quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

DEUS É DEUS

 

 

Por total falta de assunto para o momento, lá vou eu tomar emprestadas palavras de outros. Quem duvidar que duvide. Quem é que pode ainda ter assunto com tanta coisa triste, meu Deus! Eu não. Mas aí está o assunto: Deus. Tem gente que acredita, tem gente que não. Tem gente que tem medo de Deus e tem gente que ama Deus. Minha mãe era uma eterna apaixonada por Deus. Era sair o assunto e ela dizia: Que beleza! Que beleza! A vida toda ela foi assim, sem duvidar, mesmo sofrendo, vertendo todas as lágrimas, com tudo atestando que Deus podia ou não podia fazer isso ou aquilo, ela sempre foi a fiel enamorada. É fácil confiar em Deus quando tudo vai bem, mas quando o bicho pega, é dura prova confiar. Santa Teresa dizia que Deus permite as tempestades em nossa vida para sermos fortalecidos. Deus é Deus. A gente tenta e teima em ser feliz, mas Deus sempre fez e faz tudo como sempre quis.

Quando meu avô morreu, um avô que eu nem conheci, minha mãe estava aqui em Itajubá com seu irmão mais novo. Depois do sepultamento, eles voltaram para Caxambu com malas pesadas porque não mais morariam em Itajubá, para dizer a verdade, não sei a verdadeira razão. Só sei que pela morte do meu avô, eles voltaram para Caxambu com malas pesadas e muito pouco dinheiro. E antes do trem partir, subiu um moço muito alegre vendendo cocadas. Meu tio pediu que ela comprasse, ela comprou uma cocada pra ele e outra pra ela. Saborearam, lambendo os dedos. Ainda antes do trem partir subiu outro moço, este não vendia nada, pedia, pelo amor de Deus, uma esmola. Era jovem, mas muito pobre, devia estar com fome.

Minha mãe abriu a carteira e deu os últimos tostões para o moço. Meu tio ficou só olhando e perguntou: Zezé, você tem mais dinheiro, não tem? E ela respondeu que não, que havia comprado as cocadas e dado o restante que era um tiquinho de nada para o moço. Meu tio brigou, xingou, falou das malas pesadas, e que nem uma carroça eles poderiam pagar. Ela apenas respondeu: Deus proverá! No fundo da alma, ela não tinha certeza, mas confiava. Pois bem, quando lá chegaram, assim que desceram do trem, logo viram a namoradinha do meu tio acenando para ele. Meu tio queria morrer! E agora, ela vai saber que não temos dinheiro nem para uma carroça, ao que minha mãe respondeu: ela já sabe, sempre soube!

Então, a moça chegou alegrinha e contou que estava com o tio, recém chegado do Rio e que estavam de carro. Onde estão as malas? Ela perguntou. Logo, o tio chegou todo alegre de mangas arregaçadas e já foi carregando as malas junto com meu tio. Quando chegaram no carro, minha mãe não podia acreditar! Era um “Coupe Deville” (faz de conta) muito chique. Minha mãe estava encantada! Acariciou a lataria do carro e disse baixinho assim: Querido Deus, obrigada! Não precisava exagerar tanto!

E Deus é exagerado mesmo!  E é exatamente aqui que tomo emprestadas as palavras do cronista da década de 50, Antonio Maria, palavras que não eram exatamente dele, mas que, tal como eu, tomou emprestadas de outros escritores daquela época. Havia um tal de Jayme Ovalle, que não tenho a mínima ideia de quem quer que fosse, que era muito querido pelos escritores famosos da época, aliás, foi Fernando Sabino quem levou Antonio Maria à casa de Ovalle. Bem, contavam que “um amigo de Ovalle gostava de provocar seu pronunciamento católico sobre coisas de igreja e de Deus. Na época do Congresso Eucarístico, esse amigo perguntou o que Ovalle achava dos excessos de ouro e púrpura dos altares. E Ovalle explicou: ‘você já viu um amanhecer? : você já viu o sol que faz de manhã? (ao que eu, Misa, acrescento – você já viu um pôr do sol? Você já admirou a abóboda celeste?) Deus é assim. Deus sempre foi um exagerado, meu filho!”

Continuando as palavras de Antonio Maria, “esse mesmo amigo, dias depois queria saber: Ovalle, Deus gosta de você? E Ovalle respondeu: acho que não. Sou o carcereiro de Deus. Ele está preso no meu coração”.

A história da cocada e dos últimos tostões é verdadeira, eu própria ouvi minha mãe contar e recontar inúmeras vezes. E Deus faz coisas muito mais grandiosas, milagrosas, maravilhosas e impossíveis para nós pobres. Ovalle, que nunca conheci, e minha mãe sabiam disso.

