segunda-feira, 28 de novembro de 2022

BOA VIAGEM, NOVEMBRO

 

 

Boa viagem, novembro. Assim formulei minha despedida deste mês tão difícil, tão sofrido. Estava à janela olhando tudo e o nada. Meu olhar atravessava as coisas sem se deter, daquele jeito de olhar perdido, como quando alguém estala um dedo na frente de meus olhos e ainda assim, eu nem piscar, pisco. Só permaneço “em transe”, hipnotizada. Aliás ficar em transe todo esse período não seria má ideia. Dizem que quando estamos com o olhar perdido é que descansamos a mente. É provável porque não elaboramos nada, nenhum pensamento, nem bom nem mau, assim ficamos neutros, desligados de tudo.

Bom, vamos lá, faz trinta e cinco anos que não fumo. Odeio cigarros, o cheiro de longe me faz mal, mas de vez em quando, muito, muito de vez em quando sinto falta do cigarrinho entre os dedos, um simbólico de consolo e de refúgio. De minha janela às vezes assisto à cena de um cara que fuma sozinho de noite, sentado numa cadeira de varanda, fumando e olhando o céu. Pois por este mês de novembro não é que eu quase seria capaz de fumar, qualquer marca que fosse, até aquele antigo continental rascante que nunca fumei. Oh mês de amargar, de cada dia uma surpresa, boa ou má.

Mas tudo passa debaixo do céu e da terra. Vamos chegando ilesos ao final do mês, enfrentando noite e dia, fazendo inverno e verão de frio e calor, a pé, de carro, a cavalo, com fome e sede, entre impropérios e vitupérios, sujeitos a todas as inclemências do céu. Já sei que aquela maravilhosa quietude de idos dias nunca dura mais do que eu gostaria e que de seguro e de exato a vida não tem nada. Pois sejamos fortes e corajosos e verdadeiros.

É fato que às vezes quando procuramos muito uma coisa, acabamos por achar outra. E foi nesses momentos de maior tormenta que me fortaleci. Deus permite tempestades em nossa vida para nosso próprio bem. Deus faz como lhe apraz. Bendito seja Ele para sempre. Não sabemos como será dezembro ou janeiro ou amanhã, ou ainda hoje de noite, mas aqui estarei, de ansiedade em ansiedade, de esperança em esperança. Estarei com meu coração ligado em duzentos e vinte, com um furacão dentro do peito e pensamentos loucos como cavalos selvagens, aliás, como sempre estive.   

De noite eu me refaço, afrouxo o laço, deponho minhas armas no chão e me lembro de que todas as coisas passarão.

Boa viagem, novembro! Vai tarde, como dizia minha mãe.   

domingo, 13 de novembro de 2022

DEIXA ROLAR

 

Muitas vezes eu fico apreensiva com algum comportamento do qual me arrependo. Nada sério, eu que sou muito exigente comigo, sempre fui, insegurança, confesso. Como acho bom falar o que é e o que não é, dá um alívio. Bem, estamos todos na chuva, vai ter dia em que ficaremos molhados. Nem todo dia estamos bem, felizes da vida e acontece de não reagirmos bem à determinada situação. Também nada escabroso, mas como conhecemos nosso coração, sabemos que poderíamos ter deixado passar, poderíamos ter saído de tal situação sem estresse, poderíamos, mas não deixamos. Paciência. Agora deixa rolar. Se o caso foi grave, um pedido de perdão é remédio. Se o “grave” é mais por conta de nossa “imagem” ferida, então, deixa rolar sim. 

Temos que aprender a viver, ainda que já tenhamos vivido muito mais do que ainda viveremos. Estamos sempre aprendendo e caindo e errando e começando tudo de novo, como uma criança, ainda bem.

Certa vez ouvi esta frase: “Só pisa na bola quem está em campo”. Verdade verdadeiríssima! Ficar na arquibancada pode ser seguro, mas a vida não é segura. Quantas vezes fiz um gol? Humm, poucas, algumas, talvez algumas mais. Quantas vezes pisei na bola? Xiiii, perdi a conta. Certamente meu número de erros foi infinitamente maior do que meu número de acertos. Tenho uma coleção de micos imbatíveis, erros irreparáveis, pecados imperdoáveis, mas eu estava em campo, aí tudo é possível. A pessoa que me disse isso estava desolada quando eu contei talvez a maior pisada de bola que eu dei na vida. Ela simplesmente encolheu os ombros e me disse: “bom, só pisa na bola quem está em campo.” Nunca mais me esqueci disso. É preciso esclarecer que nem sempre estive em campo. Só que depois que experimentei o gramado nunca mais voltei para a arquibancada. Há sempre uma nova partida que se inicia. Se vou pisar na bola só Deus sabe. Provavelmente sim.

Devemos procurar ser verdadeiros, o mais que pudermos. Sábios, muito difícil. Perfeitos, impossível!   

 

JEITO DE POETA

 

Faça chuva, faça sol

Faça guerra, faça paz

Ao poeta tudo dói

Mói e remói

Mexe e remexe

A folha seca que cai

A lágrima que se esvai

A dor da saudade

O coração se enternece

A alma estremece

Ser poeta é sentir demais

Demais, mais e mais

Das inclemências do céu

Ao desencontro cruel

De déu em déu

Sem rumo e ao léu

O poeta só tem paz

A deitar a alma no papel.

 

 

EM BUSCA DA GAIVOTA - Antes e depois

 

O ano, não sei precisar, início dos anos 80, certamente. Foi minha primeira viagem, Buenos Aires, “Bariloche”, Lagos Andinos, subindo o Chile por toda sua extensão, seguindo as Cordilheiras dos Andes. A imagem parecia um maravilhoso bolo de noivas confeitado com suspiros branquinhos. Paramos em Puert Montt, depois Santiago, Vinha Del Mar, Valparaiso, como não me lembrar? Eu, Sandra, Musa e Fernando.

Em Bariloche fizemos um passeio de barco, parando na Isla Victoria e Bosque de Arrayanes. Ao sabor das ondas no lago Nahuel Huapi, tivemos a oportunidade de posar para uma foto individual dando bolachinhas para as ruidosas gaivotas que sobrevoavam o barco. Fiquei um pouco apreensiva com a ave se aproximando, quando senti um puxão na bolacha. Esqueci o fato. Depois de alguns dias apareceu o fotógrafo em nosso hotel para nos passar as fotos. Imagine só: a minha foto foi a única que pegava a gaivota bicando a bolachinha. Todos os outros participantes não tiveram esse carinho. Era a gaivota pra lá e a bolacha pra cá, mas a minha! Que linda!

Sempre quis voltar a Bariloche. Poderia em qualquer tempo, mas não o fiz antes, por que será? Não sei. Guardava imagens vagas do hotel, dos lugares lindos, pudera, quantos anos depois! Só que apenas agora de algum tempo pra cá me acossou um desejo sôfrego de voltar àquela cidade linda. E não é que no momento em que a simpática Carol da CVC me mostrava imagens de hotéis, eu me deparei com o hotel em que ficamos hospedadas há quase quarenta anos! Fui inundada de recordações, sempre comprovando que envelhecer é viver de saudades, emoções e lembranças. Realmente, coincidências à parte, foi o momento exato, preparado pelo destino, vida, chamem lá do que quiserem. O fato é que eu percorri o velho hotel, o saguão onde o fotógrafo nos entregou as fotos, localizei até o quarto onde ficamos.

Só faltava rever a gaivota! Lógico que estou brincando, gente, mas quem sabe foi uma descendente direta daquela! Nada foi fácil, juro! Ventava frio pra caramba! Era uma fotógrafa muito jovem. Diferentemente do fotógrafo daquela época, ela foi logo me dizendo que não tinha bolachas, que eu providenciasse. Subi para o convés, quase desisti. O quê? Desistir o quê? Eu? Nunca! Comprei a bolacha, desci, entrei na fila. Tiritando de frio, fui me deliciando com a proximidade do momento. Até que enfim! Demorou, eu de braço em riste, firme esperando pela gaivota. Ela veio feliz, eu mais ainda! Agora, quatro décadas depois, eu a encarei nos olhos e ela me encarou também. Eu era só felicidade! Como sou romântica! Como mereci este reencontro!

Não fui com o maridão. Se até já fui de lua de mel para Portugal com minha irmã, agora fui para Bariloche de lua de mel com minha prima Lígia! Minha lua de mel com o marido é todo dia, toda hora, em todo o tempo e qualquer lugar.

