quinta-feira, 31 de outubro de 2019

ACADEMIA E HEIDEGGER




Vi uma postagem no Face outro dia que me fez rir muito: “Eu queria deixar meu corpo na Academia e ir buscar só quando estivesse pronto.” Esta sou eu. Não é a primeira nem a última vez que falo em Academia de ginástica, musculação e essas torturas aí. Alguém poderá argumentar: ora, então não vá, não faça, ou faça hidroginástica ou Pilates. Bem, é verdade que reclamar é uma coisa que sei fazer muito bem. Hidroginástica é uma delícia quando já estou na água morninha. Mas tirar o maiô molhado, vestir a roupa, lavar o maiô, por pra secar, isso mais aquilo. E no tempo de frio? Não. Definitivamente não. Pilates também é menos pior de ruim, mas caríssimo. Enfim, odeio, e adoro brincar com o assunto.
E aproveitando em “deixar o corpo na Academia e ir buscar quando estiver pronto”, quem sabe no futuro, teremos um avatar que vai fazer as coisas chatas que não gostamos. E não há como não me lembrar do filme Avatar. O protagonista entra numa espécie de coma profundo, ausenta-se do próprio corpo e passa a ocupar um novo invólucro ou um avatar criado, saudável e perfeito. Uma experiência maravilhosa para Jake Sully que, sendo paraplégico, consegue andar, correr, sentir o contato dos pés com a terra e realizar proezas incríveis como voar. Este avatar ocupado por Jake traz para ele a liberdade perdida, a autonomia sonhada. Na verdade, nosso avatar não precisaria de Academia, era só acordar do coma, perfeitinho. Poderíamos escolher o corpo, mas isso seria um problema porque todas as mulheres seriam Gisele Bündchen.
Já me conformei, porém não sou perfeccionista em se tratando de fazer ginástica. Se surge algo que dificulta minha ida, não vou e pronto. Ah, mas você é magrinha, não precisa. Quem falou? E a artrose? Artrite? Como é que fica? Magrinha ou não, sabemos que os exercícios fortalecem os ossos, músculos e articulações impedindo as limitações físicas mais tarde. Então batalhamos não só para o futuro, mas exatamente para agora, pois não nos esqueçamos de que vivemos o momento presente. Por outro lado, não quero chegar lá na frente e dizer, ah eu poderia ter me preparado. Garantias, não temos nadica de nada nesta vida, mas façamos o dever de casa.
Estou lá, né gente, remando como um autêntico Ben Hur nas galés, puxo os braços e empurro os pés, sou abduzida no exercício de Abdução na máquina e outros tantos que nem sei falar o nome. Os meninos e as meninas instrutores são uns amores, a secretária, nem tenho palavras. Dou o maior trabalho, nunca decoro nome de nada, erro na postura, mas estou lá, isto é, quando vou.
Mas por que Heidegger? Por que Academia e Heidegger? Bem, hoje eu presenciei dois meninos novatos que estavam confabulando baixinho algo sobre os exercícios, aí captei um deles perguntando ao outro qual era o exercício de “encolimento”. E eu, aquela que odeia Academia, me dirigi a eles explicando com detalhes o tal exercício. Eu própria fiquei estupefata com meu atrevimento. Não é que passados seis meses de Academia, três de presença concreta, eu de repente me flagrei familiarizada com aquele ambiente? O sábio e filósofo Heidegger que tinha razão: “O homem é um ser de possibilidades.”  
 



