sábado, 30 de abril de 2016

Sant'Ana






Seu nome era Sant’Ana, pelo menos assim era chamada. Foi uma mulher inesquecível. Alta, magra. Já mais velha ... quantos anos teria? Difícil dizer, naquela época as pessoas envelheciam tão cedo e Sant’Ana não possuía documentos. Morava sozinha numa das casinhas da Vila de São Vicente desde não sei quando. Sant’Ana caiu nas graças de minha mãe que se lembrava dela a vida toda com muita admiração. Ela chegava a nossa casa para fazer algum trabalho como lavar e passar roupas ou mesmo cozinhar. Não falava, era surda e muda. Fazia gestos para se comunicar. Minha mãe que sempre foi mulher religiosa e muito enamorada de Deus, ficava encantada com Sant’Ana quando ela entrava pela nossa casa. Ela se inclinava numa reverência piedosíssima diante de cada imagem de santo e de cada cruz e permanecia alguns momentos com as mãos cruzadas no peito em profundo silêncio que já era seu. E olha que mais imagens e quadros de santos que em nossa casa, só na igreja matriz. Sant’Ana não falava, só pensava. Quando entrava na igreja, isso eu bem me lembro, ela ia de santo em santo naquele andar piedoso e inclinava-se cheia de veneração, sempre no silêncio sagrado do seu jeito de viver.
Às vezes, eu que falo muito, penso como deve ser gostoso descansar no silêncio e peço, Nossa Senhora, me ensina o seu silêncio e fazer reverências como as de Sant’Ana..

As reverências de Sant’Ana eram verdadeiríssimas. Acho que Sant’Ana era santa. Tomara que lá no céu, ela e minha mãe estejam juntas fazendo santas reverências diante de Deus Santíssimo. Amém.

terça-feira, 26 de abril de 2016

OS POBRES



            A moça acordou, tomou um banho quentinho. Depois desceu e tomou seu café da manhã: ovo quente, café preto com torradas, manteiga e mel. Abotoou o casaco de lã pura, enrolou o cachecol no pescoço e saiu animada para trabalhar. Cantarolava qualquer coisa baixinho, estava feliz à toa, a vida estava tão boa!
A virar a esquina, quando começava a descer a rua de morro, topou com aquela gente maltrapilha. Era uma família de pobres, talvez umas oito ou dez pessoas, alguns já adolescentes, outros mais novinhos, um bebê que era sacudido no colo da menina de onze ou doze anos que poderia ser a mais velha. Não tinham agasalho, e três deles choravam alto, enquanto mãe desferia murros em suas costas e cabeças. A mulher não chorava por fora, mas chorava por dentro porque sua fisionomia crispada revelava um intenso sofrimento. Ela e um dos filhos carregavam o que parecia ser sua mudança: algumas tralhas embrulhadas em panos. Era tudo o que possuíam.  
A moça tiritava de frio e a visão daquelas crianças quase nuas era insuportável. De onde viriam? Era tão cedo, as crianças deviam estar com sono também. A mulher praguejava e batia nos pequenos que choravam. A moça foi perto dela, pôs a mão em seu ombro? De onde a senhora vem? As crianças estão com frio. A mulher lançou um olhar agudo para aquela estranha bem agasalhada que nada sabia da vida, da miséria, dos pecados dos ricos que têm muito, dos que nada repartem, dos que acumulam e exploram os mais pobres. Olhou com ódio, ódio puro. A moça recuou. Mas não podia deixar que se fossem assim. As poucas pessoas que passavam por eles, de carro ou a pé, viravam o rosto e seguiam em frente, longe dos olhos, longe do coração. A pobreza e o sofrimento são difíceis de se ver, imagine de se viver.
Mas a moça foi junto com eles. Estava com vontade de chorar e sentia o café da manhã embrulhar o estômago. Era preciso salvá-los. Entendeu. Foram despejados, certamente. Foram acordados no meio da madrugada e enxotados como cães de rua. Os cães da casa estavam aquecidos no canil, e tinham comida e água. Mas eles não. A mulher em desespero teve que acordar os filhos, um por um, com murros para descarregar a mágoa, para que aprendessem como a vida é injusta. Saíram assim, com a roupa do corpo, quase que nem roupa tinham. Os pequenos tiritavam de frio. A moça já estava perto do local de emprego. Não podia se atrasar. E o que mais podia fazer? Bater na casa do padre? Na casa do prefeito? De repente, viu a rodoviária, sim, lá tinha café com leite quente para todos. A mulher ainda olhava para ela com ódio. A moça tirou tudo o que tinha na carteira. Olha, pega, disse ela à mulher sofrida. Compre um café com leite para as crianças, não bata nelas, elas não têm culpa. A mulher pegou o dinheiro, abaixou a cabeça. Tudo o que queria era uma cama quente, era um sentido pra sua vida tão cruel.
A moça abaixou a cabeça também. Pensou em como o mundo estava errado, como os ricos tinham tanto e os pobres nada. Aquela mulher não tinha nada, apenas filhos envoltos em trapos. As crianças choravam porque queriam dormir aquecidos, queriam um leite quente, queriam brincar, ir à escola, queriam ser felizes. Não era tão difícil assim, se todo mundo fizesse um pouco.  Entrou no banco. Olhou para o relógio, para as caras dos colegas que contavam piadas antes do expediente. Chegou, interrompeu as piadas e os risos e contou a história dos pobres. Fez-se um silêncio, até que uma colega disse, um tanto contrariada:
- Também, esse povo só sabe fazer filho, pra que fazer tantos filhos pra deixar aí sofrendo?
Um outro colega falou:
- Não fica assim, querida, Jesus mesmo falou que pobres sempre teremos...