Não sei quanto a vocês, eu achei lindo isso do tal Ovalle amando tanto a Deus! Eu ainda preciso de coisas palpáveis, como clama minha pobre humanidade. No entanto me dói a saudade de coisas do espírito, pois eu sempre quis e cri que Deus existisse e me corrigisse tão logo eu caísse. Sem problemas, Deus é Deus.

JANE EYRE

 

 

Estava vendo ultimamente na Netflix a propaganda do filme “Jane Eyre”, famoso clássico inglês. Já li na juventude, mas ficou arquivado em minha memória tão descuidadamente que nem mesmo me lembrava do enredo. O que quero dizer é que não ficou gravado em meu coração. Meus anseios na época eram outros, era jovem, sentia ser eterna e tinha esperança de ser feliz um dia, quem sabe. Como agora, nesses tempos caóticos, lamentavelmente tristes, cruéis e sombrios, preciso cada vez mais de coisas sensíveis e bonitas, decidi assistir. Sábia decisão, fui saciada de muita ternura e curada um pouco das dores que têm me feito sofrer tanto. Como escrevo, vou sempre atrás das palavras, do jogo maravilhoso das palavras, meu faro persegue a beleza, a sensibilidade, a fineza de espírito, e assim vou gravando e me apropriando das pérolas que recolho e tomo por minhas, armas de que me valho para resistir às investidas do mal do aqui e agora.

Vou compartilhar com vocês algumas passagens que me encantaram, evidentemente com o devido cuidado para não desfazer a surpresa de quem ainda não assistiu ao filme. No início da história, quando Jane ainda era uma menina interna em uma escola, sua amiga Helen, tão sofrida quanto ela lhe conta que seu pai a havia ensinado a deixar passar a hostilidade porque a vida é muito curta para sermos hostis. Eu não precisava assistir a este filme para aprender esta lição, claro que não, claro que todos sabemos que a hostilidade é horrível para quem a recebe e igualmente para quem é hostil. Foi simplesmente bonito o modo como isso foi mostrado numa conversa compartilhada entre duas meninas solitárias, desprezadas e sofridas. Foi o momento captado, os semblantes tristes e cheios de pureza infantil. Foi a beleza da cena de duas crianças solidárias compartilhando suas dores.

Também gravei algo lindo que Edward, já vivamente impressionado com a personalidade da agora jovem Jane, lhe confidencia: ele diz que ela é uma pessoa diferente, uma prisioneira vivaz e inquieta que se fosse livre, voaria alto, que seu olhar é de um tipo curioso de pássaro aprisionado que olha o mundo através das grades de sua gaiola sonhando com as alturas. Essa comparação foi pra mim a coroação da beleza suprema que essas falas me trouxeram.

Durante minha vida, aos poucos, depois que fiquei mais velha eu percebi que o amor é algo que não se limita apenas a companheirismo, simpatia e atração física, mas algo bem maior do que isso, um encontro de almas. Quando eu era jovem eu não tinha essa visão, evidente que não. Eu só queria um príncipe maravilhoso numa carruagem igualmente maravilhosa. A sabedoria ou um pouco dela vem mais tarde mesmo, com os anos vividos. Costumamos brincar dizendo: eu queria ser jovem, porém com a sabedoria que tenho hoje!  

Aprendi que o amor realmente não pode ser apenas suficiente, não, tem que ultrapassar a suficiência, tem que ser elevado até alcançar este encontro de almas. Dizem que não existem almas gêmeas, que as pessoas são diferentes. É verdade, ninguém é igual a ninguém, tampouco as almas. Todavia, acredito sinceramente que este encontro de almas pode ser construído como tudo na vida pode e deve ser construído. Isso é o Amor.

São essas minhas reflexões sobre o filme. Muita coisa fica por conta do meu exacerbado sentir. Certamente outra pessoa sentirá de maneira diferente, enxergará de outra forma. Um lindo filme de amor e o livro, muito mais lindo, com toda a certeza. 

 

"OU ISTO OU AQUILO"

 

 

Não posso deixar de esboçar um sorriso quando leio este adorável poema da Cecília Meireles. A vida da gente é uma eterna escolha. Percebo que ao longo do dia fico em dúvida se faço isso ou aquilo, por exemplo, se faço empadão de frango ou de palmito, ou se não faço empadão, se compro mortadela e como com pão, ou ainda se não faço nada e deixo que o marido faça. Fico em dúvida se saio hoje ou deixo para amanhã. Se saio hoje, amanhã descanso, se descanso hoje, saio amanhã. Diz Cecília: “Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e não guardo o dinheiro”. Vivo sempre nessa eterna incerteza, abro a carteira, fecho a carteira, compro ou não compro. Aí me lembro do ditado: Mais vale um doce do que um tostão no bolso. Compro. E lá se vai o dinheiro.

