sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

RECOMEÇO






 Finalmente cheguei até o quarto da casa centenária que seria minha morada dali por diante. A senhora que andava com dificuldade me levou até lá, e deixou-me só com a chave na mão. Pelo meu silêncio ela percebeu que não seria necessário falar nada, talvez também porque o quarto era tão pequeno com tão poucos móveis à mostra, que qualquer palavra seria desnecessária. E eu que sempre fui tão falante a vida toda, queria e teria que me acostumar com o silêncio, regra penosa que eu mesma me impusera já há algum tempo. As palavras não ditas estariam sempre dentro de mim e a qualquer momento poderiam se transformar numa história encantada. Bastava querer. Quedei-me num silencio respeitoso como quando nos encontramos diante de coisas sagradas. Fechei os olhos e imaginei que histórias e que vidas teriam se passado ali em outro século. Só ouvi o silêncio. Silêncio sagrado.
Mas vamos ao quarto. Achei encantador. Não é por ser pequeno que não caberiam palavras para descrevê-lo, pelo contrário, ele era tão rico, tão precioso como um castelo reservado para pouquíssimas pessoas. Era meu castelo onde eu abrigaria as riquezas interiores que até então vinha tentando adquirir a duras penas, e pode acreditar, essas riquezas exigem muito mais trabalho do que as riquezas mundanas. Bem, o chão era de taboas corridas. Havia uma cama de solteiro, com uma colcha de tricô em quadrados coloridos, tal como minha mãe fazia e assim fez para mim e para minhas irmãs. Isso que falei de minha mãe e as colchas era algo tão distante dessa nova fase de minha vida que mais parecia pedaços de sonhos, desses que vêm à mente aos poucos. Engraçado, nossa vida é tão pequena, no entanto as lembranças que guardamos são tão milenares e longínquas que soam mais como a vida de outra pessoa em outra época ou mesmo histórias de algum livro antigo. Afinal, quantos anos nós podemos viver? Tudo passa num piscar de olhos e não nos damos conta de que em algumas poucas décadas podem caber eternidades. É que não vivemos apenas os acontecimentos, os fatos, mas abrigamos pensamentos e sentimentos que pesam, mas dão cor e sentido à vida.
 A cama era simples, daquelas antigas com cabeceira onde a gente sempre pendura alguma coisa. O travesseiro era baixo, desses bons para dormir sem dor no pescoço. Um criado-mudo ao lado da cama também era antigo. Havia uma portinha com um compartimento onde eu poderia guardar meus livros preferidos, meus fiéis amigos de longa data. Em cima do criado certamente eu levaria um copo com água na hora de dormir. Havia uma cômoda, algo como um baú antigo, só que com pés, e em cima estava disposto um oratório com um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora. Dentro do baú eu teria uma coberta para os dias mais frios. E o armário de roupas? Ah este era “de gloriosa”, como dizia minha mãe, significando algo inusitado. Era um cabo de fora a fora preso por dois suportes de madeira. As poucas roupas que caberiam estavam exatamente dentro de minha mala pequena. É incrível como podemos viver confortavelmente com poucas roupas. Ao invés de meus três armários embutidos abarrotados de roupas de inverno e verão, de sapateiras com sapatos sem fim, finalmente eu teria poucas coisas, também um velho sonho que se tornaria realidade.   
Enfim, era um quarto espartano, digamos assim, quase uma cela de um convento. Não havia televisão, prova de fogo para mim, não havia ar-condicionado, nem comodidades do mundo moderno, mas havia uma janela pequena e a vista que se descortinava era deslumbrante. Encostas verdes e floridas, e o mar, meio escondido, mas não o bastante de forma que eu o admirasse sereno, brilhando à luz do sol daquela hora, infinitamente imenso, infinitamente antigo e infinitamente profundo. O mar é um mistério.  