Vale dizer que a gaivota não era a mesma, tampouco eu. Sou mais eu agora, mais feliz, mais

livre! Não é por nada que a gaivota é um símbolo de magia e liberdade!

CARTA A UM AMIGO

  

Amigo querido, eu sei bem como você se sente, sei como está triste e apreensivo. Conheço a generosidade de seu coração, seu caráter reto, sua humanidade. Não se preocupe tanto, não se espante com essas coisas que acontecem nesses tempos tenebrosos, já sabíamos que viriam tribulações. Não se entristeça seu coração porque tudo passa. Sempre soubemos que esta terra ou esta vida é apenas nossa embarcação. Nossa vida, de fato, é a Pátria Celeste. Vamos navegando em mares tempestuosos, ninguém está seguro, nem aqueles que são poderosos. Nem aqueles que torturam, que matam o corpo e os sonhos, aqueles que roubam, aqueles que proíbem e silenciam as palavras.  Aqueles, querido, não são de Deus, nem agradam a Deus.

Coragem, “Olha! Eis que voltam os filhos que vão partir.”  Você se lembra deste versículo?

São Paulo já dizia que “a figura deste mundo passa”. Tudo passa, tudo passará. Todos eles passarão, mas nós passarinhos, como dizia o poeta Mário Quintana, nós apenas passarinhos. Passarinhos com asas que voam alto, acima de toda a lama que inunda os corações dos maus.

Repasso aqui as palavras de Santo Agostinho: “Como será feliz o Aleluia! Quanta segurança!  Nada de adverso! Onde ninguém será o inimigo, não morre nenhum amigo. Lá, louvores a Deus, aqui louvores a Deus. Mas aqui apreensivos, lá tranquilos. Aqui, de quem vai morrer, lá , dos que hão de viver para sempre. Aqui, na esperança, lá na posse. Aqui, no caminho, lá na Pátria.”

Fique em paz!

Te amo! 

OPHELIA - UMA DELICADEZA PARA O CORAÇÃO

 

Tive o prazer de assistir ao filme “Ophelia”, baseado na peça de Shakespeare “Hamlet” (A tragédia de Hamlet). Fiquei profundamente emocionada com a delicadeza de releitura da obra de Shakespeare contada a partir do ponto de vista de Ophelia. Amei as falas de Ophelia, seus diálogos com o irmão e Hamlet. Como sou romântica! Como mereci um grande amor, e o tive, embora tardasse tanto! Ora, isso não importa, os últimos sempre acabam sendo os primeiros e os últimos anos serão os melhores!

 Há um momento do filme em que Ophelia diz a Hamlet que “sobreviver não basta”. Como gosto dessas filosofias poéticas shakespeareanas! É claro que sobreviver não basta. Há algo maior, muito maior e melhor que não está ao nosso redor, não, está é dentro de nós, nas cercanias de nosso coração e que nos faz viver com plenitude. Se formos depender do que nos acontece à nossa volta para estarmos fortes, firmes e exultantes, como seremos infelizes! Ledo engano! Doce ilusão! Já o que está dentro de nós é intocável e ninguém pode roubar, é nosso tesouro.  

Em outro momento quando Ophelia está conversando com o irmão, ele conta a ela sobre a tarefa de abrir cadáveres para estudar os órgãos que existem no corpo, algo ainda degradante para aquela época. Ophelia se põe a conjeturar sobre o que existe dentro de cada um de nós, não fisicamente, mas falando de sentimentos. E ela diz: “sempre me pergunto em que parte do coração reside o amor!” Lindo! E eu aqui me pergunto em que parte de mim existe essa fonte inesgotável de ternura que a cada dia em que fico mais e mais velha, mais borbulha com tanta profusão! Se me desmanchassem hoje, encontrariam ossos, sangue e ternura em abundância. Ouso repetir o que li em Raul Brandão: “A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada, extraio ternura duma pedra”. Eu também!

Sobreviver não basta não. É preciso dar asas aos sonhos, não recusar as dores, antes agradecer porque Deus sempre transforma o mal em bem e em nossa alma moram anjos. Não podemos passar pelo tropel da vida sem afinar os sentimentos, identificar o que realmente importa. E realmente os últimos anos serão os melhores, os mais bonitos.

Tive uma plantinha que envelheceu, ficou feinha, mas eu teimava em conservá-la comigo, dava-lhe água e palavras gentis, nem sei por que. Num belo dia, percebi que dela brotou uma florzinha azulzinha, um mimo! Logo depois secou e morreu para sempre. Mas fez essa delicadeza antes do fim. Vivo encantada com a beleza de tudo que há, eu me quedo muda em gratidão, extasiada por ter a honra de assistir ao assombroso espetáculo da vida. E o mais assombroso de tudo está no coração.

Divaguei, elucubrei, viajei. Assim que gosto de viver.     

LUA DE MEL


Quando nos casamos, em outubro de 2003, meu marido já era viúvo. Eu solteira, bem mais velha do que costumam casar as moças. A lua de mel? Bem, fomos para Campos do Jordão, passar a primeira noite que de primeira não tinha nada, não foi a primeira nem a segunda. Mas ocorreu que neste final de ano de 2003, minha irmã teve que ir a Portugal e não tendo companhia, fui com ela. A família toda fez caçoada, a Misa se casou com o Motta e saiu de lua de mel com a Agueda para Portugal. Ora, pois, pois, e não foi?

Foi. Meu marido detesta viagens. E nós, irmãs puxa-saco que sempre fomos, fomos juntas a Portugal. Lá conheci minha enteada, que fez questão de comprar a camisa e gravata para o pai que se casaria comigo, agora na igreja em final de dezembro de 2003. Não abri mão de nada. Não mesmo. Quero tudo: vestido de noiva? Bem, não era vestido de noiva, mas de princesa, isso sim, era mesmo, de princesa! Buquê de flores? É claro que sim, que fiz questão de jogar para trás, só não me lembro de quem pegou.

Mas o mais engraçado é que hoje, em 05 de julho de 2019, meu marido me lembra, coisa que não me lembro de jeito nenhum, que o querido tio Iado confidenciou à filha Inácia: que coisa mais esquisita esses tempos modernos, a Misa se casa com o Motta e sai de lua de mel com a irmã? Ri até. Não me lembrava disso.

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

AMOR (VOVÓ VERÔNICA)


 

De repente me pego sentada em minha cama, recostada na cabeceira, com as pernas esticadas para frente. Tenho nas mãos o livro “Obras completas de Santa Teresa de Ávila”. Impossível não fazer a comparação com minha avó Verônica a quem vi tantas vezes sentada em sua cama, nessa mesma posição, lendo “Horas litúrgicas” ou “Ofício das horas” ou alguma coisa assim. É notável como sempre repetimos os papéis.

Lembro-me muito bem do amor e carinho que minha avó sentia por mim, por todos nós. A gente sabe quando é amada e acolhida. Nunca vou me esquecer de quando cheguei de surpresa em sua casa aqui em Itajubá. Eu tinha uns dez anos e vim com uma amiga. Viemos de camionete de seu pai, nos segurando atrás na carroceria. Engolíamos o vento forte e ríamos como sempre riem de tudo as crianças. Quando entrei na casa da vovó, do corredor eu já a avistei. Ela estava sentada na cama com seu livro de oração, tal como eu hoje aqui. Quando me viu, veio ao meu encontro tão feliz!  Mais tarde, já mocinha, aqui em Itajubá, ela me ajudou com as amostras de folhas no herbário, um trabalho de escola. E fomos de planta em planta naquele quintal florido que nem seu era, mas que ela transformou num jardim maravilhoso! Repito: a gente sabe quando é amada e acolhida. E como isso é importante na vida de uma criança que mais tarde haverá de tirar suas conclusões sobre o amor.

Essas memórias são muito preciosas para mim. Viver é poético. Não há como escrever sem carregar junto a bagagem de afetos que acumulamos pela vida. Posso mudar a história ou o tema do que vou escrever, mas o conteúdo é basicamente o mesmo porque a raiz do que escrevo está plantada na minha infância. Gabriel Garcia Marques disse: “um escritor não faz outra coisa além de escrever o mesmo livro, de diferentes formas, a vida inteira.” É vero. É fato. É como aquele indício que os detetives buscam, torcendo para que o suspeito conte outra história. Mas se o suspeito for inocente ele contará sempre uma única história. Poderá modificar as frases, os termos, mas sua verdade estará sempre pronta. Sempre a mesma verdade.

