quarta-feira, 12 de outubro de 2022

AMOR (VOVÓ VERÔNICA)


 

De repente me pego sentada em minha cama, recostada na cabeceira, com as pernas esticadas para frente. Tenho nas mãos o livro “Obras completas de Santa Teresa de Ávila”. Impossível não fazer a comparação com minha avó Verônica a quem vi tantas vezes sentada em sua cama, nessa mesma posição, lendo “Horas litúrgicas” ou “Ofício das horas” ou alguma coisa assim. É notável como sempre repetimos os papéis.

Lembro-me muito bem do amor e carinho que minha avó sentia por mim, por todos nós. A gente sabe quando é amada e acolhida. Nunca vou me esquecer de quando cheguei de surpresa em sua casa aqui em Itajubá. Eu tinha uns dez anos e vim com uma amiga. Viemos de camionete de seu pai, nos segurando atrás na carroceria. Engolíamos o vento forte e ríamos como sempre riem de tudo as crianças. Quando entrei na casa da vovó, do corredor eu já a avistei. Ela estava sentada na cama com seu livro de oração, tal como eu hoje aqui. Quando me viu, veio ao meu encontro tão feliz!  Mais tarde, já mocinha, aqui em Itajubá, ela me ajudou com as amostras de folhas no herbário, um trabalho de escola. E fomos de planta em planta naquele quintal florido que nem seu era, mas que ela transformou num jardim maravilhoso! Repito: a gente sabe quando é amada e acolhida. E como isso é importante na vida de uma criança que mais tarde haverá de tirar suas conclusões sobre o amor.

Essas memórias são muito preciosas para mim. Viver é poético. Não há como escrever sem carregar junto a bagagem de afetos que acumulamos pela vida. Posso mudar a história ou o tema do que vou escrever, mas o conteúdo é basicamente o mesmo porque a raiz do que escrevo está plantada na minha infância. Gabriel Garcia Marques disse: “um escritor não faz outra coisa além de escrever o mesmo livro, de diferentes formas, a vida inteira.” É vero. É fato. É como aquele indício que os detetives buscam, torcendo para que o suspeito conte outra história. Mas se o suspeito for inocente ele contará sempre uma única história. Poderá modificar as frases, os termos, mas sua verdade estará sempre pronta. Sempre a mesma verdade.

E não é que justamente agora leio em Santa Teresa algo parecido com o que li em Gabriel Garcia Marques? Obedecendo aos superiores para escrever sobre a oração, ela disse que bem pouco iria dizer do que já dito em outras verdades que a haviam mandado escrever, antes temia que pudessem ser quase todas as mesmas, ao pé da letra. Ela sabia falar do que conhecia.

E ouso agora parodiar o autor de “Cem anos de solidão”: Nunca, em nenhuma circunstância, esqueci que, na verdade da minha alma, não sou nem jamais serei ninguém mais do que uma das dez netas da Vovó Verônica. Ela soube passar a mim, sem chamegos e beijos, a sensação exata do que é ser amada.  

 

EM CERTO PONTO DA VIDA

 

 

Refletindo, gente. É claro que já vivi muito e muito mais do que viverei. A vida passou, como diz minha irmã. E a gente só se dá conta de que viveu este tanto quando já viveu, óbvio. Interiormente não me sinto velha nem amadurecida, no sentido de maturidade. Convivo com gente de todas as idades, e me deparo, curiosa com algumas pessoas incrivelmente mais novas do que eu e mais maduras. Sinto uma estranheza com relação a isso. E me pergunto: Misa, quando você vai ser madura? Não sei. Sou do jeito que sou. Assim vou passando os dias como se fossem os últimos ou os primeiros dessa imensa eternidade chamada Vida.”