TRAÇOS E LAÇOS DE TERNURA



            O quão longe no tempo pode cada pessoa guardar suas mais ricas e remotas lembranças? Bem, eu me lembro de quando morava na “casa de cima”, como a chamávamos. Minha mãe se referia ao lugar onde morou em Cristina como “a rua de baixo” e eu adoro essas expressões familiares tão originais, tão queridas! Mas não é sobre isso que quero falar. Então, já estávamos na cama, nós os primeiros filhos, os mais velhos, quando minha mãe entrou em nosso quarto para mostrar à tia Odete que nos visitava, como estávamos bonzinhos e bonitinhos em nossas caminhas. Foi quando apontou para mim e disse: ela dorme igualzinho ao pai, com o braço debaixo do travesseiro, já o irmão dorme como o tio, e por aí vai ou por aí ia. É como diziam e como dizemos, o fulano puxou mais ao pai, ou puxou ao avô.
            Todas as vezes em que fico recostada em minha cama com meus livros de oração eu me lembro de minha avó com a “Liturgia das horas” ou algum missal, em seu colo. Ela descansava a perna que tinha uma ferida profunda e de quando em quando parava a leitura para coçar em volta da ferida. Não preciso de uma foto para guardar essa lembrança tão preciosa. Ficará impressa em minha mente e em meu coração para sempre. Mas então eu penso: lá estou eu aqui com meus livros de oração exatamente como minha avó. Eles se vão e nós continuamos em seus postos.
E também, fisicamente, vamos ficando como nossos pais. Ah o fulano era tão bonitinho, tão magrinho, agora está o pai escrito, sem cabelo, bochechudo. Ele quando jovem não tinha nada do pai, agora! Nossa! Incrível! Nossos traços vão sendo configurados e reconfigurados até que ficamos como eles. E nós, mulheres, vamos “salvando” em nós os traços de nossas mães.
Um dia, eu voltava do mercado, carregando sacolas, distraída da vida quando parei em frente a uma clínica de vidros espelhados. Mulher vaidosa que sou, não resisti ao impulso de me ver refletida nos vidros. O fato é que me achei incrivelmente parecida com minha mãe, parecia vê-la surgindo das brumas do tempo. Já ouvi dizer que se as mulheres quiserem saber como serão no entardecer da vida, basta olhar para suas mães. Terão um retrato fiel de sua imagem no futuro. Mas não é só o físico, na verdade é muito mais. Parece vir de dentro, são os modos, os cacoetes, o jeito de sorrir ou falar. São muitos os detalhes, antes escondidos, como se às filhas estivesse destinada a missão de ocupar o lugar do corpo e alma de suas mães.
E não paramos por aí. Vamos empregando as mesmas expressões que usavam. Quando minha irmã me conta algo que acho descabido, eu digo, “essa é de gloriosa” como minha mãe dizia sempre. Ou quando duvido que algo seja feito ou cumprido, por exemplo, de hoje em diante, vou ser assídua na ginástica. Aí eu digo pra mim: “vai que frange”. Era assim que minha mãe falava, como quem queria dizer: “vai nada”. 
É com emoção que constato que de tudo que já escrevi na vida, de todos os livros, crônicas, contos e poemas, eu posso seguramente afirmar que 80% é sobre minha mãe.  Tá certo. Mãe é mãe. E como dizia Adélia Prado: “Quero minha mãe”.           

           

ARMADURAS


ARMADURAS
Misa Ferreira

            Fuçando aqui na minha papelada achei uma frase do Oscar Wilde que gostei muito quando li. Acontece que é tanta coisa que a gente lê, tanto livro, tanta informação que a gente se esquece, sem contar que com a idade vamos nos esquecendo de nomes e de tudo com mais rapidez e facilidade. Aí a gente começa a dizer assim: ah, aquele ator, ah meu Deus, como é que é mesmo o nome dele? Ah aquele que fez aquele filme com aquela atriz, ah meu Deus, aquele filme, como que é mesmo o nome?
            Bem, vamos à frase do Oscar Wilde: “quando somos felizes, somos sempre bons, mas quando somos bons, nem sempre somos felizes.” Legal né? Verdadeiro. É fácil ser bom quando se é feliz. A felicidade, mesmo frágil, passageira, facilita nossa bondade. Mas quando a felicidade faz as malas e parte, quando o céu escurece e as nuvens despejam aquele aguaceiro, ficamos pessimistas, tristes, desanimados e ficamos tão envolvidos com nossa dor ou nossa tristeza que nos esquecemos de ser bons. Vamos dizer de outra forma, acariciamos nossa dor e nem percebemos a dor dos outros.
            E quando passamos por algo triste, por alguma perda ou mesmo quando alguém pisa em nossa honra, vamos fechando as portas. E vamos nos encerrando em nossas armaduras porque elas aparentemente nos protegem dos ferimentos. E nos armamos até os dentes para que tudo fique devidamente guardado. Não queremos ser feridos, é lógico, quem quereria? Mas gente, a armadura é uma armadilha porque se não enfrentamos o dragão olhando nos olhos, ele nos destrói, a armadura é um ledo engano. Olhar o dragão nos olhos eu até olho, já deixar que ele me olhe nos meus, isso não. Se ele fizer isso, vai perceber minha fraqueza. E isso eu não mostro. Não entrego o ouro pro bandido. Sorrio enquanto digito.
            Recebo uns artigos em meu email e outro dia li algo muito pertinente à armadura: “Nós nos sentimos como impostores porque, de fato, somos. Sabemos que somos falhos e sabemos que é perigoso mostrar às pessoas tudo sobre nós, assim, nós escondemos algumas partes de nós.”(Dan Pedersen). Com a armadura temos a ilusão de nos protegermos.
            Bom, eu sou transparente, mas nem tanto, há partes obscuras de mim que não mostro, nem sei se as conheço bem. Por outro lado, tenho tentado melhorar, tenho tentado me desarmar, até já tiro a armadura para dormir. Quando estou feliz, minhas asas se aprontam para voar, mas quando chegam as nuvens pesadas, aí o mundo acaba, desaba, é a hora de deixar a armadura no modo ligado, é a hora perigosa, a hora em que estamos fragilizados.
Mas, bobagem, bom mesmo é dar a cara à tapa, é andar de cara lavada, de ser uma só na tristeza e na alegria e tentar ligar a bondade no modo ativo.
            Recebi de uma amiga um livro muito bom que recomendo aqui: O Cavaleiro Preso na Armadura de Robert Fisher. Este livro me inspirou a escrever sobre nossas armaduras e suas armadilhas. 
P.S. Quando nascemos recebemos entre outros bens, a ousadia e a coragem, mas aí vieram os dragões e as tiraram de nós, deixando o medo. Cumpre resgatar o que é nosso. Enfrente o dragão. Sem armadura.
                        