E não é que justamente agora leio em Santa Teresa algo parecido com o que li em Gabriel Garcia Marques? Obedecendo aos superiores para escrever sobre a oração, ela disse que bem pouco iria dizer do que já dito em outras verdades que a haviam mandado escrever, antes temia que pudessem ser quase todas as mesmas, ao pé da letra. Ela sabia falar do que conhecia.

E ouso agora parodiar o autor de “Cem anos de solidão”: Nunca, em nenhuma circunstância, esqueci que, na verdade da minha alma, não sou nem jamais serei ninguém mais do que uma das dez netas da Vovó Verônica. Ela soube passar a mim, sem chamegos e beijos, a sensação exata do que é ser amada.  

 

EM CERTO PONTO DA VIDA

 

 

Refletindo, gente. É claro que já vivi muito e muito mais do que viverei. A vida passou, como diz minha irmã. E a gente só se dá conta de que viveu este tanto quando já viveu, óbvio. Interiormente não me sinto velha nem amadurecida, no sentido de maturidade. Convivo com gente de todas as idades, e me deparo, curiosa com algumas pessoas incrivelmente mais novas do que eu e mais maduras. Sinto uma estranheza com relação a isso. E me pergunto: Misa, quando você vai ser madura? Não sei. Sou do jeito que sou. Assim vou passando os dias como se fossem os últimos ou os primeiros dessa imensa eternidade chamada Vida.”

E aí refletindo, não posso deixar de me lembrar de Roland Barthes, o linguista filósofo, ou filósofo linguista de quem gosto tanto. Ele fala sobre o meio de nossa vida, não significando um ponto aritmético, até porque não sabemos quando vamos morrer. Pela lógica, aritmeticamente falando, já passei há muito do meio de minha vida, mas Barthes fala que “a idade não é progressiva, é mutativa”. Para o filósofo, o meio da vida significaria um momento tardio quando sobrevém o chamado de um novo sentido, o desejo de uma mudança, mutação me parece o termo ideal. Não devemos olhar nossa idade como um rosário de anos, mas em casas de idade, em patamares. Se olharmos a idade como uma sequência de anos, podemos começar uma contagem regressiva, irreversível. E Barthes também lembra que todos nós já nos conhecíamos como seres mortais, mas em certo patamar, de repente, sentimo-nos mortais. Conhecer é bem diferente de sentir.

Mas e daí? O que fazer com a vida para dar sentido a ela? Às vezes sinto a vida como uma eterna repetição, o trabalho que todos saem a fazer todos os dias, mas já estou aposentada, no entanto, o trabalho de casa também é uma repetição. Eu escrevo crônicas e poemas, como gosto disso! Vario os temas, mas o que faz o escritor a não ser escrever o mesmo livro de diferentes formas, a vida inteira, já dizia Gabriel Garcia Marques. A gente sempre volta no mesmo ponto, tal qual o infeliz Sísifo. Não, a vida não pode ser uma monótona repetição.

Não quero viver contando progressivamente meus dias, quero viver de mutações. A mutação a que devemos nos submeter pode ser a inauguração de uma nova etapa. Geralmente é quando nos sobrevém um acontecimento que nos marca. E este seria o meio da vida. Para alguns mais cedo, para outros mais tarde. E Barthes nos diz que este meio da vida é quando se descobre que a morte é real, e já não apenas temível.

É preciso fazer algo, urge ser feliz, urge viver. Já vivi “dois meios da vida”. Sofri mutações. Para quem escreve e para quem lê, a literatura salva. Vou escrever um romance recheado de ternura.

 

A INCRÍVEL DANUZA LEÃO

 

 

Fui surpreendida hoje cedo com a notícia da morte de Danuza Leão. Sempre fui admiradora da modelo, jornalista e escritora, li quase todos seus livros, adorava suas crônicas. Falava tudo sem medo, era brincalhona, mordaz e verdadeira. Foi uma mulher intensa, com relacionamentos intensos, uma mulher independente por natureza, vivendo numa época em que as mulheres eram contidas. Danuza era extrovertida, de uma “alegria escandalosa”, como ela mesma dizia. Tinha grande sucesso social, conheceu e conviveu com gente do cinema internacional, escritores famosos como Simone Beauvoir, pintores, costureiros de Alta-costura, modelos e artistas de toda a espécie.

Danuza Leão foi casada com Samuel Wainer, jornalista fundador do extinto jornal “Última Hora”, com quem teve três filhos. Mais tarde casou-se com Antônio Maria, jornalista e cronista e com o jornalista Renato Machado.  

Escrevia de maneira simples, fácil, como quem está contando um fato na mesa da cozinha, tomando um vinho e comendo um sanduiche. No seu livro “Quase tudo”, ela relata fatos incríveis, lembranças preciosas e experiências fantásticas.

No livro “Quase tudo”, Danuza conta com muita graça e bom humor um episódio de sua vida de mocinha no Rio de Janeiro, numa época em que faltava luz, com hora marcada, e também faltava água: “A cada vez que eu saía do quarto e deixava a luz acesa, ouvia a frase ‘apague essa luz, eu não sou sócio da Light’. Sempre faltava água, vivíamos com a banheira, panelas e baldes cheios. O banho era de cuia, mas quando a água chegava, eu ia correndo para o chuveiro – abria-o por um minuto, para molhar o corpo, fechava, me ensaboava, e abria de novo para tirar a espuma. Até hoje sigo essa rotina e sou incapaz de desperdiçar luz ou água”.

Selecionei algumas frases interessantes ditas por ela:

- Acho que a humanidade se divide em dois tipos de pessoas: as que usam guarda-chuva e as que não usam. (ela não usava)

- Para viver uma paixão é preciso renunciar à própria vida.

- Pensar muito e raciocinar muito podem impedir, às vezes, que a vida aconteça.

- A vida me deu tudo o que poderia dar, de bom e de ruim. Nada me foi poupado: ela me foi completa nos dois sentidos.

- Não sei se não tenho personalidade alguma ou se tenho muitas, tal a minha capacidade de me virar pelo avesso.

- Aprendi que a vida pode ser boa sem muito dinheiro.

- Descobri que sou mesmo uma pessoa solitária.

Essa era Danuza, modelo e jornalista, personalidade marcante da cultura carioca do século XX. Como modelo, foi a primeira brasileira a desfilar no exterior.

Valeu Danuza!     

CARTA A GRACILIANO RAMOS


Participei de um concurso e fui selecionada entre os finalistas. Ocorre que não percebi no regulamento que só poderiam participar os candidatos que não tivessem livros publicados. Fui desclassificada, muito justo. O tema era escrever uma carta para um escritor famoso, vivo ou falecido, que fosse o autor de uma obra que nos tivesse emocionado de tal forma que passasse a ser um de nossos livros prediletos. Aqui vai minha carta:

Quando li seu livro SÃO BERNARDO, senti minha sensibilidade subir às alturas, tocada no mais profundo do meu ser. Fui lançada acima dos ares, dos mares, vislumbrei toda a Terra, todos os mares e montanhas. Entrei dentro dos mais recônditos cantos do meu interior, fisicamente e espiritualmente, conheci um tanto de mim que até então desconhecia. Fiquei mexida, descobri que é possível um escritor transformar a vida de uma pessoa escrevendo um livro.

Lendo SÃO BERNARDO, senti que eu era um pouco o protagonista PAULO HONÓRIO e um pouco os que rejeitaram a empreitada de publicar um livro autêntico, cheio de verdades que ninguém suporta. Entendi que o livro de nossa vida contada exatamente como foi e como é, é difícil, pois uma coisa é viver e outra é ler o que se viveu. Ninguém suporta as verdades incontestáveis, não, ninguém suporta.

Entendi que se uma pessoa escolheu escrever, ela já não poderá ser escondida. Não há como escrever escolhendo palavras porque as palavras, as frases, os parágrafos e toda a história já estão dentro do autor, já correm em suas veias, em seu respirar, em suas lágrimas, em seus sonhos, em suas muitas tristezas e poucas alegrias. Um autor sempre contará a história de sua vida, de um jeito ou de outro, senão ela toda, talvez pedaços. Um autor sempre escolherá personagens para fazer seu papel, porém sempre será ele, o autor.

Olha, eu amei o PAULO HONÓRIO. Amei sua história triste e real. Amei suas impossibilidades, amei sua ternura para sempre massacrada, amei sua simploriedade, sua coragem, sua solidão, seu ser do jeito que era, do jeito que o fizeram, do jeito que a vida o tratou e o obrigou a ser. Havia ternura dentro dele, ternura que fora destruída, mas que ainda assim permanecia tentando escapar pelos poros. A brutalidade encobria a ternura. E ele bem que tentou. Ao fim, PAULO HONÓRIO conclui que é “um homem incapaz de imaginação, e as coisas boas que mencionara vinham destacadas, nunca se juntando para formar um ser completo.”  

“Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo. E não estou habituado a justificar-me, está ouvindo?” Caro Graciliano, essa frase de Paulo Honório fez-me lembrar de meu pai, que era um homem pacato, bom, educado ao extremo. Certa vez, ele perdeu as estribeiras quando instigado e se mostrou como era por dentro, pôs para fora o verdadeiro, o escondido, o que fora ensinado a ser assim para agradar a todos. Até que enfim uma rebeldia se mostrava. E ele disse sua verdade, “fiz porque fiz e pronto”.

Agora, Graciliano, entendo suas palavras quando disse em uma carta para sua irmã que escrever é sangue, é carne, e que além disso, não há nada. E mais ainda, que nossas personagens são pedaços de nós mesmos, e que só podemos expor o que somos. É a grande verdade.  

Obrigada Graciliano por escrever um livro tão humano, tão verdadeiro porque não é uma história de bandidos e mocinhos, é uma história de gente, é uma história de vida real, de vida como ela é, para uns, fácil, para outros muito difícil. No final todos se igualam mesmo.

Obrigada pela sinceridade de PAULO HONÓRIO, que ao ter a primeira discussão com Madalena, oito dias depois do casamento, confessa para si mesmo: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste”. E em outra passagem: “Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar”.

Obrigada pela beleza dessas confissões, pela minha sensibilidade exacerbada ser plenamente satisfeita por este livro. Assim é que os livros deveriam ser. Mais do que a psicanálise, os livros deveriam ser capazes de transformar a vida da gente.

A você, GRACILIANO RAMOS, minha gratidão infinita.  

DIVAGAÇÕES NA CADEIRA DO BARBEIRO


 

Já não frequento mais salões de cabeleireiro há um bom tempo. Vinha eu apressadamente   no último verão, me consumindo de cansaço e suor, quando dei com minha imagem numa porta espelhada: suspirei aborrecida com a imagem de meus cabelos. Aquela franja longa e pesada já estava me dando nos nervos. Qualquer hora corto tudo curtinho, pensei comigo. Foi aí que passei em frente a um barbeiro, barbeiro mesmo de cortar cabelos e bigodes de homens. É hoje! Entrei decidida e perguntei ao simpático rapaz: você cortaria meu cabelo? Ele titubeou, quis dizer que não, mas acabou assentindo, talvez pelo desespero estampado em meu semblante. Adorei. Virei freguesa e minha irmã também.

Pois bem, da última vez viajei no pensamento enquanto “Maicon” ia cortando mechas brancas que logo cobriram o chão. Eu trazia o celular à mão como todo ser vivente moderno e logo mostrei pra ele uma foto antiga de meu cabelo que estava do jeito que eu mais gostava e pedi meio sem jeito se ele podia fazer igual. Mas o problema é que o cabelo nunca sai igual, talvez parecido, igual não. Fiquei pensando por que é que não. Tá bom, um profissional é diferente de outro, cada um tem um jeito de cortar, certo, mas você pode ir no mesmo cabeleireiro várias vezes e o cabelo vai sair diferente de cada vez. Não adianta levar fotos, afinal, nós nunca somos os mesmos seres de ontem. 

Talvez nossa expectativa quanto ao cabelo seja mais profunda do que possamos imaginar. Desejamos algo que não se limita ao exterior e às vezes nem sabemos realmente o que é. Simplesmente projetamos no cabelo este desejo que misteriosamente nos acomete. Sentar na cadeira de um barbeiro ou de um cabeleireiro traz um simbólico de mudança. Também há que considerar que não somos mais as mesmas, mudamos a cada dia, a cada hora, a cada estação. O branco já não é tão branco, os fios podem ter engrossado ou afinado um pouco, aquela franja traz lembranças de anos atrás e inconscientemente me cobra sentimentos diferentes do que tenho agora.

Será que não viajei demais? Por que tenho sempre que trazer tantas elucubrações malucas? O cabelo dificilmente sai igual, pronto. Ponto pacífico. Sou complicada assim mesmo, e à medida que as mechas vão voando para o chão, meu olhar se queda perdido em pensamentos e lembranças difusas. A porta do inconsciente se abre e eu relaxo deixando as tensões se dissiparem. Tudo bem. Enquanto eu me limitar a querer cabelos iguais aos que outrora tive, nada demais. O pior será quando eu carregar fotos de artistas e cantoras novinhas para meu barbeiro copiar. Isso não. Aí o caso será mais sério.

De qualquer maneira agradeço aqui a gentileza de Maicon Douglas, um perfeito Edward Mãos de Tesoura, ao cortar habilidosamente minhas madeixas me permitindo viajar em divagações mil. Freud que o diga!           

 

 

ELUCUBRAÇÕES NO PROVADOR DA JOKA

 

Hoje estive na Joka procurando um presentinho para minha cunhada que faz aniversário no domingo, dia das eleições. Não encontrei nada que me aprouvesse, aí acabei escolhendo duas calcinhas para mim, belezinhas. Só isso que a senhora procura? Perguntou a gentil atendente. É só. Mas ao me dirigir para o caixa, voltei, sucumbindo àquele famigerado desejo de comprar. Você teria alguma camisa na promoção? Daquela marca carésima que nunca compro, a “Dudalina”? Ah temos sim, e lá foi a moça buscar. Eu fui direto nos tons pastel que sempre me atraem, embora me aconselhem tons mais fortes. Uma camisa azul clarinha e uma rosa clarinha. Um mimo! Algodão egípcio, uma textura dessas que parecem orvalho caindo do céu. Decido experimentar. E lá fui para o provador, vesti a azul. Fiquei encantada. Meu olhar ficou perdido e viajei no tempo, como sempre.

Tudo isso que escrevo aqui, falei para meu marido na hora do almoço. Ele escutou pacientemente, mas como conheço sua dose de paciência, tentei resumir. Bem, disse eu, lá no provador eu fui remetida ao passado, à Aruba, na primeira viagem que fiz com a Sandra. Na semana da viagem chegaram nossos cartões de crédito, quase que os primeiros da agência. Em Aruba, tudo maravilhoso! De manhã no hotel, com as diversas piscinas rodeadas de árvores e plantas ornamentais, amostra dos primeiros resorts daquela época. Lembro-me até de que numa manhã na piscina surgiu um lagarto imenso, coloridíssimo como se tivesse sido pintado, uma beleza de bicho que foi perseguido pelas máquinas fotográficas dos americanos. Pela tarde íamos para o centro de compras, ah que maravilha! A rua dos perfumes, dos quimonos japoneses tipo peignoir, pulseiras indianas e outras lindezas. Para maior liberdade, nós nos separávamos e marcávamos encontro mais tarde numa cafeteria, onde mostrávamos o que tínhamos comprado e tomávamos um delicioso café com creme e saboreávamos tortas mil.

Tive uma infância simples, modesta. Lembro-me de minha mãe que fazia nossos vestidos. Sapatos novos? Ah, uma vez por ano. Mas já alcançávamos os anos 80, e o bendito cartão de crédito virou nossa cabeça. Já tínhamos nosso emprego, nossa independência, e viajamos um tanto, gastamos, mas nada exorbitante porque ricas é que nunca fomos. Agora, para sermos curadas do consumismo, foi e é difícil. Já melhorei muuuito, mas de repente tenho uma recaída, meus olhos brilham com as vitrines e coisas bonitas. Tudo isso eu me lembrava e refletia no provador, lógico que tudo rapidamente como é o pensamento e são as lembranças. A vendedora me esperava lá fora.

Meu marido começou a ficar impaciente: afinal, comprou as camisas?

Calma! Duas camisas eram um exagero! Tá bom, então uma só, a azul ou a rosa? Não, nem uma. Lembrei-me da pobreza dos santos, da freira que ia se mudar de casa em sua Ordem e levava tudo o que ela possuía dentro de uma sacola de pano, o que fez meus olhos marejarem, lembrei-me das pessoas que economizam para pagar um exame particular porque não dá para esperar pelo SUS ou as muitas e muitas pessoas que têm que pagar um aluguel e o dinheiro nunca é suficiente. Lembrei-me do pessoal vendendo balas pelas esquinas, dos pobres de quem não podemos nem devemos desviar os olhos.

