Aborto
– re nasce sempre a velha questão
Misa
Ferreira
Tenho ouvido nos noticiários que já se
estuda a possibilidade de se inserir nas alíneas dos artigos da lei, nem sei se
posso dizer assim, a legalidade do aborto nos casos em que a microcefalia pode ser
causada pela “zica”. Também já ouvi que a microcefalia também pode ser causada
por outros agentes infecciosos diversos. Parece que o caso ainda está em
estudo. Sobre a questão do aborto legal neste caso específico, espantou-me a rapidez
com que as mulheres entrevistadas nas ruas respondiam sem titubear: “é claro
que o aborto tem que ser permitido, a mulher é dona de seu próprio corpo e pode
fazer com que ele o que quiser”. Não quero tratar da questão da “zica”, da
rubéola ou outro agente infeccioso que possa causar má formação nos bebês,
tampouco quero falar da gravidez quando é o caso de estupro. Quero sim falar do
valor da vida do bebê que não pode se defender dentro do útero da mãe. Em nome
do direito à vida, não é permitido que alguém mate seu semelhante, então eu não
posso entender como tantas pessoas defendem que a vida já iniciada de um ser no
ventre da mãe pode ser legalmente interrompida, ou falando de forma mais dura,
pode ser legalmente assassinada.
Todas as vezes em que uma criança já
nascida e crescida é abusada de qualquer forma pelos pais ou qualquer adulto,
as fotos logo vão para a mídia e a indignação é total. Da mesma maneira, quando
um pequeno se encontra em qualquer ameaça de perigo, seja em uma enchente, ou
na janela de algum prédio, movem-se mundos e fundos para salvar a criança.
Logo, lágrimas são arrancadas quando lá vem o bombeiro também chorando com o
garotinho nos braços e aplausos explodem de todos os lados. No entanto, por que
toda a raça humana não se une e não se move para salvar a vida da criança que
ainda não pode ser vista, mas já existe dentro do corpo da mãe? Será que se mata
tão facilmente porque o feto não chora, não grita, e, não sendo visto
dilacerado, a consciência é aliviada? Faz sentido. Quando minha mãe cortava o
pescoço do frango para depená-lo e prepará-lo para o almoço, nós crianças ficávamos
indignadas com ela, ao que ela nos respondia: “não quero ver ninguém comendo
frango na mesa, tá combinado?”. E na mesa o frango já cozido e cheiroso era tão
diferente daquele que esperneava aflito. Já não nos lembrávamos de seu
sofrimento. O que os olhos não veem o coração não sente? Então é assim?
Não quero, não posso e não devo
fazer nenhum julgamento. O que posso saber do sofrimento de uma mãe que já sabe
que seu filho não nascerá normal, engraçadinho, esperto, inteligente e
brilhante como os filhos dos outros? É um sofrimento extremo e incompreensível,
mas de fato não posso saber a dimensão real do sofrimento que a mãe sente
porque só ela sabe. Cada um é que sabe de suas dores e de suas cruzes. O que
sei é que há uma vida indefesa que será assassinada. “Mas que espécie de vida
esta criança terá” perguntam. Eu não sei. “Não será melhor que morra agora do
que viver uma vida que não é vida?” Eu não sei. São perguntas que não sei
responder, só sei que são questões dolorosas de abordar, quanto mais viver. Alegam
que não se é possível falar com certeza o momento exato de quando a vida começa,
ou dizendo de outra forma, quando o feto se torna um ser humano, ou para quem acredita
em Deus, quando ele recebe uma alma. Para mim, é a partir da concepção, quando
um ser novo se forma a partir dos que se uniram com ou sem a intenção de darem
a ele uma vida. E há que se pensar que um dia este ser terá um rosto que poderá
ser olhado e acariciado, um ser novo que tem direito a ter seus próprios
direitos, assim como a mulher grávida se diz com o direito sobre seu próprio
corpo. Ora, o que não pode é ela ter direitos sobre o corpo de outro ser, o do
