sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O CAOS INEVITÁVEL

 

Fui arrancar os matinhos dos vasos e percebi uma planta nova que havia nascido ao lado de outra. Chamei meu marido e ele me lembrou que era o “gengibre” que minha prima havia nos presenteado e que eu mesma trouxera. A planta tinha uma espécie de um verde muito bonito. Eu aproveitei para mostrar a ele a Madressilva que está sem suporte para crescer e decidiu se enrolar na planta do outro vaso ganhando alturas.

Ele me disse: é assim mesmo, deixa que ela se enrole onde quiser, você nunca entrou em uma floresta? Floresta mesmo, não um horto florestal, floresta densa. Eu, nunca né. Morreria de medo. E ele prosseguiu: É o caos no bom sentido. As plantas crescem desordenadamente, árvores, arbustos, samambaias, trepadeiras, até cobras de todas as cores. Aí chega o homem e quer pôr ordem no caos da natureza. Quer que os pinheiros fiquem enfileirados, todos obedecendo a mesma distância uns dos outros. Isso não existe. O caos é necessário para trazer harmonia. Achei lindo! Oh puxa-saco!

Aí transpus para nossa vida, a vida de cada um. Dentro e fora de nós também é assim. Ninguém consegue viver ordenadamente durante muito tempo. Nossos pensamentos muitas vezes são caóticos. Minha casa é o caos total, vivo planejando segunda limpo isso, terça aquilo, de repente, por um motivo ou outro, o planejamento fura. Faço um cavalo de batalha por causa disso. Que bobagem! Alguns dias depois, tudo está limpinho. O caos existe e temos que conviver com ele. Importa viver bem.

Tudo parece correr bem até que as tempestades irrompam e interrompam nossos planos. As tempestades de preocupações, de aborrecimentos, de doenças, de tristezas, de perdas, enfim, as tempestades que fogem do nosso controle de navegação. E ficamos à deriva. Depois de algum tempo ou muito tempo, tudo se acalma e prosseguimos. Na vida sempre teremos tribulações e quando o caos irrompe, é difícil, muito difícil. Até sabemos que vai passar, mas até que passe, respiramos pesadamente, lutamos para compreender o que não podemos compreender, somos inundados de pensamentos tenebrosos, somos só trevas.

Mas, passado o caos, quem tem olhos percebe que era preciso que tal calamidade acontecesse para gerar um bem que jamais pensamos que fosse possível. Acredite, tudo fica iluminado e quanto mais intenso o caos, maior será a luz. Já dizia Nietzche, “É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.”

Enquanto há vida, há esperança. E quando a morte vem? Há esperança também. A esperança final, a esperança mais bonita, mais forte e mais iluminada. Quem já viu lampejo dessa luz anseia pela morte!

 

 

 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

MÃOS ENTRELAÇADAS

 


Assisti a um seriado que para dizer a verdade, não gostei. Porém, como de qualquer coisa, mesmo até de um mal se pode tirar um bem, teve uma cena que me tocou, que me fez refletir. Foi assim: uma mulher angustiada está na beirinha de um precipício. Ela olha como que atraída pelo vazio do abismo. Uma pessoa responsável pelo grupo vem e toca cuidadosamente a mulher que reage com agressividade.

Aí a pessoa diz assim: não vou tocar você, quero apenas ficar de mãos dadas. E a pessoa entrelaça sua mão na mão da mulher. E continua dizendo: mãos dadas e entrelaçadas é mágico, é cuidado, presença, segurança. Ficar de mãos dadas é um ato poderoso, mais forte do que o ato sexual, envolve um mundo de emoções, uma cumplicidade entre dois seres. A mulher se acalma e sai daquele penhasco perigoso. Para salvar alguém às vezes basta um pequeno gesto, feito de compaixão e cuidado.