CONSELHOS



            Tive a oportunidade de ler um texto muito bonito de uma escritora coreana em que em determinado momento ela conta que quando foi para a universidade nos Estados Unidos, seus pais a acompanharam como bons pais que eram. Lá eles foram com ela até o alojamento dos estudantes onde ela iria morar com mais duas colegas. As duas colegas não foram acolhedoras, o que a moça logo percebeu e também seus pais. Quando eles foram se despedir da filha, viram como ela estava destroçada. Era uma nova fase de sua vida e já começava com duas colegas de quarto que não eram nada amáveis. Então sua mãe foi firme e lhe deu conselho: “você sabe que pode transformar qualquer coisa em ouro” (“you can transform anything into gold”). A filha nunca se esqueceu, enfrentou a situação da melhor maneira que pôde e outras situações que viriam no futuro. 
            Bem, isso não é inédito, a gente sabe que pode fazer das tripas o coração para enfrentar qualquer coisa. Só que a frase me pegou de jeito, talvez porque o longo texto já chegava num ponto em que eu emocionada, recebi aquelas palavras como um presente. A mãe coreana deu um conselho à filha que ela nunca mais se esqueceu. Fiquei pensando nos conselhos que a gente já recebeu na vida.
Lembrei-me da indecisão de minha irmã quando terminou o Curso Normal, percebendo que não queria ser professora, e não sabendo nada sobre o que poderia ser. Afinal, fazer o famoso Curso Normal e seguir a carreira de professora era o usual para as moças. Uma vizinha muito bondosa deu à minha irmã não propriamente um conselho, mas uma sugestão de trabalhar num banco. E não é que logo depois o Banco do Brasil abriu pela primeira vez em sua história um concurso em que mulheres puderam participar? Minha irmã fez e foi aprovada. Ser bancária não era exatamente uma vocação, mas melhor que o magistério que não lhe agradava. E depois eu segui seus passos. Ainda não sabia que minha vocação era escrever, mas isto é outra estória. O conselho de nossa vizinha foi bom. Na época era um bom emprego.
Bons conselhos direcionam, iluminam, transformam e salvam vidas. Fiquei pensando em algum conselho de minha mãe. A princípio só me lembrei de coisas práticas como: “você deve sair da mesa sentindo que até poderia comer mais, mas não deve”.
Mas minha mãe fez uma coisa preciosa por mim. Até então eu era já adulta, ainda em sua casa e não obstante toda a educação religiosa e demonstrações de seu grande amor por Deus, eu não conhecia este amor. Ela me deu um livro que já não me lembro o título. Foi a primeira vez que me senti tocada por Deus como Pai, as lágrimas brotaram de meus olhos e eu tive que fechar a porta do quarto para que ninguém visse, mas Deus já havia entrado e fez morada em meu coração. Obviamente que no correr da vida, eu me afastei, me aproximei, me afastei de novo, sempre mundana e sempre sedenta. Aquela atitude de minha mãe e aquele livro também não foram exatamente um conselho, foram muito mais do que isso, foi uma semente plantada, ainda que o solo fosse tão ruim.
Benditos conselhos de mães tão sábias!