A moça se arrependeu de ter falado sobre o assunto, foi saindo de mansinho, foi para o banheiro, chorou, lavou o rosto. Respirou fundo e foi trabalhar. Eles não entendiam, ou ela é que não entendia mais o mundo. Trabalhou, viu as contas abarrotadas de dinheiro dos ricos. E pensou nos pobres, nas crianças, naquela menina de uns onze ou doze anos que chorava e recebia murros da mãe. Ela própria havia chorado muito na mudança de cidade, quando tinha por essa idade. A mãe não a consolou, ficou brava, mas não bateu nela, e depois ela sempre teve uma casa, uma cama, uma comida boa. Nunca a vida lhe pareceu tão dura, tão cruel. Balançou a cabeça, suspirou, e pensou: por onde estariam agora, para onde iriam os pobres?  

sábado, 23 de abril de 2016

De Misa para teisa Rosa e as outras meninas lindas





Passo os olhos pelas postagens neste estranho mundo do Facebook, vejo uma foto linda, em preto e branco. Cinco moças sorridentes exibem sorrisos, mais do que sorrisos, risos despudorados de alegria. Não fazem pose, sem dúvida é uma foto natural. Sigo em frente, vejo uma coisa, outra. De repente paro. Rolo a barra para cima. Volto na foto. Já conheço este velho aceno dentro de mim. Tal como um detetive que não perde a mania de farejar indícios de um possível crime, minha sensibilidade sempre movida pela busca de ternura é ativada por um alarme interior. Fico estática diante da foto. Meu coração bate forte. É aquela respiração ofegante dos arqueólogos que tremem as mãos ao pegar o pincel e tirar a poeira do objeto de um milhão de anos. É um tesouro, e fui eu que achei. Esta foto tem algo mais, meu faro sensível já tem certeza, não erra nunca. Não posso deixar passar batido. Aqui tem coisa, quero dizer, aqui tem ternura pura, dessas que enchem os olhos e o coração. Convoco as palavras. Meninas! Avante ao trabalho!
Olho para os rostos. Não as conheço, a não ser por uma delas que é mulher de um primo meu, uma garota adorável. Entretanto, as outras têm feições que não me são estranhas, digamos que são coisas da genética, algo que denuncia sua ascendência, traços atávicos, jeitos, olhares, enfim, coisas que fariam minha mãe dizer: “parece gente dos Lopes, ou, lembra os Abreu, ou ainda, tem qualquer coisa dos Mendonça”. Não as conheço, de fato, mas aí é que está o encanto, o supor, o inventar, o imaginar. Para mim, já são personagens que já fazem parte de minhas histórias. Foram colegas de escola, mais do que isso, tornaram-se amigas, fizeram planos para o futuro, trocaram confidências, compartilharam segredos, lágrimas. Tinham códigos que só elas compreenderiam, quase uma linguagem própria, ininteligível para os estranhos, objeto de estudo que faria os linguistas delirarem em suas teses.  
Foi um encontro, um aniversário, ou uma festa, um encontro de amigas, isso. Mas o motivo não importa, tanto faz. A foto captada num momento passado torna-se presente para sempre, aquela alegria devidamente registrada para a posteridade. Imagino que suas filhas ou suas netas um dia olharão para a foto e dirão encantadas: olha, que lindas! Assim como eu hoje olho as fotos antigas e, de olhos fechados, retomo a cena, tal qual num set de filmagem. Foi assim que chamei de “Vida” uma foto de primos e irmãos de minha mãe. Dois rapazes ajoelhados e três em pé exibem sorrisos radiantes. Comentando com meu tio já velhinho há muitos anos, ele me disse: “éramos pobres, sem um tostão no bolso, trabalhávamos na canjiqueira, mas éramos jovens, bonitos e felizes”. Nunca me esqueci.
 As meninas da foto já voltaram para suas vidas, para seu dia a dia, para seu trabalho, para seus filhos. Os momentos difíceis vêm e vão como sempre têm vindo para todos nesta vida incerta, caótica e maravilhosa.  Nada garante que os sorrisos perdurem, não, ninguém garante nada nesta vida, a não ser neste exato momento em que eu própria sorrio enquanto escrevo e observo a vida pulsando nesses rostos bonitos e semblantes felizes. Mas para os momentos difíceis não faltarão abraços apertados, mãos entrelaçadas e a ternura, a bendita ternura, sem a qual não posso viver.

Parabéns meninas! Parabéns pela foto! Parabéns pelos sorrisos que me encantaram! Vocês me emocionaram!