Bem, imediatamente eu me transportei para o relato de minha amiga que me contou certa vez de sua tia velhinha que, no entardecer da vida se comportava como uma frágil menina, fato que eu, que a conheci bem, sabia que ela era uma menina desde sempre. Sua acompanhante dormia na cama ao lado e a tia acordou assustada, com muito medo. A acompanhante tentou acalmá-la, mas ela continuava apavorada. E aí ela pediu à acompanhante se podia de ficar de mãos dadas com ela. A moça assentiu, ficaram de mãos dadas até que a senhora adormeceu. Lágrimas inundaram meus olhos. 

Como uma cereja traz outra cereja, lembrei de minha mãe que a vida toda não era mulher de carinho. Só os bebezinhos tinham a honra de ocupar seu colo e serem merecedores de muitos carinhos e das mais variadas gracinhas que só as mães e avós sabem fazer com perfeição, usando aquela linguagem própria: “cadê minininho da vó? Cadê meu tisoio?“Cadê meu colação? Cadê? Cadê? Cadê?”. Então, assim que os bebês completavam mais ou menos três meses de idade, cessavam aquelas explosões de carinho. Penso que quando as criancinhas começavam a mostrar ares de independência e vida própria, minha mãe ficava brava. Por que? Ora porque ela sempre foi aquela que detinha o controle, oh mulher forte! Claro que ela achava graça nas crianças e as amava com loucura, apenas queria uma submissão total dos pequenos.

Enfim, depois que minha mãe ficou demente, eu descobri que ela passou a gostar de ficar de mãos entrelaçadas comigo, e eu ia lá duas vezes por dia para me apossar da minha cota de carinho e ternura, deficiente de longa data, digamos assim. Ah eu me esbaldava com aquele carinho de todo dia. E ela gostava, como uma menina. E eu outra.

Mãos entrelaçadas dizem muito, é afeto genuíno que escorre do coração. Não é à toa que quando vamos sair e meu marido põe a mão em meus ombros, eu digo pra ele: prefiro andar de mãos dadas. 

      

terça-feira, 14 de setembro de 2021

POEMA QUE CAI DO CÉU

POEMA QUE CAI DO CÉU

Misa Ferreira

 

Um cansaço

Um bocejo

Um desejo que aperta o peito

 

Cismada

Deixo a louça

Deixo a casa

Deixo tudo

E parto em busca de não sei o quê

Meus olhos suplicantes

Como que por instinto

Procuram o alto

De mil em mil anos

Cai um Poema do Céu

Estendo as mãos

E o recebo com sagrado fervor

Pode ser um Poema de amor

Ou de dor

É preciso dar nome ao Poema:

Poema que cai do Céu. 

DESIGUALDADE


Pisando no mesmo terreno da crônica “Coisas de homens e coisas de mulheres”, sem querer puxar, mas puxando a sardinha para as mulheres, volto à carga. Talvez porque eu seja mulher e orgulhosa de ser mulher, ou talvez simplesmente porque é possível enxergar que realizar tarefas caseiras não é só coisa de mulher.

Quando éramos adolescentes, minha mãe distribuía com desigualdade as tarefas da casa. Pobre mãe, sem querer criticar o que ela fazia, mas infelizmente criticando. Era assim: para nós duas mais velhas, ficavam a arrumação da casa para minha irmã e a arrumação da cozinha para mim. É verdade que meus três irmãos que vieram depois de mim ainda eram crianças, três meninos, porém não tão crianças que não pudessem ajudar.

Eu voltava da escola com sono e faminta. Depois de almoçar a comida simples e deliciosa da mamãe eu via aquela cozinha imensa cheia de trecos sujos para serem limpos. Fazia a tarefa, obediente e bonitinha que eu era. Minha irmã arrumava a casa direitinho também, não sem reclamar com os irmãos que dormiam no mesmo quarto que mais parecia um recinto atingido por tsunami. Camas a serem feitas, todos os sapatos dos três debaixo das camas, uma zona total.  