E aí refletindo, não posso deixar de me lembrar de Roland Barthes, o linguista filósofo, ou filósofo linguista de quem gosto tanto. Ele fala sobre o meio de nossa vida, não significando um ponto aritmético, até porque não sabemos quando vamos morrer. Pela lógica, aritmeticamente falando, já passei há muito do meio de minha vida, mas Barthes fala que “a idade não é progressiva, é mutativa”. Para o filósofo, o meio da vida significaria um momento tardio quando sobrevém o chamado de um novo sentido, o desejo de uma mudança, mutação me parece o termo ideal. Não devemos olhar nossa idade como um rosário de anos, mas em casas de idade, em patamares. Se olharmos a idade como uma sequência de anos, podemos começar uma contagem regressiva, irreversível. E Barthes também lembra que todos nós já nos conhecíamos como seres mortais, mas em certo patamar, de repente, sentimo-nos mortais. Conhecer é bem diferente de sentir.

Mas e daí? O que fazer com a vida para dar sentido a ela? Às vezes sinto a vida como uma eterna repetição, o trabalho que todos saem a fazer todos os dias, mas já estou aposentada, no entanto, o trabalho de casa também é uma repetição. Eu escrevo crônicas e poemas, como gosto disso! Vario os temas, mas o que faz o escritor a não ser escrever o mesmo livro de diferentes formas, a vida inteira, já dizia Gabriel Garcia Marques. A gente sempre volta no mesmo ponto, tal qual o infeliz Sísifo. Não, a vida não pode ser uma monótona repetição.

Não quero viver contando progressivamente meus dias, quero viver de mutações. A mutação a que devemos nos submeter pode ser a inauguração de uma nova etapa. Geralmente é quando nos sobrevém um acontecimento que nos marca. E este seria o meio da vida. Para alguns mais cedo, para outros mais tarde. E Barthes nos diz que este meio da vida é quando se descobre que a morte é real, e já não apenas temível.

É preciso fazer algo, urge ser feliz, urge viver. Já vivi “dois meios da vida”. Sofri mutações. Para quem escreve e para quem lê, a literatura salva. Vou escrever um romance recheado de ternura.

 

A INCRÍVEL DANUZA LEÃO

 

 

Fui surpreendida hoje cedo com a notícia da morte de Danuza Leão. Sempre fui admiradora da modelo, jornalista e escritora, li quase todos seus livros, adorava suas crônicas. Falava tudo sem medo, era brincalhona, mordaz e verdadeira. Foi uma mulher intensa, com relacionamentos intensos, uma mulher independente por natureza, vivendo numa época em que as mulheres eram contidas. Danuza era extrovertida, de uma “alegria escandalosa”, como ela mesma dizia. Tinha grande sucesso social, conheceu e conviveu com gente do cinema internacional, escritores famosos como Simone Beauvoir, pintores, costureiros de Alta-costura, modelos e artistas de toda a espécie.

Danuza Leão foi casada com Samuel Wainer, jornalista fundador do extinto jornal “Última Hora”, com quem teve três filhos. Mais tarde casou-se com Antônio Maria, jornalista e cronista e com o jornalista Renato Machado.  

Escrevia de maneira simples, fácil, como quem está contando um fato na mesa da cozinha, tomando um vinho e comendo um sanduiche. No seu livro “Quase tudo”, ela relata fatos incríveis, lembranças preciosas e experiências fantásticas.

No livro “Quase tudo”, Danuza conta com muita graça e bom humor um episódio de sua vida de mocinha no Rio de Janeiro, numa época em que faltava luz, com hora marcada, e também faltava água: “A cada vez que eu saía do quarto e deixava a luz acesa, ouvia a frase ‘apague essa luz, eu não sou sócio da Light’. Sempre faltava água, vivíamos com a banheira, panelas e baldes cheios. O banho era de cuia, mas quando a água chegava, eu ia correndo para o chuveiro – abria-o por um minuto, para molhar o corpo, fechava, me ensaboava, e abria de novo para tirar a espuma. Até hoje sigo essa rotina e sou incapaz de desperdiçar luz ou água”.

Selecionei algumas frases interessantes ditas por ela:

- Acho que a humanidade se divide em dois tipos de pessoas: as que usam guarda-chuva e as que não usam. (ela não usava)

- Para viver uma paixão é preciso renunciar à própria vida.