E depois vem aquela odiosa pergunta: eu preciso disso? Não, não preciso, na verdade precisar mesmo, preciso de muito pouco, mas tenho tanto! É que as camisas eram tão lindas! A beleza também faz falta! Lembrei-me de Santa Teresa, falando sobre a beleza da pobreza, aquela pobreza que é abraçada só por Deus! Não comprei, prometi para mim mesma: Misa, deixa para a semana que vem. Se ainda estiverem na loja, você compra só uma. Se não estiverem, paciência. Oferece.

De tudo, ficou o comentário engraçado de meu marido: só não entendi o que o lagarto teve a ver com as camisas! Não sei se voltarei à Joca para comprar, todavia, sei que “o justo cai sete vezes ao dia”!  Mas que a azulzinha ficou linda em mim, isso ficou sim!

 

MINHA IDENTIDADE NÃO É DE TODO UMA VERDADE

 

É sempre uma luta árdua o despojamento de si mesmo, vencer os vícios, as más inclinações, o amor às honrarias. Sabemos que nossas inclinações pendem muito mais para o mal do que para o bem. Luto contra muitas más inclinações, preguiça, julgamentos, vaidades. Ah as vaidades! Sou vaidosa, reconheço, dou a mão à palmatória. Tento me cuidar, estar bem apresentada e tal, fazendo o que posso. Não faço loucuras nem gasto horrores até porque minha renda não está com essa bola toda.

Vamos aos fatos. Minha identidade já estava com prazo vencido, passando de dez anos. Naquela minha foto, eu ainda estava com os cabelos tingidos e minha tez logicamente estava mais jovem, nada mais natural, o tempo passa, a gente envelhece. Então, fui com os documentos necessários ao estabelecimento da Prefeitura que agora trata disso. A mocinha, gentilíssima, foi processando tudo lá até que chegou o momento da foto. Ela me instruiu, fiquei olhando para a câmera e logo apareceu minha cara numa tela gigante. Levei um choque! A gente envelhece, eu sei, mas lá naquela tela eu estava escandalosamente velha, parecia ter 135 anos! Brincadeira, mas o fato é que fiquei chocada. Não, eu não estou assim, não quero esta foto velhíssima na minha identidade. Não querooo!

Mocinha, quantas tentativas a gente pode fazer? Ela sorriu compreensiva e disse: quantas a senhora quiser, fique tranquila. Pois bem, tentamos umas três vezes e cada foto parecia uma pior que a outra. Até que me dei por vencida, e desvalida e deprimida. É, não tem jeito de melhorar. Fiquemos com esta última. Fazer o quê? Idade é idade. A moça foi finalizando e quando já estava tudo praticamente pronto, fui acometida por um férreo ímpeto e tal qual um náufrago que avista uma taboa no vasto oceano ou ainda um condenado na forca que implora por um último perdão do rei, pedi uma última vez: desculpe insistir, mas será que ainda dá para uma última tentativa de foto melhor? Ou quem sabe eu posso fazer um selfie, meus selfies são uma belezinha, quer ver? Claro que foi brincadeira, mas como costuma dizer meu marido sobre um ditado de sua velha sogra portuguesa: “é brincando que se dizem as grandes verdades.” A moça colocou um pouco de dificuldade, disse que teríamos que recomeçar tudo, mas enfim, assentiu. Ficou a quarta foto, nem pior nem melhor que as outras três, porém, serviu para eu ir me acostumando com a foto real, nua e crua. Afinal, a gente se acostuma com tudo na vida.

Bem, como eu disse em um poema, a carteira de identidade não é de todo uma verdade. Lá está meu nome, de meu pai, minha mãe, o dia, mês e ano que nasci. Mas não fala das dores que sofri, das alegrias que vivi. Na identidade, não consta aquela saudade daquela cidade que eu perdi. Lá não estão minhas lágrimas, meus sonhos, minha fala, minhas lembranças, minha história que escrevo todos os dias. Não, minha identidade não é de todo uma verdade. É apenas um papel, um simulacro do que eu sou. A informação é correta, mas não diz que sou poeta. Falta quase tudo nesta triste gravura. Falta ternura.

A identidade não é de todo uma verdade, só tem duas verdades verdadeiríssimas, a data de nascimento que não mente e a foto que não a deixa mentir. Tudo isso realmente aconteceu, não falo mentira, só costuro e bordo um pouco, querendo dizer que exagero ao escrever porque quem escreve aumenta um tanto e também brinco muito para a vida não ficar tão difícil. 

 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A CASA

 

 

Um dia desses atrás meu marido foi supervisionar o trator que iria aplainar o terreno onde será nossa nova casa. Nem sei se aplainar é o termo correto, de construções nada entendo, quero dizer, construções de tijolos, cimentos, telhas e outros itens assim. Construo textos e poemas, mas isso é outra coisa. O trator trabalhou um dia inteiro e no dia seguinte choveu. E no outro dia seguinte também. Ele voltou com as botinas enlameadas e eu disse: Bem, deixe as botinas aí fora como no tempo brabo da pandemia, nem pensar em trazer lama para dentro. Enfim, enquanto lavava a louça, pensei um tanto apreensiva. Uma nova casa, um novo lugar, logo eu que sou tão conservadora. Mas a casa está dentro da gente como o amor está dentro da gente e como a felicidade também está. A casa é toda a gente.

Vou cultivando sonhos e desejos. Vou querer floreiras nas janelas, coisas que não se pode ter em apartamento. Também vou querer um balanço desses antigos na varanda e uma pequena lareira, sempre quis uma lareira e nunca é tarde para se ter uma. Também uma nova estante de parede inteira para meus livros amigos e uma poltrona dessas confortáveis para ler. Nossos quadros irão para novas paredes, e quando eu os olhar, pensarei em todos os lugares onde já morei. Não sou tão apegada assim, tenho quadros novos, mas gosto dos antigos, eles fazem parte de lembranças inesquecíveis. Já sei que a casa construída não será grande, o terreno é pequeno, mas não tão pequeno que não comporte uma árvore no quintal, canteiros de tomatinhos, salsinhas, cebolinhas, o pé de louro e plantas, muitas plantas e flores de infinitas cores, afinal teremos terra no chão e não apenas em vasos como é aqui. Porém tenho que admitir que sentirei falta de onde moramos há tantos anos. Tanta vida vivida, tantas lembranças, mas só gratidão por tudo. Afinal, ser peregrino e não se sentir dono de nada é o segredo. Levamos a esperança dentro do coração.

Como podem ver, já viajei anos-luz nos planos para a nova casa. É preciso coragem para mudar depois de mais velhos, mas a vida é mudança. Serei corajosa como fui quando deixei a casa de meus pais e não foi para casar, foi para viver sozinha, alçar voos intrépidos como a corajosa Amélia Earheart, ou como a corajosa Elsa Wolcott de “Os quatro ventos”. “Seja corajosa, lute sempre para ser feliz”. E a gente tem mesmo que ser porque a vida exige assim. E depois, para quem nasceu com asas e ânsias, não é bom ficar sempre no mesmo lugar.

Avante! A nova casa, embora ainda na planta, está a caminho! A vida é constr

INAUGURAR UMA VIDA NOVA (Seja mais forte que suas desculpas)


Esta frase, “seja mais forte que suas desculpas”, está escrita e pintada na parede da Academia onde tenho ido praticar exercícios para fortalecer os músculos. De cara isso me chamou a atenção porque minhas desculpas são inexoravelmente mais fortes do que eu. Fiz o que pude para evitar esses exercícios, mesmo sabendo de sua importância, é claro. Arranjei todo tipo de desculpas para os médicos, para os outros e para mim mesma. Mas tive que capitular, ou ficaria me entupindo de torsilax e dorflex para todo o sempre. Ah isso eu também não queria.

Era necessário que eu tomasse uma decisão pra valer e cultivasse uma determinação, pois sem determinação não vamos chegar a lugar nenhum em coisa alguma. Tudo bem, vamos lá. Mas não é fácil. Significa acrescentar um componente novo na vida habitual. É uma mudança. É uma vida nova. Lembrei-me de uma frase que li no conto “O galo”, de Paulo Mendes Campos: “inaugurar uma vida nova é muito difícil”. É vencer a si próprio. É batalha!

Até que enfim tomei a decisão e fui para os exercícios. Suportei todos os obstáculos, tanto os físicos como os emocionais e dificuldades sociais. Não conhecia ninguém, eu me apresentei e fingi que eu não era tímida. As mulheres gentis me acolheram, mas todo início é difícil, há que enfrentar. Grandes coisas, como a gente costumava dizer! Em dois tempos eu já aprendia onde pegar os pesinhos, caneleiras, barras e outros trecos para os exercícios. Em dois tempos eu já não me sentia tão estranha no ninho. A gente pode tudo ou quase tudo. Basta uma decisão, uma determinação.