quinta-feira, 21 de abril de 2016

O homem do chapéu





            Eu bem sei. Vocês não vão me acreditar! Foi numa noite dessas. Andava eu pelo apartamento feito um bicho acuado, de um lado para o outro, sem vontade de dormir. Cismei de dar uma volta para ver se o sono chegava. Coisa perigosa, afinal os tempos são outros. Mas assim mesmo fui. A noite estava deliciosamente quente. Arrisquei uma volta pelo quarteirão. Percebi que o poste da esquina estava com a lâmpada queimada. Tão tarde, mas não vou me demorar, pensei eu. Dois ou três jovens passavam com suas alegrias e rumores. Sorri na minha solidão, pensando na juventude despreocupada e feliz. A algazarra dos jovens foi ficando cada vez mais longe, até que não ouvi mais nenhum som.
 Pensei em muitos assuntos, ponderei algumas questões e quando dei por mim, percebi o adiantado da hora. Agora, já bem tarde, a rua estava deserta. Fiz meia volta e peguei o caminho de casa. O curioso é que já tendo andado bastante, parecia que eu estava no mesmo lugar. Mas que diabos era aquilo? Andava, andava e a caminhada não rendia. Senti um calafrio na espinha. Apertei o passo. Lembrei-me do aconchego de casa, já arrependida de ter saído assim, tão irresponsavelmente.
Algo me fez olhar para trás. Lá bem longe vinha alguém. Era um homem. Um homem magro e alto. Usava terno e chapéu. Coisa esquisita! Não mais existem homens de chapéu! E muito menos a esta hora da noite. Senti um pavor sem remédio e apertei ainda mais o passo. Mais adiante, olhei outra vez para trás. Lá vinha ele, só que agora estava mais perto de mim. Tentei correr. Inútil. Minhas pernas não obedeciam, como que programadas para uma única velocidade, igual a das esteiras rolantes. Quis olhar para trás, é melhor não, pensei eu, mas não resisti. Aterrorizada, vi que o homem ganhava espaço, agora já há poucos metros de mim. Minha respiração ficou difícil, o suor já escorria pela minha testa, queria gritar, mas engoli o grito.  Desejei ardentemente que os rapazes alegres voltassem. Ah! já podia avistar meu prédio. Vou conseguir! Ainda faltava uma pequena ladeira. Passei pelo poste apagado. Agora já podia jurar que o homem me alcançava. Reunindo o máximo de coragem, olhei para trás. Juro que é verdade. O homem estava bem perto, bem perto e que Deus me livre, ele estava agora da altura do poste. Caminhava elegantemente na sua magreza. Suas pernas eram tão compridas que lembravam aquelas pernas de pau que os artistas usam no circo. Eu tremia toda. Alcancei meu portão. Não mais olhei para trás. Entrei em casa arrepiada e enlouquecida. Que homem era aquele? Eu bem sei. Vocês não vão acreditar.  Foi numa noite dessas...             

                                                            

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Crueldade com animais




            Há poucos dias vi a postagem de uma amiga no Face em que ela relatava, revoltada, uma cena de crueldade com animais. Em nossa cidade, à rua Cesário Alvim um cavalo era duramente espancado pelo seu condutor que exigia dele um esforço já acima de suas possibilidades. Talvez o pobre animal se sentisse cansado demais pelo peso excessivo que carregava, talvez estivesse trabalhando desde as primeiras horas do dia, com sede e sem nenhum descanso. São inúmeras e repetidas cenas de crueldade que temos assistido pela televisão como a de uma mulher que incitava o filho a maltratar um cãozinho pisando nele e o jogando de encontro à parede. E por aí vai. Essas cenas de barbárie não são raras e nos causam horror. É realmente muito difícil entender o que se passa na cabeça e no coração de indivíduos como esses que, ao que parece, devem sentir prazer ao torturar animais. Bem dizem que quem é cruel com os animais, certamente é também cruel com as pessoas.
            Mas essa questão não é simples, na verdade é muito mais complexa do que imaginamos porque definir crueldade varia de pessoa para pessoa. Há os que consideram o abate de gado para a produção de carne tão cruel quanto maltratar um cão ou mesmo fazer experimentos científicos que envolvem bichos. Afinal, não seria hipocrisia combater os maus tratos para com os animais e se fartar com um bife suculento na refeição? Pois é. O que os olhos não veem o coração não sente. Sempre me lembro do comentário de meu marido que absorto, refletia enquanto esperávamos na fila do açougue: “pode chegar o dia em que malvados alienígenas governem nosso planeta e então serão nossas pernas e cabeças que poderão estar dependuradas nos seus açougues”. Nunca mais comi um bife com o sabor de antigamente.
            E se fôssemos nós os caçados, nós os humilhados? Nós, os explorados e abatidos? Lembrei-me do filme “O planeta dos macacos” que me impressionou muito na época e me fez refletir sobre o inverso da situação A literatura nos dá outros exemplos fantásticos. O livro “A revolução dos bichos” (1945), de George Orwell, um libertário com total aversão a toda espécie de autoritarismo, figura entre os cem melhores da língua inglesa. Embora o objetivo do autor fosse fazer uma sátira à União Soviética comunista, o livro todo conta as peripécias dos animais de uma fazenda, que incentivados por um velho porco, se rebelam e “tomam o poder”, concretizando o sonho de serem governados por eles mesmos. Estabelecem daí por diante sete mandamentos dos animais, entre eles, considerar “qualquer coisa que ande sobre duas patas um inimigo e qualquer coisa que ande sobre quatro patas, ou tenha asas, um amigo”. Mas a empreitada não tem sucesso porque de tanto conviver com os homens eles aprendem a criar uma sociedade tão injusta quanto a dos humanos. 
            E eu não poderia deixar de citar o memorável conto de Clarice Lispector, “Uma galinha”. A família decide matar a galinha para o almoço do dia. A pobre ave que talvez trouxesse um anseio de liberdade no peito, alça um voo curto e consegue fugir, pulando pelos telhados. O dono da casa, impulsionado pelo seu anseio de conquista, galgando um muro aqui e outro ali, logrou trazer a galinha de volta. “Sozinha no mundo, sem pai nem mãe”, rodeada por gente estranha, a galinha sofre, se aninha no meio da cozinha e põe um ovo, decerto prematuro pelo susto. A menina da casa exclama: “Mamãe, mamãe, não mate a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem”. Todos são tocados pelo acontecido, intuem algo de sobrenatural e decidem pela vida da galinha, que daquele dia em diante passa a ser a rainha da casa. Até que um dia ela não escapa, pois finalmente decidem transformá-la em refeição. 