- Pensar muito e raciocinar muito podem impedir, às vezes, que a vida aconteça.

- A vida me deu tudo o que poderia dar, de bom e de ruim. Nada me foi poupado: ela me foi completa nos dois sentidos.

- Não sei se não tenho personalidade alguma ou se tenho muitas, tal a minha capacidade de me virar pelo avesso.

- Aprendi que a vida pode ser boa sem muito dinheiro.

- Descobri que sou mesmo uma pessoa solitária.

Essa era Danuza, modelo e jornalista, personalidade marcante da cultura carioca do século XX. Como modelo, foi a primeira brasileira a desfilar no exterior.

Valeu Danuza!     

CARTA A GRACILIANO RAMOS


Participei de um concurso e fui selecionada entre os finalistas. Ocorre que não percebi no regulamento que só poderiam participar os candidatos que não tivessem livros publicados. Fui desclassificada, muito justo. O tema era escrever uma carta para um escritor famoso, vivo ou falecido, que fosse o autor de uma obra que nos tivesse emocionado de tal forma que passasse a ser um de nossos livros prediletos. Aqui vai minha carta:

Quando li seu livro SÃO BERNARDO, senti minha sensibilidade subir às alturas, tocada no mais profundo do meu ser. Fui lançada acima dos ares, dos mares, vislumbrei toda a Terra, todos os mares e montanhas. Entrei dentro dos mais recônditos cantos do meu interior, fisicamente e espiritualmente, conheci um tanto de mim que até então desconhecia. Fiquei mexida, descobri que é possível um escritor transformar a vida de uma pessoa escrevendo um livro.

Lendo SÃO BERNARDO, senti que eu era um pouco o protagonista PAULO HONÓRIO e um pouco os que rejeitaram a empreitada de publicar um livro autêntico, cheio de verdades que ninguém suporta. Entendi que o livro de nossa vida contada exatamente como foi e como é, é difícil, pois uma coisa é viver e outra é ler o que se viveu. Ninguém suporta as verdades incontestáveis, não, ninguém suporta.

Entendi que se uma pessoa escolheu escrever, ela já não poderá ser escondida. Não há como escrever escolhendo palavras porque as palavras, as frases, os parágrafos e toda a história já estão dentro do autor, já correm em suas veias, em seu respirar, em suas lágrimas, em seus sonhos, em suas muitas tristezas e poucas alegrias. Um autor sempre contará a história de sua vida, de um jeito ou de outro, senão ela toda, talvez pedaços. Um autor sempre escolherá personagens para fazer seu papel, porém sempre será ele, o autor.

Olha, eu amei o PAULO HONÓRIO. Amei sua história triste e real. Amei suas impossibilidades, amei sua ternura para sempre massacrada, amei sua simploriedade, sua coragem, sua solidão, seu ser do jeito que era, do jeito que o fizeram, do jeito que a vida o tratou e o obrigou a ser. Havia ternura dentro dele, ternura que fora destruída, mas que ainda assim permanecia tentando escapar pelos poros. A brutalidade encobria a ternura. E ele bem que tentou. Ao fim, PAULO HONÓRIO conclui que é “um homem incapaz de imaginação, e as coisas boas que mencionara vinham destacadas, nunca se juntando para formar um ser completo.”  

“Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo. E não estou habituado a justificar-me, está ouvindo?” Caro Graciliano, essa frase de Paulo Honório fez-me lembrar de meu pai, que era um homem pacato, bom, educado ao extremo. Certa vez, ele perdeu as estribeiras quando instigado e se mostrou como era por dentro, pôs para fora o verdadeiro, o escondido, o que fora ensinado a ser assim para agradar a todos. Até que enfim uma rebeldia se mostrava. E ele disse sua verdade, “fiz porque fiz e pronto”.

Agora, Graciliano, entendo suas palavras quando disse em uma carta para sua irmã que escrever é sangue, é carne, e que além disso, não há nada. E mais ainda, que nossas personagens são pedaços de nós mesmos, e que só podemos expor o que somos. É a grande verdade.  