Vou lá três vezes por semana, subo me arrastando por seis andares e enfrento. É necessário. Enfrento dificuldades sim, como a coordenação dos movimentos. Sempre evitei aulas de dança sincronizada porque invariavelmente vou para o lado oposto ao da turma e sinto vergonha. Mas a gente tem que vencer essas bobices, não ligar, pronto. Que é que tem a gente ser descoordenada? ninguém é perfeito. O importante é ir. E olhe que em poucos dias minha dor arrefeceu.  

Os exercícios são pesados, pelo menos para mim, embora as meninas e mulheres de terceira ou melhor idade sempre me digam que também tiveram que se acostumar. Vamos ver. Meus ossos, músculos, tendões e ligamentos estão doloridos, revoltados por terem sido provocados, acordados de um sono milenar.

Ainda não perdi a mania de olhar o relógio da parede para saber se falta pouco para acabar. Mas quando toca a música do filme “Flashdance” da década de 80, eu viajo, nem sinto tanta dificuldade. Simplesmente me sinto a própria moça protagonista do filme e sonho que estou realizando aqueles malabarismos próprios de um corpo jovem. É incrível como a música faz milagres! Na mente e na alma eu posso tudo! Sou uma bailarina e ginasta perfeita!

Comprovei com os exercícios que tenho sim um lado diferente, como todo mundo tem. Um lado é mais fácil ou difícil do que o outro, definitivamente. Também comprovei que o segredo da vida é um eterno adaptar-se, Yeats que o diga: “O segredo da sobrevivência é abraçar a mudança e se adaptar”. Também digo que é incrível como a adaptação chega para nós de maneira natural e inevitável em todas as circunstâncias da vida. Lógico que a gente se debate e sofre, mas a gente se adapta.  

Por fim, faço mais uma observação: quem sabe se ao vencer a si mesmo fazendo exercícios físicos, ou seja, melhorando o corpo e suas engrenagens, de repente, nos vejamos mais aptos para vencer os vícios espirituais, como a preguiça, o fastio, o desânimo. Somos seres complexos, compostos de corpo, alma, mente, espírito. Eles estão ligados até que a vida termine. Melhorando o corpo, ou seja, a parte palpável, a que pode ser vista e sentida com suas dificuldades e dores, talvez possamos também melhorar a mente e o espírito.   

De qualquer forma, é necessário um gesto, um passo, uma decisão e depois uma determinação. Ninguém pode fazer isso por nós. Acordar um corpo adormecido é difícil tal como inaugurar uma vida nova, mas é possível, ainda que seja com suor e lágrimas. E sempre é.  

 

  

 

 

MAS ESTAVA CHOVENDO

  

            Há anos e anos meu sobrinho, ainda bem novo, entre adolescente e jovem, morou comigo. Eu nunca fui mãe, portanto, sem prática alguma na educação de crianças, quanto mais de jovens. Bem, imagino que as mães só muito mais tarde terão aprendido o que gostariam de ter sabido na época. É da vida. Por esse tempo, um amigo me viu tirando o carro para levar meu sobrinho para a escola que era bem perto de casa. E numa oportunidade, ele me admoestou com delicadeza, porém sem dispensar alguns laivos de sarcasmo: “seu sobrinho já é grandinho, ele pode ir sozinho para a escola”, ao que eu redargui: “mas estava chovendo!” Na verdade, quando estava muito frio eu também levava. Na verdade verdadeira mesmo, eu gostaria de levar todos os dias, por toda a vida, mesmo sabendo que não devia. 

            Meu amigo ficou pensativo, refletindo como quem viaja longe e voltou ao assunto. Disse ele: “como as mulheres são diferentes dos homens, você não é mãe, mas seu coração é de mãe porque você é mulher”. O que ele quis dizer é que as mulheres são protetoras, cuidadoras por excelência. Acho lindo isso, lindo, lindo as mulheres serem protetoras e cuidadoras. Tomara que nenhuma feminista esteja lendo o que escrevo. E ele prosseguiu: “se o pai estivesse presente, certamente diria, deixa o moleque ir na chuva pra aprender as dificuldades da vida!” Tá certo! Cada macaco no seu galho. Como os homens são diferentes das mulheres! E como eu gosto de ser mulher e ter coração de mãe.

Assisti a um episódio de um seriado bobinho qualquer que tratava de seres de outras galáxias que ocuparam a terra. E a mãe da outra galáxia acabava ter vários filhos, algo assim como uma ninhada como os cachorrinhos e gatinhos costumam ter. Entre os “filhotes” havia um que não se mexia, que não respirava. O pai percebeu, então ele pegou o bebê e disse à mulher que ele estava morto e se apressou a levá-lo para sepultar, ao que a mãe já chorosa, pediu para segurar um pouco o filhinho. Aconteceu que ela começou a ninar o bebê já morto, apertou-o contra o peito, afagando-o e cantando entre lágrimas uma música suave. De repente o bebê voltou à vida, a princípio num chorinho fraquinho, que depois foi se fortalecendo, e ele começou a brandir os bracinhos. Mãe é mãe, seja da terra ou de outra galáxia. Amor de mãe cura e ressuscita.  

 É verdade que não se ouve mais mãe dizer para os filhos: você volta já pra casa senão eu vou contar pro seu pai. E quantas vezes, quantas e quantas mães esconderam coisas dos maridos para proteger os filhos! As mães são e sempre serão diferentes dos pais, ainda que a psicologia moderna tenha incorporado novos olhares sobre essa questão.

            Bem, eu aqui encantada com meu coração materno!             Então, mesmo não tendo tido filhos eu sou mãe em potencial. Digito isso emocionada como se estivesse descobrindo esta verdade que eu sempre soube, alegre como se me trouxessem agora um bebê para eu acalentar no meu colo. Ser superprotetora é comigo mesmo! E se alguém disser alguma coisa, eu digo: levei sim porque estava chovendo!        

sexta-feira, 3 de junho de 2022

SOBRE PRÍNCIPES, SAPOS, BRUXAS E CURA

 

Há treze anos atrás, numa aula de Literatura/Psicanálise, a professora perguntou: alguém poderia me dar uma definição de Psicanálise? Ninguém falou nada. Bem, eu que já havia aprendido a ser ousada, respondi: vou passar para vocês a definição de Rubem Alves, que  é lindamente significativa, “se tal advérbio vai bem com tal adjetivo”, frase de Machado de Assis no livro “Memorial de Aires” que tomo emprestado aqui para meu texto.

Mas antes preciso contextualizar essa definição de Rubem Alves porque a origem de tudo é muito importante. Fiz quase dez anos de Psicanálise que virou e revirou minha vida. Eu já escrevia uma coisinha aqui, outra coisinha ali, pois daí por diante escrevi muito mais e continuo escrevendo. Óbvio que considero a Psicanálise uma sofrida e bela viagem que todos deveriam fazer. Então, lá bem no início de todo o processo, meu psicanalista queria saber o que eu estava lendo. Eu? Nada há muitos anos. Lia sim e muito contas de luz e água que recebia no caixa. Porém, fui salva pelos livros que li na adolescência, alguns clássicos como “O homem que ri” de Victor Hugo e “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. Nunca me esqueci. Bem, meu psicanalista me emprestou um livro de crônicas de Rubem Alves: “O Retorno E Terno”. Eu li como uma responsabilidade tal que até decorei as crônicas. Uma delas calou fundo: “Sobre Príncipes e Sapos”.

Rubem Alves dá uma linda definição de Psicanálise, contando uma história. Mais ou menos assim: Um príncipe cantava maravilhosamente bem e encantava todos que ouviam. Uma bruxa muito má (bruxas existem sim) queria cantar como ele e sentiu tanta inveja que lançou sobre o príncipe um feitiço terrível. Ela o transformou num sapo e ele, pobrezinho, teve que ir morar com outros sapos e rãs. Ele era um sapo igualzinho aos outros, menos numa coisa: ele continuava a cantar lindamente, mas os outros sapos não gostaram daquilo porque eles só sabiam coaxar e determinaram – quem mora com rãs e sapos têm que coaxar como rãs e sapos. O príncipe foi obrigado a silenciar e aprender a coaxar. E com o passar do tempo, ele se esqueceu dos cantos e sua voz apenas coaxava. Na verdade, ele não se esqueceu não. Quando dormia ele sonhava com a antiga melodia que estava escondida e proibida dentro dele. Mas quando acordava, tudo não passava de um sonho confuso. Agora, vejam que linda a definição de Psicanálise segundo Rubem Alves: “Psicanálise é uma luta para quebrar o feitiço da palavra má que nos fez adormecer e esquecer a melodia bela”. É o reconstituir de uma canção que só nos chega em fragmentos desconexos.