bebê que já vive dentro de seu útero. Este momento exato de quando a vida
começa sempre foi e será mistério, não nos compete saber a exatidão dos
mistérios porque já não serão mais mistérios. O que sei é que “a vida humana
participa da vida de Deus”, como disse Carlo Maria Martini
Há mulheres que optam pelo aborto
simplesmente porque não querem mais engravidar e que saem em defesa de outras
indecisas incitando-as a fazerem o aborto. Dizem que este tal sofrimento pelo
conflito de ter feito um aborto não existe, que elas próprias nunca sentiram,
que se trata apenas de um argumento religioso que induz ao conflito. Porém
sabemos que são feridas tão profundas que raramente se fecham, na verdade quase
nunca. Sempre que estou presente quando alguma mulher conta que passou por certo
perigo de vida, invariavelmente ouço que a primeira coisa que pensaram foi:
“meu filho, minha filha”, naquela preocupação primeira e imediata que tem toda
mãe. Como então separar este amor pelo filho nascido do não nascido ainda? Logo
a mulher a quem foi legado hospedar, cuidar, proteger e amar o ser mais frágil e
mais indefeso que existe! Para mim, abrigar e amar um bebê que se forma no
ventre é a maior honra e o maior privilégio que uma mulher pode ter.
Evidentemente que há casos terríveis
como mulheres que são vítimas de estupros. Neste caso eu sei que é quase impossível
que tais mulheres possam sentir amor pela criança em seu útero. Sei que há
mulheres que procuram fazer o aborto porque são praticamente obrigadas pelos
maridos maus e violentos que as ameaçam diariamente. Sei que há mulheres pobres
que abortam porque não têm mais como sustentar sozinhas tantos filhos. Sei que
há adolescentes viciadas em drogas que abortam porque talvez tenham sido
expulsas de casa. Sei de tantas coisas tristes que levam à prática do aborto,
mas também sei que não é possível que a criança inocente que já é um ser com
vida seja punida com a pena de morte.
Há muito tempo atrás uma conhecida
nossa, uma mulher já com quatro filhos vivendo numa tremenda dificuldade
financeira sofreu um acidente terrível, quebrou braços e pernas, teve o baço
perfurado, bateu a cabeça, foi operada, ficou em coma e sei lá mais o quê. Mas
foi se recuperando, e um dia chega o médico no quarto em que ela estava e lhe
dá uma notícia surpreendente: “a senhora está grávida, apesar de tudo o que
passou, apesar de todas as drogas que lhe demos, de todo o sangue que perdeu.
Acredito que seja o caso de tirar esta criança porque a senhora está fraca
demais para aguentar esta gravidez, e além disso, com toda a certeza, se o bebê
não morrer antes, vai nascer com sérios problemas físicos e mentais de toda a
espécie”. A mulher que nem sabia que estava grávida foi inundada de amor e
compaixão ao saber que seu filhinho havia sofrido tudo aquilo junto com ela, e
foi peremptória: “Nem pensar! Nunca! Ninguém vai tirar meu filho”. Pois a
gravidez foi adiante, e nasceu seu quinto filho homem, perfeito, um garoto
sensível e esperto. Naquela época não se era possível ainda detectar problemas
antes do nascimento. A mulher correu todos os riscos, ela já amava seu filho. O
médico ficou de queixo caído.
Mas as histórias são diferentes,
cada vida é uma história diferente. Carregar uma gravidez já sabendo que o
filho é doente, que não haverá cura, que dia após dia força e coragem terão que
ser arrancados dolorosamente do coração e que a vida será um mar de transtornos,
é uma tristeza, eu sei. Mas o prêmio virá, acredite. Este amor é para todos,
mas feliz é aquela que se dispõe a aceitar. O que parece ter sido negado a esta
mãe um dia voltará de outra maneira. Esta vida é um mistério. Não queiramos
entender. Apenas respeitemos a Vida e Ela surpreenderá a todos nós.