Obrigada Graciliano por escrever um livro tão humano, tão verdadeiro porque não é uma história de bandidos e mocinhos, é uma história de gente, é uma história de vida real, de vida como ela é, para uns, fácil, para outros muito difícil. No final todos se igualam mesmo.

Obrigada pela sinceridade de PAULO HONÓRIO, que ao ter a primeira discussão com Madalena, oito dias depois do casamento, confessa para si mesmo: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste”. E em outra passagem: “Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar”.

Obrigada pela beleza dessas confissões, pela minha sensibilidade exacerbada ser plenamente satisfeita por este livro. Assim é que os livros deveriam ser. Mais do que a psicanálise, os livros deveriam ser capazes de transformar a vida da gente.

A você, GRACILIANO RAMOS, minha gratidão infinita.  

DIVAGAÇÕES NA CADEIRA DO BARBEIRO


 

Já não frequento mais salões de cabeleireiro há um bom tempo. Vinha eu apressadamente   no último verão, me consumindo de cansaço e suor, quando dei com minha imagem numa porta espelhada: suspirei aborrecida com a imagem de meus cabelos. Aquela franja longa e pesada já estava me dando nos nervos. Qualquer hora corto tudo curtinho, pensei comigo. Foi aí que passei em frente a um barbeiro, barbeiro mesmo de cortar cabelos e bigodes de homens. É hoje! Entrei decidida e perguntei ao simpático rapaz: você cortaria meu cabelo? Ele titubeou, quis dizer que não, mas acabou assentindo, talvez pelo desespero estampado em meu semblante. Adorei. Virei freguesa e minha irmã também.

Pois bem, da última vez viajei no pensamento enquanto “Maicon” ia cortando mechas brancas que logo cobriram o chão. Eu trazia o celular à mão como todo ser vivente moderno e logo mostrei pra ele uma foto antiga de meu cabelo que estava do jeito que eu mais gostava e pedi meio sem jeito se ele podia fazer igual. Mas o problema é que o cabelo nunca sai igual, talvez parecido, igual não. Fiquei pensando por que é que não. Tá bom, um profissional é diferente de outro, cada um tem um jeito de cortar, certo, mas você pode ir no mesmo cabeleireiro várias vezes e o cabelo vai sair diferente de cada vez. Não adianta levar fotos, afinal, nós nunca somos os mesmos seres de ontem. 

Talvez nossa expectativa quanto ao cabelo seja mais profunda do que possamos imaginar. Desejamos algo que não se limita ao exterior e às vezes nem sabemos realmente o que é. Simplesmente projetamos no cabelo este desejo que misteriosamente nos acomete. Sentar na cadeira de um barbeiro ou de um cabeleireiro traz um simbólico de mudança. Também há que considerar que não somos mais as mesmas, mudamos a cada dia, a cada hora, a cada estação. O branco já não é tão branco, os fios podem ter engrossado ou afinado um pouco, aquela franja traz lembranças de anos atrás e inconscientemente me cobra sentimentos diferentes do que tenho agora.

Será que não viajei demais? Por que tenho sempre que trazer tantas elucubrações malucas? O cabelo dificilmente sai igual, pronto. Ponto pacífico. Sou complicada assim mesmo, e à medida que as mechas vão voando para o chão, meu olhar se queda perdido em pensamentos e lembranças difusas. A porta do inconsciente se abre e eu relaxo deixando as tensões se dissiparem. Tudo bem. Enquanto eu me limitar a querer cabelos iguais aos que outrora tive, nada demais. O pior será quando eu carregar fotos de artistas e cantoras novinhas para meu barbeiro copiar. Isso não. Aí o caso será mais sério.

De qualquer maneira agradeço aqui a gentileza de Maicon Douglas, um perfeito Edward Mãos de Tesoura, ao cortar habilidosamente minhas madeixas me permitindo viajar em divagações mil. Freud que o diga!           