E ele cita Fernando Pessoa: “... E a melodia que não havia, se agora a lembro, faz-me chorar”. Rubem Alves ainda diz: “Será isso? Em nós mora um outro? ...” Agora sou eu que digo: em mim moram muitas outras, é uma loucura só. Mas gente, são outras numa só. Louca eu? Sim, poeta e louca.

Conclusão: parei de coaxar, apropriei-me de meu canto tão belo enquanto encanto! Por isso a Psicanálise é importante sim porque cada alma vem com uma melodia belíssima, só que desafortunadamente esta melodia é logo esquecida e sufocada pelo impacto das palavras más com que somos massacrados dia após dia. Não sei o seu caso, mas quanto a mim, mandei a bruxa de volta pra floresta.             

NOSSOS LUTOS


A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adiche é realmente uma escritora fantástica. Certa vez uma prima compartilhou comigo que desejava ficar lendo apenas os clássicos porque não teria erro. Não é incomum a gente começar a ler livros atuais e parar. Na época concordei com ela, mas há autores e livros muitos muito bons na atualidade, e Chimamanda é excepcional. Já li “Americanah”, um “best seller”, e agora leio “Notas sobre o luto”, que me comove imensamente porque me faz lembrar como nunca da morte de meu pai e de forma contundente. Reflito como nossa vida sempre é e será uma coleção de frases e atitudes de nossos pais. Volta e meia estamos falando: “como dizia o papai” ou “como dizia a mamãe”.

Chimamanda perdeu seu pai em junho de 2020 durante a pandemia de Covid-19 que mantinha a família distante, e ela derrama sua imensa dor em “Notas sobre o Luto”. Lembrei-me da Lia Luft em “O lado fatal” e da Joan Didion em “O ano do pensamento mágico”, duas autoras que de modo diferente abordaram a questão da perda e do luto. Mas Chimamanda vai fundo, toca o meu coração de um jeito especial, sinto suas palavras sendo escritas para mim. Perdi meu pai há dezoito anos, ano em que me casei. Sempre me lembro do dia seguinte ao velório e sepultamento, quando uma conhecida percebeu minhas olheiras e olhos inchados. Ela me perguntou se algo havia acontecido e eu disse: Meu pai morreu e eu vou me casar daqui a poucos meses, informação totalmente descabida e desnecessária, que jorrou de minhas entranhas sem que eu pudesse controlar, talvez como uma espécie de compensação pela perda. Isso apenas me mostrou como ficamos frágeis e descontrolados quando morre alguém que amamos. Não importa o quanto a gente possa parecer que está calma e controlada, simplesmente não estamos. Estamos fragilizados, vulneráveis. O luto é isso.

Assim como Chimamanda, eu tinha muita certeza de que meu pai chegaria aos noventa anos e muito mais. Mas lá se foi ele embora com oitenta e quatro. Um homem bom, decente, honrado e extremamente puro. Como nós o amávamos!        

Os lutos são diferentes como as pessoas são diferentes e também os relacionamentos. Eu amava meu pai do jeito que ele era, nunca desejei que ele fosse diferente. Nunca seus defeitos ou suas fragilidades foram empecilho para o amor entre nós. Me vêm à mente cenas e palavras trocadas antes e depois de sua morte. Me vem a lembrança de minha irmã inconsolável à mesa da casa de meus pais, dizendo e repetindo: a melhor pessoa de todos nós, a melhor pessoa de nossas vidas foi embora, nunca mais! Nunca mais. Este estar junto logo após o sepultamento é muito importante porque ali, naquele momento, vamos compartilhando afetos, consolos, entre lágrimas e frases entrecortadas, entre risos tristes quando alguém se lembra de algum fato engraçado sobre a pessoa. Enfim, a gente ri e a gente chora junto. O luto é isso. Ele pode durar muito ou pouco, vai se reconfigurando até que fica uma lembrança terna, mas as lágrimas sempre vêm nos visitar.   

Eu sempre me pego pensando nele quando repito algum gesto seu. Explico, meu pai era ansioso, sempre querendo cumprir tudo de uma vez. Também sou assim. E quando cumpro alguma tarefa, aí digo para mim, isso Misa, muito bem, agora é só descansar, está tudo certo. Aí a outra de mim me alerta: Não, Misa, não está tudo certo. A vida é incerta, a vida é um mar de incertezas. É bela, é preciosa, mas é incerta e inexata. Hoje estamos aqui, todos estão bem. Amanhã? Não sabemos, ninguém sabe. Portanto, por hoje, se suas costas estão doendo, vai deitar. Deixa a limpeza para outro dia, para depois.

A inexatidão da vida e a incerteza regem o mundo e permeiam nossas vidas, mas eu falo isso sem pessimismo, nem tristeza, nem morbidez. Falo com naturalidade, pensando sempre no amor de Deus e na paz de Jesus. Vivemos de lembranças, vivemos de ternura. Outro dia eu me lembrei de quando vi daqui de minha janela meu pai ainda muito bem, já idoso, mas firme, caminhando ao longe. Nunca aceitou usar tênis nem roupas esportivas, mas fazia sua caminhada. Eu fechei os olhos e abri de novo, esperando vê-lo como naquele dia, de bonezinho.

Minha irmã também me contou um sonho que teve com ele. Foi em Pedralva, na primeira casa onde moramos. Meu pai descia a rua da casa do Chinho vindo de lá de cima. Minha irmã ficou esperando para encontrá-lo, pois o natural seria que ele se dirigisse para nossa casa. Surpresa, ela viu que ele desceu reto, sem sequer olhar para ela ou para sua própria casa. Ela entendeu que ele não morava mais nas casas terrenas, nem mesmo em sonhos.  

FELIZ ANIVERSÁRIO

 FELIZ ANIVERSÁRIO!

Misa Ferreira

 

Sempre fiquei encantada com os aniversários. Este fascínio vem desde menina e procuro conservar este encantamento. Não ganhávamos festas, mas sempre teve um presentinho e um abraço de mãe e pai. Eu acordava e me lembrava de que era o aniversário: pronto, era o que bastava pra me dar toda ao dia, feliz como uma princesa ou como uma criança tem o direito de ser. Quando a gente é criança tem a mordomia de não precisar lutar para ser feliz, temos aqueles que fazem das tripas o coração ajeitando a vida daqui e dali para preservar nossa felicidade. Contudo, eu sei que tem crianças que sofrem, desde o mínimo sofrimento até atrocidades inimagináveis. Eu sei.

Bom, mas como estava dizendo, era o dia mais importante da minha vida. E segui pela minha vida afora sem perder o encantamento, também já disse isso. É claro que houve aniversários tristes, pois há dias de tristezas e luto e a tristeza nunca tarda para fazer sua ronda. Uma conhecida amiga perdeu seu pai num acidente no dia de seu aniversário. Nunca vou me esquecer de quando meu pai estava internado e muito doente. Era meu aniversário e meu celular tocava a todo instante com minhas primas sem jeito de me cumprimentar, porém querendo me consolar. Eu não podia articular uma palavra que fosse porque temia desabar num choro que não ia acabar nunca mais. Sim, há dias alegres e dias tristes para todas as pessoas, pois Deus faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. E também derrama tristeza sobre os dias comuns e dias de aniversário.

Houve muitos aniversários alegres, isso houve sim, verdade seja dita e justiça seja feita. Quando minhas amigas e eu fizemos cinquenta anos, demos uma big festa, com bolo, velinhas e ponche. Fizemos uma festa badalada, enfeitamos meu espaço na cobertura, colocamos mesinhas e cadeiras, bebemos e dançamos. Dançamos de tudo, houve até hully gully, quando uma amiga encabeçava a dança e todas seguiam. Só risadaria. Uma amiga de minhas amigas fez até versinhos de cordel:

A história que vou narrar

Em versinhos de cordel

É de três grandes amigas

Tânia, Misa e Izabel

A Bel nasceu em abril

Tânia e Misa, um barato!

Em maio e no mesmo dia

São do mesmo decanato

E por aí vai. Foi uma festa memorável! Um dia de aniversário inesquecível! Pretendemos fazer outra para o próximo ano. Estão todos convidados!

