozinha.
            O frio da noite pedia e o fogo foi aceso. Me senti a própria Ayla, a filha das cavernas, ao fixar meu olhar nas labaredas, no pau que ardia soltando faíscas, assustando sempre com os estalos da madeira. O pensamento corria longe, eu perdida em meu olhar fixo naquela visão primitiva. O fogo é demais! Quando a gente perde o olhar, descansa a mente. Há quanto tempo eu não experimentava essa sensação gloriosa! Olhar perdido sem piscar, que coisa mais antiga e mais sábia. Éramos quatro primas ao redor do fogo. A esta altura de nossas vidas, carregamos histórias, dores compartilhadas, cada uma com sua própria trajetória. Lembrei-me de nossas infâncias, de quando ainda nada sabíamos do entardecer da vida. Diante do fogo que crepita e dança como quer, eu me encolho hipnotizada diante de mistérios insondáveis que morrerei sem saber. O fogo aceso no escuro faz a gente viajar no tempo, desde as cavernas dos Neandertais onde viviam mulheres como nós que cuidavam para que o fogo não se apagasse. Ele traz memórias perdidas, traz nossas mães e avós que já se foram há tantos anos.   
            Na última noite, acordei com passos pela casa, no cômodo ao lado. Medrosa, acordei minha irmã. Minha prima explicou que aves, morcegos pousam e brincam no telhado. Mas eu juro que eram passos. Bem diferente de minha noite na cidade. O problema é este, eu sou e não sou. Quando estou na cidade, quero morar no campo, porém, quando estou no campo, acho falta na cidade, na Manhattan da Varginha, no burburinho, no afã das pessoas que andam apressadamente. Minha natureza é inquieta, procura por barulhos, e minha alma é poeta, precisa de andorinhas, castanhas portuguesas, peixinhos e sonhos de gatinhos.   
Ora gente, que bobagem, como dizia minha mãe, não há que se ter conflitos por coisas tão boas. Já bastam os conflitos que temos que enfrentar sem ter como escapar. É só morar na cidade e descansar no campo, grandes coisas! Pronto. Todo mundo precisa de pausas. Há um tempo para tudo nessa vida preciosa que Deus nos deu.  

terça-feira, 2 de julho de 2019

TRIBUTO



            Sendo uma escritora apaixonada pelas palavras (e me pergunto qual escritor não seria?) tropecei em uma palavra que sempre esteve aí desde que me entendo por gente, desde que leio, que estudo, e, no entanto, tenho a sensação de que só agora sou apresentada a ela: tributo. Fico maravilhada com este fenômeno que ocorre de tempos em tempos independentemente de minha vontade. Já aconteceu isso antes e sendo algo que eu nada possa fazer para que aconteça de novo, só me resta esperar pela grata surpresa de ser apresentada a palavras que já conhecia e que me aparecem com roupagem tão rica. É como se fossem rainhas disfarçadas em servas que tornam ao seu estado real e natural. Assim as palavras renascem para mim absurdamente belas e profundas.
            Acima eu escolhi dizer “tropecei” para fazer um paralelo com o que diz o linguista russo Chklovski ao tentar definir o que é literário. Diz ele que é onde o “pé sente a pedra”. Você passa pelo mesmo caminho todos os dias e seu pé já se acostumou a todas as pedras, aí tem um dia em que você nota algo diferente, como se fosse uma pedra nova. É despertada uma emoção gostosa e estranha quando você lê algo que às vezes até já leu, porém dita de outra forma. Então, comigo e as palavras o fenômeno é quase igual. Pisei em cima do “tributo” e meu pé sentiu uma pedra diferente, e uma emoção gostosa e estranha tomou conta de mim. 
            Bem, vamos ao tributo. Recebi ontem de uma pessoa muito especial um livro muito  especial, em que o autor oferece o livro que escreveu à sua amada esposa e companheira que não mais vivia. Assim ele escreve: “Um tributo a ...” É claro que eu conheço os significados de tributo, entendi perfeitamente a homenagem que ele fazia à sua amada, porém eu nunca havia mergulhado em águas tão profundas de um significado, eu ficava apenas na rasante de uma homenagem e não percebia suas honrarias. Talvez pelo conteúdo do livro, pela maneira como dedicou o livro, a palavra tributo elevou-se diante de meus olhos a uma categoria máxima!. O fato é que às vezes as palavras se escondem, às vezes despertam e nos assaltam com tanta sensibilidade que eu me rendo.
Assim, fica aqui registrado meu tributo às todas as palavras e àquelas que se dignam vez ou outra a se mostrarem a mim em sua maneira mais bela, em sua roupagem real de tal sorte que eu me sinta feliz e honrada em conhecê-las. Não é preciso dizer que as palavras têm vida. Estendo também meu tributo à linguagem, ao discurso, a todos os significantes e significados. Quanta riqueza possui a linguagem! Só me resta perguntar se esta riqueza está nas palavras em si, no que significam ou dentro de mim quando amanheço em êxtase literário com a vida!