 

 

ELUCUBRAÇÕES NO PROVADOR DA JOKA

 

Hoje estive na Joka procurando um presentinho para minha cunhada que faz aniversário no domingo, dia das eleições. Não encontrei nada que me aprouvesse, aí acabei escolhendo duas calcinhas para mim, belezinhas. Só isso que a senhora procura? Perguntou a gentil atendente. É só. Mas ao me dirigir para o caixa, voltei, sucumbindo àquele famigerado desejo de comprar. Você teria alguma camisa na promoção? Daquela marca carésima que nunca compro, a “Dudalina”? Ah temos sim, e lá foi a moça buscar. Eu fui direto nos tons pastel que sempre me atraem, embora me aconselhem tons mais fortes. Uma camisa azul clarinha e uma rosa clarinha. Um mimo! Algodão egípcio, uma textura dessas que parecem orvalho caindo do céu. Decido experimentar. E lá fui para o provador, vesti a azul. Fiquei encantada. Meu olhar ficou perdido e viajei no tempo, como sempre.

Tudo isso que escrevo aqui, falei para meu marido na hora do almoço. Ele escutou pacientemente, mas como conheço sua dose de paciência, tentei resumir. Bem, disse eu, lá no provador eu fui remetida ao passado, à Aruba, na primeira viagem que fiz com a Sandra. Na semana da viagem chegaram nossos cartões de crédito, quase que os primeiros da agência. Em Aruba, tudo maravilhoso! De manhã no hotel, com as diversas piscinas rodeadas de árvores e plantas ornamentais, amostra dos primeiros resorts daquela época. Lembro-me até de que numa manhã na piscina surgiu um lagarto imenso, coloridíssimo como se tivesse sido pintado, uma beleza de bicho que foi perseguido pelas máquinas fotográficas dos americanos. Pela tarde íamos para o centro de compras, ah que maravilha! A rua dos perfumes, dos quimonos japoneses tipo peignoir, pulseiras indianas e outras lindezas. Para maior liberdade, nós nos separávamos e marcávamos encontro mais tarde numa cafeteria, onde mostrávamos o que tínhamos comprado e tomávamos um delicioso café com creme e saboreávamos tortas mil.

Tive uma infância simples, modesta. Lembro-me de minha mãe que fazia nossos vestidos. Sapatos novos? Ah, uma vez por ano. Mas já alcançávamos os anos 80, e o bendito cartão de crédito virou nossa cabeça. Já tínhamos nosso emprego, nossa independência, e viajamos um tanto, gastamos, mas nada exorbitante porque ricas é que nunca fomos. Agora, para sermos curadas do consumismo, foi e é difícil. Já melhorei muuuito, mas de repente tenho uma recaída, meus olhos brilham com as vitrines e coisas bonitas. Tudo isso eu me lembrava e refletia no provador, lógico que tudo rapidamente como é o pensamento e são as lembranças. A vendedora me esperava lá fora.

Meu marido começou a ficar impaciente: afinal, comprou as camisas?

Calma! Duas camisas eram um exagero! Tá bom, então uma só, a azul ou a rosa? Não, nem uma. Lembrei-me da pobreza dos santos, da freira que ia se mudar de casa em sua Ordem e levava tudo o que ela possuía dentro de uma sacola de pano, o que fez meus olhos marejarem, lembrei-me das pessoas que economizam para pagar um exame particular porque não dá para esperar pelo SUS ou as muitas e muitas pessoas que têm que pagar um aluguel e o dinheiro nunca é suficiente. Lembrei-me do pessoal vendendo balas pelas esquinas, dos pobres de quem não podemos nem devemos desviar os olhos.

E depois vem aquela odiosa pergunta: eu preciso disso? Não, não preciso, na verdade precisar mesmo, preciso de muito pouco, mas tenho tanto! É que as camisas eram tão lindas! A beleza também faz falta! Lembrei-me de Santa Teresa, falando sobre a beleza da pobreza, aquela pobreza que é abraçada só por Deus! Não comprei, prometi para mim mesma: Misa, deixa para a semana que vem. Se ainda estiverem na loja, você compra só uma. Se não estiverem, paciência. Oferece.