 O dicionário nos diz que animal é “um ser vivo organizado e dotado de sensibilidade”. Os animais são sensíveis e sofrem. Em determinado momento do conto, Clarice Lispector diz: “Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser”. Assim também são os cavalos, os bois, os touros, os cães, os gatos, os elefantes e todos os outros animais que merecem nossos cuidados, nosso carinho e nosso respeito.  

segunda-feira, 18 de abril de 2016

No Céu (homenagem à Naná)






Maria do Céu era a própria santinha aqui na terra. Maior pureza e simplicidade, impossível de achar em alguém. Era quase uma criança. Ninguém, mas ninguém mesmo podia falar isso que fosse dela durante sua vida inteirinha. Desde menina, viveu para fazer o bem. Simplicíssima, era risonha, não tinha boca para nada, como se costuma dizer. Sua maior alegria era fazer os trabalhos de casa, varrer, cozinhar, passar, sempre cantando músicas religiosas, é claro. A hora melhor do dia era de tardezinha quando iam rezar o terço.
Cada vez que morria alguém mais velho da família, Maria do Céu ficava conjeturando como devia ser a festa lá no céu quando essa pessoa chegava. Aí não se cansava de imaginar, vendo o avô, a avó, o pai, de quem pouco se lembrava, enfim, todos eles recebendo o mais novo membro da família celeste. Imaginava Nossa Senhora em pessoa trazendo um assado para o almoço festivo e tudo o que queria era varrer o chão do céu, tudo bem limpinho.  Morria de inveja de quem morria, e achando que essa inveja era pecado, tratava de contar ao padre na próxima confissão.
Já mais velha e sempre na mesma pureza de menina, aconteceu de Maria do Céu ouvir o padre na igreja falar em “passaporte para o céu”. Sem compreender que o padre falava de virtudes, ficou preocupadíssima porque procurando entre seus papéis e os da mãe falecida, não encontrou nada que se parecesse com um passaporte. Teve medo de perguntar para os parentes se tinham tal documento e se fosse só ela que não? Maria do Céu foi ficando triste até que contou para uma prima mais chegada o motivo de sua preocupação. Mesmo mais tranquila com a explicação da prima, ainda procurava pelo documento que fosse o passaporte para o céu, não custava nada garantir a entrada no reino celeste.
Perguntava sempre para a prima, “vamos ver todo mundo lá, não é?” A prima já sabia do que se tratava, mas perguntava, “onde?” “No céu”, ela respondia. A prima explicava, “vamos Maria, mas não é bem assim do jeito que você pensa, todos vão estar, mas é um corpo glorioso, não é bem o corpo como aqui na Terra, é o espírito”. Maria não se conformava, “mas como é que vou reconhecer a mamãe se não tem corpo?” A prima, paciente, tentava tranquilizar Maria do Céu: “Maria, não se preocupe, você vai saber que é ela, não precisa do corpo”. Isso era demais científico e misterioso para Maria. “Mas no corpo glorioso eu não vou poder ver aquele cabelo bonito da mamãe, não vou ouvir a voz dela? Eu acho que eu prefiro o corpo daqui, do jeito que é, é que a gente já está acostumada”. Aí a prima desistia, “vai sim, Maria, vai sim. Tudo o que você quiser, Deus não vai nunca negar e Nossa Senhora vai preparar um lugar de honra pra você na mesa do banquete”. E isso a prima dizia, querendo ela mesma também ver a própria a mãe do jeitinho que era aqui na terra. Seria tão bom!     


sábado, 16 de abril de 2016

Poema difícil




Eu  queria um belo poema escrever
Uma simples e triste elegia ou uma ode de ser ou não ser.                                              

Por que é que o poeta na ânsia de poetar
Arranca da alma dileta seu mais profundo pesar?

Meu poema será outro. Decidido.
Não quero uma triste elegia nem ode em tom deprimido.

Preparo meu poema com o lápis imóvel na mão.
Espero pelo difícil tema. Inútil. Não tenho inspiração.

Abro livros, procuro – Drummond, Bandeira – Que canseira!
Baudelaire, Mallarmé, João Cabral – branco geral!

Leio “O Corvo” – será Poe? Não, não quero falar de dor!
Mas é lindo! Supremo! Um primor! E ainda fala de amor!

Eureca! Achei a saída! Poetar é dura lida,
Carece chamar os poéticos a trabalhar.

Vogais espertas despertam
Consoantes preguiçosas espreguiçam
Metros cambaleantes tropeçam
Ritmos bêbados soluçam
Pés perdidos se acham
Filas de ictos flácidos se esforçam
Cesuras se assentam
Palavras prontas se apresentam
Sentidos e emoções suspiram
E versos livres se formam.

Todos a postos dispostos estão.
No entanto, reluto, reflito, relaxo –
Meu poema tem que ser do coração.
Vou compor uma elegia ou uma ode de alegria ou de dor
Mas tem que ter ironia, amor e
Muito, muito senso de humor!


                                                                                  