Minha irmã ficava brava e brigava com os meninos e lá vinha a mamãe para ralhar com ela e aproveitava e ralhava comigo também que não tinha feito nada. Dizia ela assim: Não cobrem isso deles. Seus irmãos são homens, não é tarefa de homem. Se não quiserem fazer, deixem que eu faço.

Mas mãe ... e ela fazia ouvidos moucos.

Não compreendíamos bem porque ela “cocorava” (expressão que ela usava muito!) os meninos. Só mais tarde sacamos que ela ficava apreensiva de que eles não se tornassem homens plenos se guardassem seus sapatos e principalmente, se arrumassem suas camas. Embora minha mãe fosse além de seu tempo em muitas questões, nesta especificamente, ela era preconceituosa. Contudo, há que entender que ela era produto da cultura de sua época.

Em seu livro “Para educar crianças feministas”, a fabulosa escritora Chimamanda Ngozi Adiche enfatiza que embora muito tenha sido feito, temos ainda um longo caminho a percorrer na questão da igualdade de gênero. Uma sociedade mais justa começa na família, em casa, iniciando-se pela justa distribuição de tarefas entre pais, mães e filhos.

Na época, sentíamos que algo estava errado, algo estava injusto. Os meninos “cocorados” pela mamãe tiveram mais tarde que aprender a duras penas a limpeza e organização do lar.

Discurpa mãe! Foi mal!

Saudades da minha mãe!  

 

sábado, 4 de setembro de 2021

A MAGIA DA LUA

 

Ontem eu assisti a um documentário sobre Elvis Presley. Evidentemente que contam a vida de Elvis desde quando nasceu, e surpresa, eu soube que ele teve um irmão gêmeo que não resistiu e morreu logo após ter nascido. Mas eu não vou falar da vida do Elvis, não vou falar que fiquei pensando se o irmão sobrevivesse, será que também cantaria como Elvis? Nem pretendo falar que fiquei pensando que, embora o Elvis não tivesse conhecido o irmão, saber que teve um irmão gêmeo deve ter impactado sua vida. O que vou falar mesmo é de lua e lua cheia.

Por que falei do Elvis se vou falar é de lua cheia? Apenas por causa de um detalhe ainda de Elvis: sua mãe, encantada com a possibilidade de o filho se tornar cantor e fazer sucesso, dizia a Elvis que se ele cantasse em noite de lua cheia, seu irmão poderia escutá-lo. Não sei, pode ser.

Sou absurdamente apaixonada por lua cheia. Não é a primeira vez que perambulo    pela casa no escuro da noite e de repente, passando pela sala sou atraída para a janela! Uma claridade estonteante vem do céu, mostrando uma lua tão grande como nunca vi, tão redonda, tão magnífica! Saio correndo em busca do celular e tiro umas dez fotos. Linda, linda! Linda! A lua cheia me atrai, me fascina!

Bem, sempre ouvi dizer que a lua tem influência sobre o comportamento humano. Com certeza sei que tem sobre os oceanos, sei que a lua é a responsável pelo movimento das marés. Mas para fazer crescer os cabelos, adiantar partos? Fazer surtar as pessoas? Olha, não é à toa que o termo “lunático” remete à loucura, ao desvario. Segundo o poeta Raimundo Corrêa, a lua é o astro dos loucos. E tem mais, não é de hoje que meu marido me conta que lá no Sul onde ele morou quando jovem, havia uma moça que era problemática, todos sabiam. Entretanto, ela agia normalmente, saía para fazer compras, cumprimentava as pessoas e tal. Só que em noite de lua cheia, ela saía desembestada pela praia, chorando e gritando, surtando mesmo. E a lua imensa lá em cima para atestar que tem seus poderes sim. 

