sexta-feira, 23 de agosto de 2019

CONFISSÕES DE UMA OVELHA


Nasci uma ovelhinha muito especial. Todas as ovelhas são especiais para o Bom Pastor. É que esta é a minha história. Então, muito espertinha, logo que finquei os pés no chão, admirei os verdes pastos e pensei: que mundo mais lindo! É meu. E era mesmo, Deus nos deu infinitas graças e belezas neste mundo: a terra para morar, a lua para admirar, as flores para nos alegrar, a água para regar, os frutos da terra para nos alimentar. Mas não nos deu este mundo para sermos seduzidos e consumidos por ele.
Logo descobri ovelhas que pastavam do outro lado da cerca. Gente, a grama parecia muito mais verde do que a nossa. Sei que nosso Pastor era bom e nossos prados eram verdejantes, porém não posso precisar se era o brilho daquela grama vizinha que a fazia tão atraente e convidativa. Não pensei duas vezes, forcei a cerca até que me vi do outro lado. Foi quando o Bom Pastor me puxou, me aplicou uns corretivos com seu cajado. Doeu. Eu não desisti, tornei a passar para o outro lado. Outra vez apanhei. Finalmente aprendi que a grama do vizinho só parece mais verde. Não é. E comi tantas ervas daninhas, algumas até venenosas. Poderia ter morrido. O Bom Pastor me salvou, me curou e me bateu com seu cajado. Bendito seja para sempre seu cajado!
E eu era tão travessa, tão forte e ao mesmo tempo tão frágil que acontecia de ficar virada com minhas pernas pro ar sem conseguir me por de pé. A respiração ficava difícil, quase morria sem ar. Ele contava as ovelhas, via que faltava uma, advinha quem? E vinha, me desvirava e o ar chegava límpido em meus pulmões. Perdi a conta de quantas vezes fiquei virada e o Bom Pastor voltava até me encontrar e me desvirar. 
E quando eu fiquei infestada de enxames de insetos, de moscas varejeiras, moscas-do- berne? Que tortura! Cheguei a ver outras ovelhas desesperadas baterem as cabeças contra as árvores para se libertarem do ataque! Por milagre, sempre fomos salvas pelo Bom Pastor que nos banhava em óleo de linhaça, sulfa e alcatrão, aplicando de forma suave o tal preparado principalmente em nossos focinhos, nos inundando de alívio. Como nós, ovelhas, somos indefesas e felizes de nós que nos deixamos conduzir pelo Bom Pastor. As ovelhas do aprisco vizinho foram quase todas dizimadas porque seu pastor era indolente e não cuidava de suas ovelhas. 
De outra vez, em minhas andanças pelas colinas deste mundo, caí de boa altura e fiquei presa num pedacinho de rocha num desfiladeiro sem fim. Simplesmente eu não podia dar um passo que cairia num vale tenebroso. Seria o fim. Senti medo. Intimamente chamei pelo Bom Pastor. Demorou um pouco, tive que sofrer suas demoras, e até que enfim Ele veio. Desceu seu cajado e encaixou direitinho minha cabeça no gancho torto que se forma na ponta. Ele me tirou do vale tenebroso e me levou para o alto. Ele nunca desistiu de mim. Bendito seja para sempre meu Bom Pastor.
Envelheci. Amadureci. Compreendi com meu limitado conhecimento humano que em nossas vidas seremos sempre sujeitos aos perigos, aos sofrimentos, à dor, às perdas, só que o Bom Pastor segue sempre junto de nós, está sempre presente nos verões infestados de moscas que nos atormentam e nos outonos quando descansamos nas sombras ao lado de fontes de águas puras. Ainda contemplo o mundo de prados e campinas, ainda sou fascinada por ele, mas agora mantenho meus olhos fixos no meu Pastor. Ele é o meu Senhor. Amém para sempre.

Fiz este relato me baseando no livro “Nada me faltará”, presenteado por uma querida amiga. O autor deste livro, Phillip Keller, criado na África Oriental, foi durante oito anos um criador de ovelhas. Portanto, ele escreveu este livro como alguém que conheceu pessoalmente todas as fases da vida de uma ovelha. Mais tarde, como pastor leigo de uma igreja comunitária, ele ensinou as verdades reveladas pelo salmo 23 ao seu “rebanho” de pessoas, com real conhecimento de causa, estando apto a discorrer sobre as ressonâncias existentes entre a vida de ovelhas conduzidas por um bom pastor e a vida cotidiana dos homens com Deus.
As ovelhas são os animais mais indefesos que existem. Exigem atenções especiais e cuidados meticulosos quase como os bebês. Um Bom Pastor vive para suas ovelhas. O autor do livro comprovou ao viver vinte e quatro horas por dia cuidando de seu rebanho. Não é por acaso que Jesus nos chamava de pequenino rebanho. O bom Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas.       