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Tecnologia




É fato sabido que os jovens e até crianças bem pequenas têm uma incrível facilidade para lidar com a tecnologia, mexendo com celulares, computadores, e aparelhos similares. Mas percebo, a julgar por mim e outras pessoas de minha geração, que esta facilidade não é para a maioria de nós. E confesso que fico até consolada quando vejo alguém até mais novo do que eu catando milho no teclado do celular para enviar uma mensagem. Redes sociais, wahtsap, huumm, huumm ...  torci o nariz e custei muito a aceitar. Não fosse a insistência de uma sobrinha até hoje não teria aderido. Mas a menina me convenceu, e ela própria criou minha página no Facebook, fez tudo pra mim. E outra sobrinha veio até minha casa para criar um blog para eu dispor meus contos e crônicas. Que bom! Deus não me deu filhos, mas ótimas sobrinhas!
No início deixei a página do Facebook quieta lá num canto. Aos poucos fui postando uma coisa, outra, e não é que hoje eu posto minhas crônicas com ilustrações, minhas fotos, fotos de minha família e amigos em encontros memoráveis! Ah, e também fotos de minha mãe jovenzinha passeando elegantíssima, lindíssima em sua juventude em Belo Horizonte.
Bom, e no dia a dia tudo vai caminhando bem até que bato o dedo em uma tecla qualquer e consigo sumir com tudo. Aí fico sem pai nem mãe e alguém tem que me socorrer. Constato que meu sucesso com a tecnologia moderna se restringe apenas ao uso dos aparelhos, e aí não estão incluídos os quesitos sanar problemas ou explorar mais possibilidades das geringonças. Entro em parafuso.
E foi por aí que meu celular amanheceu um dia, sem mais nem menos, me falando que não era mais possível acessar o wahtsap porque aquela versão estava obsoleta. Eu entrei em pânico! Como vou viver sem acessar o whatsap? Calma Misa, calma. Respira fundo. Tudo bem. Percebi uma pergunta que me incentivava a seguir em frente: “instalar a nova versão?” Sim, respondi, é claro que sim, afinal era preciso atualizar. Aí vem a resposta: “Não é possível atualizar, não há espaço suficiente”. Tratei de apagar um monte de coisas que vi pela frente: filmes, fotos, mensagens. Bem, sumiu tudo isso e muito mais. Não acreditei que aquilo estava acontecendo, depois, mais calma, dei-me por vencida e fui em busca de ajuda profissional, uma vez que as sobrinhas não estão por perto. 
Primeiramente fui numa loja do ramo. O cara, educado, disse que eu teria que deixar o aparelho lá. Ele iria formatar, afinal, o celular é um computador e como tal, às vezes precisa ser formatado. Mas para instalar o facebook, o whatsap, e outras coisas que eu havia deletado, seria necessário buscar outros meios, pois a loja não fornecia este serviço. Aí não, pensei, eu quero alguém que faça tudo. Então andei mais por aí e achei um lugar muito legal.  Uma turma de jovens bem novinhos mesmo, todos atendendo com gentileza e sorriso no rosto. Expliquei o caso para a Danielly, uma garota esperta que pegou meu celular e clica aqui, clica ali, digita com aquela rapidez inacreditável, e vapt vupt. O celular ficou novinho em folha, sem formatar, com os ícones principais na capa. Nunca vi destreza igual. Barbaridade!
E tudo isso, ao som de Cravo e Canela de Anita. E todos balançam o corpo pra lá, pra cá, e cantam juntos todas as sílabas, palavras e frases da música. Não se distingue mais qual a voz da cantora e qual a da moçada porque cantam em uníssono, respeitando cada paradinha da cantora, cada respiração: “Tua pele traz o cheiro de jasmim, é teu perfume, flor, cravo, canela e alecrim ...”  Meus agradecimentos à Danielly, Ronaldo, Leandra e Tamires, carinhosamente apelidada “Tamiroca”. Oh juventude fantástica da “Shop-Cell”!         

            

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Cura para depressão






Eu ainda era bem novinha quando acompanhei minha mãe numa cidade mais ou menos próxima onde atendia um médico diferente. Ele era um clínico geral, mas que ficara mais ou menos famoso por enxergar a alma das pessoas que o procuravam. E quem enxerga a alma, enxerga tudo porque as doenças não começam no corpo, surgem lá onde normalmente não se vê, apurando em fogo brando até que se derramam. Dizem que o corpo fala, ou seja, quando a dor física grita é porque o mal da alma incomodou tanto que saiu das profundezas que não vemos, mas existem.
Na sala de espera estavam diversas pessoas e entre elas uma mulher magrinha que enxugava os olhos a todo momento. Minha mãe logo entabulou conversa com os presentes, falava de onde vinha, ouvia as queixas dos outros e eu escutava tudo. Quando a mulher magrinha e triste foi chamada, todos pararam de falar, num respeito compassivo e solidário para acompanhar a entrada na sala do médico. Eu, para me distrair um pouco, saí para o jardim em busca de uma brincadeira, um passeio. Não sabia que brincava a poucos metros da janela da sala onde estava o médico atendendo. Escutei e nunca mais me esqueci.
A mulher mais chorava do que falava e o médico ia arrancando as palavras com toda a paciência, uma por uma, como se faz com pele de machucado quando tem que ser lavado e curado, pois tudo dói. Foi quando eu ouvi a pergunta que ele fez à paciente, qual foi o dia mais feliz da sua vida? Ela, com voz de choro, demorou um pouco, mas respondeu sem qualquer dúvida, o dia de meu casamento. Ele tornou a perguntar, e a senhora se lembra de tudo? Conta pra mim como foi.
No início a voz ainda parecia chorosa, depois as palavras foram se aprumando, se reunindo, já mais enxutas, e a mulher magrinha animou-se, discorrendo sobre o dia mais feliz de sua vida. Ela contou sobre as primas que vieram de fora dois dias antes da festa. A gente ficava conversando até tarde da noite sentada perto do fogão de lenha por causa do frio. Ali a gente morria de rir e como todas ainda eram moças solteiras e puras, o assunto é claro que era sobre a noite de núpcias, coisa que deixava todas nós nervosas. Na véspera mesmo eu tive que ir dormir mais cedo para estar bem no dia seguinte, mas só dormi depois de uma caneca de chá de erva-cidreira. O dia mesmo foi bom demais. Meu vestido estava dependurado na porta, que era bem alta para não ficar amassado. Todas elas me ajudaram a vestir e a Nicinha, que era a mais jeitosa, arrumou meu cabelo, passou um pó-de-arroz e um batom. Meu noivo já esperava na igreja e eu fui a pé mesmo, dando o braço pro meu pai. Todo mundo tava nas janelas. Foi tão bom, maravilhoso demais. A entrada na igreja foi a coisa mais bonita que já aconteceu comigo, deu um pouco de nervoso, é claro, mas eu dei conta. Depois foi a festa, o churrasco, o bolo de casamento que a dona Santa fez. Vivemos felizes, eu e o Zé Mauro por tantos anos, tivemos três meninos que hoje já são tudo casados, mas moram tão longe! Nem vejo bem os netos. O mais velho meu é a cara do pai. O Zé Mauro ficou doente no ano passado, era coisa grave, aquela doença ruim. Ele foi embora me deixando sozinha. Não parei mais de chorar. Já perdi pai, mãe, até a Nicinha também já morreu. Agora apareceu uma dor aqui do lado da costela e também uma dor de cabeça que não me deixa dormir. A vida é triste... Nesse ponto, sua voz tropeçou e eu ouvia apenas o fungar do nariz. O médico, paciente e bondoso, receitou pra ela alguma coisa, mas principalmente recomendou que ela se lembrasse da véspera e do dia do casamento. Disse que o tempo pra Deus é um só, que esses acontecimentos felizes não tinham passado, isto é, que tinham, tinham, mas que estavam vivos dentro dela e que sempre podiam ser vividos novamente.
Contei isso para minha irmã que não ficou convencida da eficácia do tratamento do médico, pois, segundo ela, lembrar dias felizes é abrir a ferida da saudade todos os dias, o que é bom mesmo é deixar purgar a dor, luto é luto. Mas, passados muitos anos, eu entendi que ela precisava falar para lembrar e viver de novo, o que não podia era ficar em silêncio. Sei que as palavras se aprumam e se aprontam sempre que convocadas e quando são proferidas, ajudam a curar. Não há depressão que resista ao poder das palavras.