Este seria o meu quarto dali por diante. Era um quarto simples, mas cheio de poesia, de cores, de minha vida com minha história igualmente simples, sem grandes feitos, também sem grandes expectativas, a não ser viver simplesmente e deixar a vida me ensinar o que eu não tivera até então tempo e coração para aprender. Dali por diante seria eu comigo, sem dependências emocionais e familiares. Sempre fiquei impressionada com as freiras que iam para tal ordem religiosa e cortavam definitivamente os laços. Eu seria capaz? Sim, agora sim, contudo eu sabia que não é a mudança exterior que mais importa, embora o lugar que eu escolhera fosse o mais indicado. Dentro da gente, as coisas não se passam assim tão facilmente. Eu poderia ir para qualquer lugar do mundo, mas sabia que teria que levar comigo o barro de que fui feita, o meu passado que eu nunca poderia mudar, e minha história. Ah por que insisto tanto em minha história? É uma história comum, mas é a minha história, por isso ela é tão bonita! 
Ali, naquele pequeno castelo encantado, vislumbrei minha nova vida, meu tão sonhado recomeço. De manhã, eu faria meu serviço voluntário. Este luxo eu poderia me dar, já aposentada e tendo uma renda modesta, mas suficiente para meus gastos. Eu iria a pé para o lar dos idosos onde trabalharia como acompanhante dessas pessoas, caminhando com elas pelos jardins, lendo contos e poemas que as fariam se lembrar de suas próprias vidas e suas próprias histórias, e tudo isso na varanda entre o céu e o mar, pois o vilarejo todo era no alto do penhasco. As pessoas que não mais tivessem lembranças, aquelas que a luz já tivesse se apagado em sua alma, embaçando seu olhar triste, eu apenas ficaria ao seu lado, acariciaria suas mãos e compartilharia seu silêncio.   
O resto do dia seria meu, só para mim. Poderia ler, escrever, poderia dormir, poderia pensar, refletir, ponderar. De tardinha eu sairia e me sentaria em um banco bem em frente ao mar admirando aquele descomunal gigante azul. Ouviria seus sussurros, sua linguagem misteriosa, o gemido das ondas, o canto e os segredos das sereias. O mar é mesmo um grande mistério.
Este era o meu plano. Não é certo que dizem que temos que ter projetos, que cultivar sonhos? Santa ingenuidade! Eu então não aprendera ainda que o homem põe e Deus dispõe? Quem disse que a vida segue do jeito que a gente sonha? Mas é preciso seguir e é preciso sonhar. Mesmo que tudo desmorone, é preciso recomeçar até que a morte se apresente.
Em pouco tempo eu conheceria as pessoas do vilarejo, pois é tão pequeno que todos se conhecem. Eu seria a estrangeira que veio de longe, com um passado desconhecido. Talvez pensassem que eu fosse uma escritora fugindo da fama ou em busca dela, ou ainda uma bailarina aposentada, uma vez que meu sonho de menina foi ser bailarina clássica que nunca fui. A gente tem que ir atrás dos sonhos, por mais distantes e impossíveis que sejam porque os sonhos que não se realizam e os desejos que não se concretizam são um espinho na carne, nos perseguem até o fim da vida. De ruim conservei minha magreza e minha cintura fina, como se meu corpo teimasse em acreditar que eu dançava. Mas a suposta bailarina já não pode mais dançar, seis décadas são um peso grande para os joelhos, embora a alma seja leve como uma pluma soprada ao vento. Minha alma dança livre e divinamente.
À noite, eu voltaria para o meu castelo, aquele quarto espartano repleto de silêncio e de poesia. De minha janela pequena, eu observaria as estrelas e a lua, escutaria o mar que nunca se cansa de repetir o mesmo sussurro cheio de mistérios. Minha vida estaria recomeçando, como a gente tem sempre de recomeçar, e eu me sentiria feliz como uma criança que pensa que o mundo é seu, e ele é, a gente é que nunca tem olhos nem ouvidos para compreender a beleza estonteante da vida.                                   
                                                                                             
                                                                                                         

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