A ciência não consegue explicar muita coisa e o que nos resta é a cultura e sabedoria popular. O que sei é que sou fascinada pela beleza da lua cheia, sou atraída por ela, nem pisco até que desapareça. A lua não é só dos loucos, é dos poetas também que sonham com as ideias fabulosas de Deus como a de colocar duas bolas pendentes no espaço girando e girando sem fim! Nunca me acostumo com as maravilhas deste universo, das cores das flores, das borboletas, e a lua imensa, logo ali? Fala a verdade!

Eu escrevi um conto para crianças em que a personagem ouviu de algumas tias que, se alguém tem um desejo, mas um desejo muito grande mesmo, e se for noite de lua cheia, ela deve fechar os olhos e fazer o pedido à lua que ela atenderá. Certamente devo ter lido isso em algum lugar, não sei, não me lembro. Penso que eu não teria essa ideia assim de graça, ou talvez isso tenha vindo do meu encantamento, do meu enlouquecimento, embasbacada diante de tanta beleza. A lua me enfeitiça, é pura mágica.     

 

“Nada em meu corpo aprisionado se move,

apenas meu coração disparado se comove.

Minha alma se desprende e transcende o que sente e entende.

 Eu me ausento de mim.

E num frenesi insano e sem fim, ganho asas rumo à lua.

Não sou mais eu, apenas uma escrava sua.”  (Misa Ferreira)

 

 

ATOS FALHOS

 

Nunca mais me esqueci de quando eu fazia especialização em Literatura, e a professora de Literatura e Psicanálise estava explicando o que seria ato falho e deu seu exemplo. Ela quando era jovem, em tempos idos, havia sido convidada pela família de seu namorado ou noivo, acho que noivo, para ir à praia com eles. Ela tratou de comprar um maiô bonito e decente e foi que foi. Lá o namorado também estava em traje de banho e se divertiram muito. Quando voltou para casa, a mãe e as irmãs, super curiosas, bombardearam a moça com mil perguntas. E aí perguntaram, maliciosamente, como estava o noivo em seu “calção”, ao que ela respondeu sem titubear: ele é muito pintudo! Na verdade, ela pretendia dizer “pintoso”, adjetivo de antigamente, seria “boa pinta”, mas saiu pintudo, um curioso trocadilho pelo qual teve que aguentar a vida inteira a caçoada da família.

Saiu “pintudo” e não pintoso porque ela, de fato, não tirou os olhos do traje de banho do belo rapaz, para não dizer outra coisa, ou dizendo de outra maneira, o “pintudo” era o que estava em sua mente inconsciente, pois em sã consciência ela jamais diria o termo. Isso foi um ato falho, ou seja, algo que não pode ser dito por determinada razão, acaba sendo dito de outra forma.    

Um exemplo clássico de ato falho é chamar o parceiro pelo nome do ex, coisa embaraçosa,  muito comum, mas que pode acarretar sérias consequências. Muitas vezes, não é nada de sério, não é que você ainda esteja apaixonado pelo ex, não necessariamente, se você conviveu um bom tempo com outra pessoa, é natural que seu inconsciente ainda abrigue e vá abrigar traços e laços afetivos. Certa vez, nos primeiros anos de nosso casamento, meu marido teve um pesadelo e gritou o nome de sua primeira mulher, já falecida. Achei natural, um ato mecânico, afinal ele viveu muito mais anos com ela do que comigo.   

Nossa vida é carregada de atos falhos, às vezes gostaríamos de dizer determinada coisa que não dizemos, e em certo momento, o inconsciente nos trai e acabamos por dizer. Enfim, não sofrer por isso, quem nunca cometeu um ato falho que atire a primeira pedra.

Ato falho pode ser resumido da seguinte maneira: cuidado com aquilo que está na sua cabeça porque a tendência é falar justamente isso. Aqui o inconsciente é que manda, não está no nosso controle. Como o ato falho é um ato involuntário, às vezes conseguimos pisar no freio, às vezes não. Paciência, tomara que nossos foras não sejam graves. Larga mão.