De tudo, ficou o comentário engraçado de meu marido: só não entendi o que o lagarto teve a ver com as camisas! Não sei se voltarei à Joca para comprar, todavia, sei que “o justo cai sete vezes ao dia”!  Mas que a azulzinha ficou linda em mim, isso ficou sim!

 

MINHA IDENTIDADE NÃO É DE TODO UMA VERDADE

 

É sempre uma luta árdua o despojamento de si mesmo, vencer os vícios, as más inclinações, o amor às honrarias. Sabemos que nossas inclinações pendem muito mais para o mal do que para o bem. Luto contra muitas más inclinações, preguiça, julgamentos, vaidades. Ah as vaidades! Sou vaidosa, reconheço, dou a mão à palmatória. Tento me cuidar, estar bem apresentada e tal, fazendo o que posso. Não faço loucuras nem gasto horrores até porque minha renda não está com essa bola toda.

Vamos aos fatos. Minha identidade já estava com prazo vencido, passando de dez anos. Naquela minha foto, eu ainda estava com os cabelos tingidos e minha tez logicamente estava mais jovem, nada mais natural, o tempo passa, a gente envelhece. Então, fui com os documentos necessários ao estabelecimento da Prefeitura que agora trata disso. A mocinha, gentilíssima, foi processando tudo lá até que chegou o momento da foto. Ela me instruiu, fiquei olhando para a câmera e logo apareceu minha cara numa tela gigante. Levei um choque! A gente envelhece, eu sei, mas lá naquela tela eu estava escandalosamente velha, parecia ter 135 anos! Brincadeira, mas o fato é que fiquei chocada. Não, eu não estou assim, não quero esta foto velhíssima na minha identidade. Não querooo!

Mocinha, quantas tentativas a gente pode fazer? Ela sorriu compreensiva e disse: quantas a senhora quiser, fique tranquila. Pois bem, tentamos umas três vezes e cada foto parecia uma pior que a outra. Até que me dei por vencida, e desvalida e deprimida. É, não tem jeito de melhorar. Fiquemos com esta última. Fazer o quê? Idade é idade. A moça foi finalizando e quando já estava tudo praticamente pronto, fui acometida por um férreo ímpeto e tal qual um náufrago que avista uma taboa no vasto oceano ou ainda um condenado na forca que implora por um último perdão do rei, pedi uma última vez: desculpe insistir, mas será que ainda dá para uma última tentativa de foto melhor? Ou quem sabe eu posso fazer um selfie, meus selfies são uma belezinha, quer ver? Claro que foi brincadeira, mas como costuma dizer meu marido sobre um ditado de sua velha sogra portuguesa: “é brincando que se dizem as grandes verdades.” A moça colocou um pouco de dificuldade, disse que teríamos que recomeçar tudo, mas enfim, assentiu. Ficou a quarta foto, nem pior nem melhor que as outras três, porém, serviu para eu ir me acostumando com a foto real, nua e crua. Afinal, a gente se acostuma com tudo na vida.

Bem, como eu disse em um poema, a carteira de identidade não é de todo uma verdade. Lá está meu nome, de meu pai, minha mãe, o dia, mês e ano que nasci. Mas não fala das dores que sofri, das alegrias que vivi. Na identidade, não consta aquela saudade daquela cidade que eu perdi. Lá não estão minhas lágrimas, meus sonhos, minha fala, minhas lembranças, minha história que escrevo todos os dias. Não, minha identidade não é de todo uma verdade. É apenas um papel, um simulacro do que eu sou. A informação é correta, mas não diz que sou poeta. Falta quase tudo nesta triste gravura. Falta ternura.

A identidade não é de todo uma verdade, só tem duas verdades verdadeiríssimas, a data de nascimento que não mente e a foto que não a deixa mentir. Tudo isso realmente aconteceu, não falo mentira, só costuro e bordo um pouco, querendo dizer que exagero ao escrever porque quem escreve aumenta um tanto e também brinco muito para a vida não ficar tão difícil.