sábado, 9 de abril de 2016

Sobre bois e homens




            Os animais são seres enigmáticos, inteligentes e bem mais intuitivos do que supomos. Quando convivemos com algum deles, podemos perceber isso com clareza. Já estamos acostumados com o cãozinho ou o gatinho que já sabe que estamos chegando e se postam diante da porta nos recebendo com alegria e afeto genuíno, sentimentos que estão gravados em seu olhar. Mas os bois... sim, os bois são seres maravilhosos, já dizia Guimarães Rosa: “As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros [...] Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhes apenas isto: ‘Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!’”.
 Por algum tempo, tivemos dois bois no sítio e pudemos observar seu comportamento, suas reações e mais do que isso, seus sentimentos. Separados de dezenas de bois do sítio vizinho por uma cerca que construímos, não raro observamos que nossos dois bois se aproximavam da cerca para se juntar aos outros bois vizinhos e isso só acontecia quando julgavam que não estávamos por perto, como se quisessem fofocar mais livremente. Imaginamos sua “conversa” silenciosa que parecia dizer:
- e aí, moçada, como é que está o capim do seu lado?
- uma delícia... e o patrão, já foi?
- até que enfim...
Em outras ocasiões, quando deixávamos de ir ao sítio por um tempo maior, invariavelmente, os bois de um lado e de outro, deduzindo que estavam livres para agir, destruíam a cerca e se misturavam como se achassem um desaforo ficarem separados assim. Aliás, se os humanos não suportam ser separados por cercas ou muros, por que é que os animais haveriam de gostar? Certamente, se falam uns com os outros, sua fala devia ser:
- Olha aí, pessoal, pelo jeito, acho que o cara aí não vem mais não...
Vamos lá, todo mundo junto...
- vai que ele volta...
- vai que não volta mais... o pasto é nosso, que mania de fazer cerca pra separar a gente...
            O vizinho adquiriu umas cinco cabeças de búfalos e qual não foi nossa surpresa quando observamos que os búfalos não se misturavam com os bois. Enquanto a turma de bois conversava de cá, os búfalos, cheios de altivez, conversavam de lá. Se fossem para o lago ou para o pasto, cada um ia com seu grupo. Nisso aí percebemos muita coisa dos humanos.
            Certa vez, um dos bois do vizinho caiu de uma ribanceira e, impossibilitado de se levantar, soltava mugidos pungentes, traduzindo dor e sofrimento. Meu sobrinho tentou aliviar o martírio do pobre animal, dando-lhe água na boca e refrescando sua cabeça até que alguma providência fosse tomada. A cena era de comover: um por um, os bovídeos foram chegando de onde estivessem e se juntaram numa roda solidária em volta do irmão moribundo. A cada mugida de dor do boi, todos mugiam dolorosamente, cada hora um e depois todos juntos. Assim permaneceram até que o boi expirasse. Depois se retiraram silenciosamente, sabedores de que deveriam seguir o destino, já nada mais podia ser feito.   
            Sempre temos a tendência de humanizar os animais e aí falamos: parece gente, olha só que inteligência! Talvez os animais, de forma especial, os bois, se isso lhes fosse possível, poderiam ensinar aos homens como ser menos humanos e um pouco mais como eles, mais simples, mais sábios, mais intuitivos. Vivem sem cercas, sem inveja e sem luz elétrica. Cobrem-se com o manto da noite e se levantam com o amanhecer. Comem do que dá a terra e mastigam sua linguagem silenciosa, misteriosa, a dos primórdios dos tempos, quando os homens ainda não habitavam o planeta e ainda não sabiam construir cercas.   

             

quinta-feira, 7 de abril de 2016

HELEN (Uma homenagem à Helena)