Diz Cecília: “Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva”. Às vezes tem sol com chuva, casamento de viúva, e as cores do arco íris se pintam no céu. Um arco íris é um presente, mais uma linda ideia de Deus! Que bom se pudéssemos estar em dois lugares, como diz a grande poeta, a chuva e o sol comprovam a beleza que explode ao acontecerem juntos.

Às vezes temos que escolher sem saber. Há uma cena de um filme de muitos mil anos passados que jamais me lembrarei qual é, nem título, nem enredo, mas uma cena específica ficou indelevelmente gravada em minha mente, pois é algo significativo: uma linda jovem da Birmânia fugia de sua terra ou talvez de alguém. Estava acompanhada de outra pessoa e fugiam atropeladamente até que deram numa bifurcação. Não sabiam qual caminho escolher. Titubearam. Se fossem para um lado ou para o outro, tudo poderia dar certo ou errado. Importava fugir, e assim, mesmo angustiados, escolheram um dos caminhos sem olhar para trás. Como diz o gato de Alice no País das Maravilhas: “para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve.” Quando tenho que fazer este tipo de escolha, respiro aliviada por não ter que pensar e errar.  

Mas o poema da Cecília é divertido, infantil, habilmente composto para fazer as crianças exercitarem sua sensibilidade, não tem importância se escolhemos mal ou não. São como aquelas escolhas de crianças em que os adultos escolhiam por nós nos induzindo a pensar que as escolhas eram nossas. Faz-me lembrar de quando meninas, viemos de Pedralva para Itajubá, trazidas pela vovó Verônica para passar uns dias com ela. Longe do rigor da mãe e sob o olhar amoroso da avó, já nos dávamos todas ao belo passeio de ônibus ainda em estrada de terra. Quando chegamos aqui em Itajubá, a vovó perguntou:

- E aí meninas, querem ir de taxi para casa ou de charrete?

Nós, ávidas por “passear” de carro, respondemos prontamente:

- De carro

Ao que ela redarguiu:

- Mas de charrete o passeio demora mais.

Não me lembro se titubeamos ou não para responder, mas respondemos:

- Charrete

Certamente de carro a vovó gastaria mais do seu pouco dinheiro. Penso que se tivéssemos insistido no carro ela cederia, como toda avó teria procurado fazer para agradar as netas. Contudo, a ida de charrete para sua casa deve ter sido maravilhosa, semelhante às de carruagens levando princesas para o castelo. Pois era assim que nos sentíamos e sua casa simples para nós era um rico palácio. Bendita infância. Doces escolhas.

E Cecília encerra o poema de maneira magistral: “Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.” Nem eu.      

    

NO SILÊNCIO DO TEAR

 

 

Entre a manhã e a tarde

Docemente, sem alarde

Ela tece em seu tear

É seu modo de amar

 

Entre fios da urdidura

E entre laços de ternura

Ela tece

E faz uma prece

Enquanto o filho cresce

Lá fora a brincar

É seu modo de amar

 

Passa a noite, passa o dia

No silêncio e na alegria

Ela tece, pensa e ora

É a Nossa Senhora

Seu nome é Maria

A QUE SE REDUZ A VIDA

 

 

Vivo no presente

Daqui a pouco é futuro

E eu calada costuro

Palavras e versos

Para minha história

Trago tudo de memória

Guardados na lembrança

Os cantos e medos de criança

Procissões em cortejos

Imagens de mortos em lampejos

Sagrados e secretos segredos

A que se reduz a vida?

A um pequeno instante

A um pequeno presente

Que se rompe de repente

A um quinhão de sonho

A um quinhão de dor

Porém

Tudo é aprendizado de amor.

  

EM CIMA DO MURO


Não queira que eu seja verdadeira

A vida inteira

Não me peça para abrir o coração

Isso não

Falar a verdade pode ser complicado

Nem sempre é o acertado

Prefiro ficar em cima do muro

Juro

Calada no escuro

E só responder: Talvez

Talvez isso, talvez aquilo

É mais tranquilo

Deixar sempre a dúvida no ar

E agora que o mundo está para acabar

Há algo com certeza que eu posso falar:

Perdão

Do fundo do coração

Mais do que isso, não.