Mas eis que não faz muito tempo ouvi uma palestra do querido e saudoso Dom Henrique Soares em que ele pergunta se sabemos qual é o dia mais importante de nossa vida. Bem, muitas pessoas responderam e eu também que era o dia de nosso nascimento. Ele então explicou que era o dia de nosso batismo, o dia em que fomos inseridos na família de Deus! O dia em que deixamos de ser criaturinhas para sermos filhinhos de Deus e de fato o somos! Amanhã precisamente, 17 de maio, será meu aniversário de batismo! O dia mais importante de minha vida, que pretendo comemorar com muita alegria!

Ofereço este texto para minha amiga Kao que faz aniversário hoje. Ficamos amigas por conta da crônica “Nos tempos do Redingote”. Ela em Portugal recebeu e leu meu texto, localizou-me facilmente e nos tornamos amigas. Somos almas gêmeas, Kao costuma dizer e eu também. Nascemos até no mesmo mês, com poucos dias de diferença. Feliz Aniversário Kao! 

SUMÉRIOS E ET DE VARGINHA

  

            Volta e meia eu e meu marido estamos falando de alienígenas, de existência de Deus, fatos da Bíblia e outros babados. Eu sou cristã católica, ele diz que não é nada, e está sempre buscando nos livros e documentários da vida as provas de que está certo. Não é a primeira vez que ele vem com um papo de que os Sumérios sabiam de coisas que até Deus duvidava. É fato. Os sumérios da antiga Mesopotâmia que depois veio a ser o Iraque, há mais de 4.000 anos antes de Cristo, deixaram documentados conhecimentos incrivelmente extraordinários para sua época remota. Quantas vezes ouvi nas aulas de História da Irmã das Graças: “sumérios e assírios na Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates”. Esses povos já sabiam que a Terra era redonda, tinham rede de água potável, conhecimentos astronômicos que fazem a Nasa babar de inveja. Supõe-se pelos documentários que os sumérios tenham recebido tais conhecimentos de algum povo alienígena evoluído. Aliás, entre os documentos deixados por eles, tal fato é relatado.

            Aí rola nosso papo. Eu digo a ele:

- Esses alienígenas são muito estranhos mesmo. Sabedores de tudo, vêm, fazem visitas esporádicas aos humanos, repassam conhecimentos preciosos, depois desistem deles, deixam os pobres dos sumérios ao Deus-dará, eles são conquistados pelos povos vizinhos, os caldeus, sei lá, e todo o conhecimento fica perdido.

- Perdido nada. Abraão que era caldeu apoderou-se de tudo. E quem falou que são visitas esporádicas? E o ET de Varginha, como é que fica?

- kkkkkk, é verdade. O ET de Varginha, nosso ETezinho mineiro. E os milhares de casos comprovados de que os alienígenas vieram e vêm à Terra a todo instante? E aquele caso do deserto de Nevada nos Estados Unidos? Até a Rita Lee viu inúmeros discos voadores. Ela diz em sua autobiografia que o primeiro disco voador a gente nunca esquece. 

- Mas até os alienígenas evoluídos têm lá suas fraquezas. Se foi verdade mesmo, deram a maior bobeira lá no deserto de Nevada, aquele caso lá na década de 40. Dois seres extraterrestres se esborracharam no deserto sabe-se lá por que. Teriam bebido? Mal sabiam pilotar a nave! O fato é que foram aprisionados pelo exército americano que deve ter feito tudo que é experiência com os coitados dos pés à cabeça. Nunca mais se soube deles. E o boboquinha do ET de Varginha? Diz o povo de lá que o ET era horrorosinho de feio e ainda ficou acuado em um muro, tremendo de medo das meninas que não paravam de gritar. Este já ficou prisioneiro dos militares brasileiros mesmo. Pobrezinho!

- Parece que o ET de Varginha foi despejado da nave porque não acharam nenhum vestígio dela. Talvez fosse um dissidente, um traidor de seu povo que queria se livrar dele. Um ET reencarnado daqueles que ensinaram os sumérios tantos conhecimentos.

            E por aí vai. Sobre a Arca de Noé, meu marido se diverte com a história. Diz que Abraão que veio da Caldeia, ficou sabendo dos segredos e conhecimentos dos sumérios, o povo queridinho dos alienígenas. E que Abraão contou a história do dilúvio plagiando uma história de uma grande inundação ocorrida na Caldeia, ou Mesopotâmia ou Iraque hoje. Ele me pergunta:

- Você acha que Noé poderia recolher espécies de cada ser vivo do planeta? Como? Animais, insetos, etc. e as plantas, também? Sementes e mais sementes de tudo? Dizem que até macacos e antas brasileiras quando souberam da Arca, correram pra lá pra serem salvos!

- Meu filho, tudo é possível. “Tudo é possível ao que crê!”

            E assim vamos, entre ETs, Abraão, discos voadores e muito vinho.   

 

COMPETIÇÃO E COMPETIDORES

 

O homem é um ser competitivo, disso não tenho a menor dúvida, a competição está nas entranhas do ser humano. As pessoas competem entre si em todas as áreas, principalmente na econômica, riqueza, bens materiais, também no sucesso pessoal, vantagens sociais. A famosa “grama do vizinho” que é sempre mais verde do que a nossa! Um amigo costumava dizer assim: é complicado, a gente vai, trabalha e economiza e consegue comprar um carrinho novo e fica feliz da vida! Acontece que o vizinho aparece com um carrão importado lindão! E aí? A gente fica pensativo, não é?

Se a pessoa não tem uma boa dose de nobreza e de generosidade, ela vai sofrer por essas coisas. Aquela máxima de ser grato por tudo ainda é a melhor maneira de viver, isso faz a alma crescer.

Bem, sou uma contadora de casos, então vamos aos casos: Já faz tempo isso, encontrei com uma conhecida que há muito tempo não via. Conversa vai, conversa vem, ela me contou de uma viagem que havia feito percorrendo muitos lugares da Europa, contando detalhes de cada lugar. Relatou também uma peregrinação que fez a Jerusalém e outros lugares sagrados e tal e tal. E ela falava como se fosse o único ser vivente que tivesse viajado. Eu ouvia tudo pacientemente com vontade de interromper, mas fiquei firme. Até que ela perguntou assim: você não tem vontade de viajar? Aí entrei: eu viajo, não tanto mais agora, mas já viajei. Aí ela: mas Jerusalém você não conhece. Encerrei o papo dizendo: por um acaso conheço sim.

Eu poderia ter me calado, mas sou humana, cheia de defeitos, é sim, sou sim. Aí foi que caí de boca na competição, agora era uma questão de honra. Perguntei a ela: e Bruges, você conhece?

- Não!

- Não? Perguntei sentindo em minha própria voz um tonzinho ou um tonzão de vitória, um gostinho de prazer, ao que acrescentei: você não sabe o que está perdendo! Precisa ir lá, é um espetáculo. Depois me arrependi. Que bobeira! Que pobreza! Fiquei pensando em como Nossa Senhora reagiria, sempre penso nisso. Ela ficaria em silêncio, deixaria a pessoa pensar que era a única a conhecer os lugares. Grandes coisas, como costumávamos dizer antigamente. Oh meu Deus, já estou velha, quando vou aprender essas coisas tão preciosas!

Enfim, a concorrência é uma coisa tão cruel que pode chegar a um nível inacreditável. Explico: eu e minha irmã voltando da Canção Nova demos carona para duas senhoras. Logo percebemos que as duas estavam meio emburradas uma com a outra. Foi quando começou o assunto de doença. Uma delas contou para nós que tinha uma hérnia de estômago ou de esôfago imeeensa, fazendo questão de dar ênfase ao “imensa”. A outra caiu na desgraça de dizer que também tinha e que a dela também era grande. A primeira não gostou e disse que a sua hérnia era muito maior que a da outra, que podia provar por exame e que o médico até havia lhe dito que nunca em tempo algum tinha visto uma hérnia tão irrepreensivelmente gigantesca. Falando daquela maneira, tão orgulhosa e com aquela retórica exemplar ao esmiuçar os detalhes sórdidos de sua hérnia, confesso que faltou pouco para ficarmos com vontade de ter uma hérnia tão top como a dela. Fala a verdade!  

Fez-me lembrar de quando eu era criança e morria de vontade de quebrar o braço para ir de gesso à escola! Faz sentido. Mas gente, agora não somos mais crianças. São Paulo diz: “Quando eu era criança falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei adulto, eliminei as coisas de criança” (1 Coríntios, 13, 11)

Enfim, “busquemos as coisas do alto” (Colossenses, 3, 1)