            Ainda era cedo quando Helen acordou. Levou algum tempo para se localizar e identificar todos os últimos acontecimentos. Engraçado, pensou, isso já havia acontecido antes, anos atrás, quando fora operada. Ao voltar da anestesia, na sala de recuperação, ficou se esforçando para se lembrar do que acontecera e até mesmo de quem era. Agora havia sido mais rápido. Sim, sou Helen e este é o primeiro dia de minha nova vida. Ficou assim deitada de lado, temendo se mover e perder todo o raciocínio. Precisava pensar, relembrar e refletir. Este era seu primeiro dia separada de fato e de direito de seu marido. Esta é a minha nova cama, meu novo quarto e minha nova casa. A cama simbolizava sua separação. Sou livre, sou uma mulher sozinha. Não pôde deixar de esboçar um sorriso matreiro. Mordeu os lábios, uma mania antiga, e tornou a sorrir. Estava feliz. 
Não havia sido nada fácil, nada é, tudo tem um preço, e a libertação custa muito caro. Parecia estar ouvindo estas palavras de sua amiga, mas enfim tudo passa. Era uma mulher de quarenta e quatro anos e foi preciso coragem para romper com um casamento de quase vinte e quatro. Fechou os olhos e suspirou, precisava segurar um pouco mais este momento, esta sensação de estar liberta. Há muitos anos que seu casamento não existia mais, mas como todas as mulheres de sua geração, ou quase todas, ela esperou, não era corajosa o bastante para tomar essa decisão. Pensou no ex-marido. Casaram-se bem jovens. Nada conheciam de si nem do mundo, e ela nunca conhecera outro homem. Agora, separada dele, não sentia mágoa, nem raiva. Sentia quase uma ternura, como se ele fosse um filho desamparado. Toda a dor provocada pelas incontáveis acusações havia desaparecido. Acabou.
Ficou refletindo. Quando exatamente a separação havia começado? Não se lembrava. Há muito tempo acordava com uma sensação de que lhe faltava algo. Havia necessidade de sentir mais a vida. É verdade que lhe faltava o companheirismo do marido, mas não era bem isto o que procurava, estava certa. Procurava uma realização própria, uma afirmação de sua própria identidade. Tinha o seu trabalho, seu próprio dinheiro e foi então que resolveu voltar aos estudos. Pagou um preço alto por isso. Trabalhava o dia todo, administrava a casa e corria para a faculdade todas as noites. No início quase chegou a desistir. Sentia-se estranha. Os colegas eram bem mais novos. Sentar-se em uma carteira de escola nessa altura de sua vida! Quando era interrogada sobre alguma questão, a voz custava a sair. Depois foi sentindo um imenso prazer. Percebeu que os colegas também sentiam tanto medo quanto ela. Passou a arriscar mais. Leu livros, fez trabalhos. Ouviu relatos surpreendentes. Aprendeu. Mais do que isso. Fez novos amigos. Gente mais nova, gente mais velha. Percebeu que seu mundo podia ser maior do que aquele de antes, de seu trabalho e família.
Sentiu que era uma pessoa diferente, dona de si, que era bom ter um lugar próprio, algo que ninguém lhe podia tirar. Surpreendia-se com os conhecimentos novos! Ah! a cultura, que tesouro! Não parou de estudar. Aí veio a pósgraduação. Analisava mais as situações. Suas conversas não eram mais as mesmas e também por isso teve que pagar um preço. Como sai caro a gente mudar! Algumas amigas se afastaram. Não se sentia culpada. Já havia aprendido que quando a gente muda, as pessoas não gostam. Acostumam-se com o que sempre fomos. Era algo que não podia evitar. Sim, era uma nova pessoa. Até nem tinha mais enxaquecas. Estranho como elas tinham cessado quando decidiu voltar a estudar.
O marido não aceitou, não compreendeu. Ela tinha consciência de que havia tentado salvar esse casamento. Procurou fazê-lo compreender todas as emoções novas que sentia. Queria mesmo que ele pudesse compartilhar tudo isso com ela. Mas foi inútil. Em casa quase não se falavam. Ela tinha necessidade de comentar sobre os estudos e assim incluiu novos amigos em sua vida. Descobriu uma coisa maravilhosa! Gostava de poesia! Como nunca pudera perceber isto? É verdade, pensou, quando era menina, gostava de recitar poesias, mas achava que todas as meninas também gostavam! Passou a frequentar uma sala de poesia e se sentia tão reanimada espiritualmente que mal conseguia dormir. Teimava em ficar relembrando os versos daquela noite. O marido cada vez mais a olhava com estranheza. Tudo isso Helen pensava ainda na mesma posição desde que acordara.
De repente seus pensamentos se voltaram para sua família, seus irmãos. Lembrou-se de sua infância difícil, pobre. Lembrou-se da mãe que perdera ainda criança. Ficou imaginando, se ela ainda fosse viva, o que diria sobre sua separação. Pouco conheceu dela, se fora feliz em seu casamento ou se tivera sonhos. As mulheres naquela época pouco pensavam, apenas cumpriam seu papel, e assim foi com sua mãe. Desejou deitar sua cabeça no colo dela.  Mãe é sempre mãe.
Agora, seus pensamentos voltaram-se novamente para o ex-marido. Lembrou-se do dia em que recebera uma nomeação no trabalho e fora cumprimentada por todos, menos por ele. Depois que terminou os estudos, sentiu-se mais forte para ambicionar uma posição melhor no trabalho. Também decidiu viajar. Optou por fazê-lo sozinha. Precisava dessa prova. E como foi bom, pensou, sorrindo. Lembrou-se de como havia percorrido a pé velhas ruas de cidades da Europa, com uma deliciosa sensação de ser dona do mundo. E como visitou museus, admirando sem pressa, cada quadro, cada peça, com uma preciosa curiosidade. Foi depois da viagem que tomou a irrevogável decisão de se separar. Não havia outro homem em sua vida. Talvez no futuro, quem sabe. É claro que seria bem-vindo. Mas não agora. Agora precisava estar com ela mesma. Ainda queria mais. Muito, muito mais. Lembrou-se de Cecília Meireles...”eu quero mais do que vem nos milagres...” agora chorava. As lágrimas finalmente vieram, quentes, doces. Helen acordava naquele dia sentindo o pulsar de uma nova vida.

