sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O DESABRIGADO



            Certa vez tive que passar uns dias em Belo Horizonte. Aproveitando uma folga fiz uma longa caminhada até chegar a uma praça, onde parei para descansar. Bem, estava com muita sede. Enquanto esperava que vagasse algum banco engoli quase a metade da água que minhas entranhas ressequidas imploravam de joelhos. Agora, com mais calma, eu deixava que o restante descesse gostosamente pela minha garganta, refrescando o calor intenso que eu sentia. Olhei em volta. Praça cheia, crianças gritando e correndo e eu procurando um lugar para descansar. Avistei um banco onde estava um homem aparentando ser um solitário desabrigado. Sua aparência era praticamente a de um indigente. Roupas sujas, barba comprida, um sem teto, um sem nada. Confesso, envergonhada, que corri os olhos procurando por outro banco. Mas lembrei-me dos evangelhos, dos salmos, do Eclesiástico, enfim, da palavra que diz para não desviarmos os olhos dos pobres. Entenda, ou não entenda, não querendo justificar, mas justificando, simplesmente sua aparência não era agradável. Para abreviar, decidi que não poderia desprezar quem quer que fosse. Fui até ele.
- Posso me sentar aqui?
Perguntei receosa, já esperando que ele fosse em seguida me pedir dinheiro. Puro preconceito meu. Ele me respondeu sem me olhar e um tanto seco:
- Pode se sentar, o banco é livre, é da praça, não é meu.
Agradeci, optando pelo silêncio depois de constatar que o indivíduo não era fácil, e neste caso, certa ou toda prudência era aconselhável. Mas para minha surpresa, ele se desarmou, como um guerreiro que relaxa e recolhe sua espada ao perceber que não está diante de um inimigo. Concluí que meu silêncio deve ter soado ultrajante, porém benéfico, pois o homem reagiu. Porém, mais surpresa fiquei eu com sua pergunta:
- Será que a camada de ozônio é de fato uma verdade ou mais uma dessas mentiras que a mídia poderosa tenta inculcar nas mentes despreparadas?
            Despreparada estava eu para esta pergunta surpreendente, com estas palavras tão bem colocadas, com o verbo “inculcar”, tão pouco usado no dia a dia por pessoas com aparência bem mais primorosa do que tinha este rapaz. Novamente, puro preconceito meu. Primeiro achei que um indigente fosse logo me pedir dinheiro, e segundo deduzi erroneamente que ele não fosse capaz de uma linguagem culta e correta.
Como ele continuava olhando para frente, fiquei em dúvida se ele havia se dirigido a mim ou a ele próprio, como nessas reflexões que de vez em quando costumamos fazer em voz alta para nós mesmos. Como continuei em silêncio, ele voltou seu rosto para mim com uma expressão indagadora. Senti este seu movimento e voltei-me para ele que agora me olhava diretamente. Foi aí que me deparei com a profundidade extrema que ele trazia nos olhos cansados, e confesso que nunca vi olhos mais profundos.
            Respondi sua pergunta na maior sinceridade possível:
- Não sei, não sei mesmo. O que sei é que somos enganados constantemente e eu sempre caio nessa porque não tenho o espírito crítico, o senhor compreende? Sou mais ansiosa e não paro para refletir. Sei que nesta história do nosso planeta há muitos interesses comerciais por trás de tudo. Então é provável que seja tudo mentira. Ou não, quem pode garantir?
            Ele me escutou com atenção e depois de novo desviou seu olhar. Sua fisionomia  me fez lembrar o pai de uma colega de colégio, coisa de muitos anos no passado. Era um homem bom, sofrido, com as marcas da vida no rosto, tal como este homem, que não era exatamente um velho, mas um homem maltratado pela miséria e sofrimento, certamente. Quis saber de sua história, contudo preferi o silêncio. Peco muito por não perguntar nada a ninguém com receio de estar sendo intrusa e inconveniente. Não querendo me justificar, mas justificando, se ele quisesse, certamente teria me contado. E curiosa definitivamente eu não sou.
Depois de um tempo, ele saiu arrastando sua velha mochila, provavelmente com tudo o que tinha na vida. Não me pediu nada, apenas queria conversar, a seu tempo, a seu modo. Só me restou imaginar sua história, uma vez que provavelmente eu nunca mais o veria, como nunca mais o vi.

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