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O MORADOR DE RUA


            Há algum tempo um morador de rua tem sido nosso vizinho. Aproveitou um nicho entre um prédio e uma casa e ali fica dia e noite. Algumas vezes percebo que ele não está, mas suas roupas em frangalhos e restos de comida em quentinhas frias indicam que ali é onde mora. Às vezes passo durante o dia e o vejo dormindo profundamente como se estivesse em cama de rei. Certa vez passei e ele estava recostado na parede e de olho no movimento. Me deu um bom dia e eu respondi. Perguntei se não tinha família, se não tinha ninguém. Ele nada disse, apontou para o alto, olhando demoradamente para o céu. Captei a mensagem. Só Deus. E logo em seguida, estendeu a mão para mim. Entendi, tirei o pouco que restava em minha carteira e dei para ele que sorriu amigavelmente.
Vim pensativa para casa pensando em sua história que não conheço. Sei que sua vida não foi fácil, que já nasceu em desvantagem, certamente criado em um ambiente pobre com nenhum ou pouquíssimo acesso às mordomias ou simplesmente o conforto de uma ducha de água quente bem gostosa ou, sei lá, qualquer coisa dessas que temos e nem percebemos como são boas. Este pobre homem não tem culpa de ser um morador de rua. Também sei que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus, mas acredito que nem todo rico seja mau e a misericórdia de Deus é grande. Esta questão de nascer uma criança já condenada a sofrer tanto pela miséria, pelos maus tratos, pelo preconceito e já outra nascer filho de príncipes sempre me faz pensar sobre a inexatidão da vida.
Bem, evidentemente que o caso do morador de rua passou a fazer parte de nossas discussões filosóficas em casa. Como entrou julho com aquele frio atroz de matar que me fez pegar uma gripe do cão, pensei no homem lá fora. Procurei e achei uma blusa quentinha já usada de meu marido. E fui saindo de casa quando ele me flagrou: peraí, esta blusa é minha. Não é mais, respondi, agora é do senhor que está lá fora morrendo de frio. O quê? Redarguiu ele, vai lá e vê. Todo mundo daqui de perto levou blusa e cobertor pra ele. Ali tem agasalhos e cobertores para vários invernos. Eu ri porque sei que ele é espirituoso e brinca muito. Levei a blusa. O homem nem viu. Dormia a sono solto em meio ao burburinho da tarde. Pude perceber que meu marido tinha razão, o homem dorme por cima de pilhas de agasalhos. E já o vi vestindo uma jaqueta acolchoada em ótimo estado. Não sei se é a solução adequada, só sei que as pessoas têm pena. Agora o homem achou como fazer uma tenda com um lençol cor de rosa que ele prendeu pelas pontas nas grades ao lado.
            Bem, no domingo, já ao final da missa das quatro, enquanto a comentarista dava os avisos, eis que o protagonista desta crônica irrompe pelo corredor central da igreja, com um saco preto nas costas e carregando sua magreza extrema, aproximou-se da escada que conduz ao altar. Expectativa geral. Em seguida levantou o braço exibindo um dinheiro nas mãos. Ficou um tempo parado com a nota tremulando ao alto. O padre, a princípio preocupado, acabou abrindo um sorriso acolhedor. Então o homem subiu, depositou seu “dízimo” no último degrau e saindo rindo, triunfante.
            Há alguns dias passei em frente à tenda do homem. Ele estava acordado e fumava lá dentro. Talvez por isso tenha deixado uma fresta para respirar. É esperto, percebeu meus olhos e fixou seu olhar em mim. Ele é um homem, um ser humano, um filho de Deus como qualquer um de nós, com todos os direitos que não tem.  
Hoje passei e vi que o homem não está mais lá. Foi retirado. Meu marido disse que o pessoal da companhia de água precisou fazer a medição e onde estava o registro? Justamente dentro da tenda do sujeito. As pessoas estavam lavando o local para se livrarem do mau cheiro. Esta é a vida real. Foi-se embora nosso vizinho, sabe-se lá para onde.  Foi-se embora com sua história de vida que não conheço nem conhecerei. Nem todo morador de rua nasceu em uma família pobre. Já conheci gente que levava uma vida normal, que acabou sem emprego, sem família e foi para as ruas. Um alcóolatra ou uma pessoa destroçada por um trauma pode acabar nas ruas.
Desejo que nosso ex-vizinho seja feliz. Parodiando Rabindranath Tagore, cruzo com muitas pessoas todos os dias e sei que cada uma delas é meu irmão. O morador de rua também. Sequer eu soube seu nome.