                                                                                                                                                                                                                    

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Inocência perdida






            Era para ser um dia feliz! Tinha tudo para ser! A menina saiu de casa saltitante de alegria como era seu costume. De mãos dadas com a empregada, caminhava no calor gostoso do meio da tarde. Iam ao armazém do outro lado da pracinha para comprar açúcar e pó de café. A mãe ficara costurando ao lado do rádio e cantava, perdida em seus devaneios. A empregada tomara como séria obrigação ensinar a menina a assobiar. E naquele dia nada havia de mais importante no mundo do que essa tarefa. A menina juntava os lábios fazendo um biquinho, seguindo à risca tudo o que a empregada ensinava. O armazém era um pouco de tudo. Vendia mantimentos, agasalhos, botinas e também servia aguardente para os homens rudes, da cidade e do campo. A menina, curiosa, assistia a tudo, ávida por novidades. Os homens, já bêbados e quase inconscientes, falavam palavrões, gritavam, guinchavam. A menina, tímida, não tentara mais assobiar e se escondera atrás da empregada.
Mas naquela tarde, algo diferente acontecia. Todos gritavam alto, muito alto, e se amontoavam, se acotovelavam para assistir a um espetáculo dantesco – uma ratazana queimava encharcada de gasolina e acendida feito uma tocha viva! Ninguém queria perder o triste espetáculo, todos disputavam um lugar para melhor acompanhar a cena indecorosa e vil. Gritavam impropérios, batiam palmas e assobiavam forte como se estivessem em um estádio de futebol onde dois times brigavam pela melhor classificação. Sim, era como uma arena, daquelas em que as pessoas, contagiadas pelo delírio da turba furiosa, batiam palmas e berravam enquanto assistiam aos mártires serem estraçalhados e comidos vivos pelos leões famintos. A ratazana, atazanada de dor e ódio, guinchava mais alto que todos, rodopiava em piruetas fantásticas, procurando inutilmente fugir do fogo que, aos poucos, a consumia inteira.
A menina quedara estática, fechara os olhos e tremia, tremia toda, invadida por uma dor enorme, diante da cena absurda e cruel. Agarrava as mãos da empregada com toda a força e a puxava para ir embora, já chorando de medo, de raiva, de horror. Temia que a ratazana ou algum dos homens a alcançasse. Ela só queria assobiar, comprar açúcar e pó de café, ela só queria viver sua infância inocente, agora já maculada por aquele acontecimento ignominioso. A empregada, já mais maltratada pela vida e mais conhecedora das crueldades das pessoas, era movida a ficar, a compartilhar aquela loucura generalizada, sentia-se excitada e tomada pelo frenesi. É verdade que tinha pena da ratazana, mas não tinha sido sua culpa, já estava feito, só restava observar. Sabia que era errado, mas até sentia certo prazer com a cena, pura miséria humana.
A balbúrdia chegava ao auge! Os homens endemoninhados, qual fugidos do inferno sem destino e sem alma, davam vazão a todos seus instintos mais bestiais. Elevavam as garrafas de aguardente para o alto e as emborcavam na garganta, divertindo-se com a proeza. O líquido caía em suas faces com barbas hirsutas, derramava-se pelos cantos das bocas que eles escancaravam em gargalhadas indecentes, mostrando gengivas disformes e dentes podres. Quando não havia mais líquido algum, os demônios arremessavam as garrafas no bicho que, finalmente, já dava sinais de esgotamento em sua terrível agonia, diante de seu iminente fim. Já não guinchava mais, logo estava reduzida a um monte de carvão mal cheiroso. O brutal espetáculo terminara. Os homens loucos, decepcionados pelo fim de sua diversão pecaminosa, entraram no armazém.
A menina voltou chorando para casa, chorava alto, sentia uma dor incontrolável, um medo da vida. Correu para os braços da mãe, que ouvia, atônita o relato da empregada. Por muitas noites a menina teve pesadelos, sonhava com a ratazana em chamas, com os homens horrendos, com seus olhos injetados pelo sangue da bebida e do desvario. Depois de muito tempo, a vida pareceu voltar ao normal. Na frente da casa, a menina assistia aos meninos da rua que brincavam de jogar bolinha de gude. Algumas vezes, algum deles assobiava, o que provocava na menina um estranho calafrio, seu assobio fora assassinado. Lá dentro, a mãe costurava, colada ao rádio que cantava. A menina, antes alegre e saltitante, agora envelhecida e solitária, não sabia, mas sua infância chegara ao fim. Ela invejava a inocência da mãe.      


                                                                                               

sábado, 2 de abril de 2016

Quando os filhos partem mais cedo




Quando estamos diante de uma tragédia por que passam pais que perdem filhos que deveriam ter uma vida toda pela frente, ficamos perplexos e inconformados. É absurdamente incompreensível. Não é o natural, foge à ordem harmônica da vida. O que pensar? O que dizer para essas pessoas? Nada. O silêncio parece ser o mais apropriado, pois jamais poderemos sentir a dor de quem foi atingido por esta tragédia, pelo menos, não na mesma medida. Jamais poderemos avaliar a intensidade e a enormidade de sua dor, só quem perdeu um filho é quem sabe. 
A morte, ainda que velha conhecida, é e sempre será uma estranha para nós, é aquela que cruelmente nos separa de quem amamos, fere nossa alma, rouba-nos a alegria e a frágil ilusão de que podemos proteger nossos queridos. A morte de um filho é absurda e absolutamente insana. Verdade óbvia, e novamente eu repito que só consegue compreender quem já passou por isso. Por mais que digam que “nossos filhos não são nossos filhos [...] que vêm através de nós, mas não de nós” como Gibran já nos alertava sem nos convencer, nossas emoções nos asseguram o contrário: nossos filhos serão eternamente nossos filhos. E se eles se forem antes de nós, ficaremos sem nada, pois é como se nos arrancassem o próprio coração sem dó nem piedade.  
  Como viver daí por diante? Felizmente, na harmonia contraditória da vida, fazemos das tripas o coração porque este já não o temos mais, e seguimos em frente. Afinal, haverá outra coisa a fazer? Quem poderá impedir que amanheça ou que caia a noite? Há coisas que nunca compreenderemos e que sempre estarão fora de nosso controle. Assim, numa necessidade imperiosa de sobrevivência, vamos procurando instintivamente aqui e ali motivos para continuar a caminhada. Às vezes podemos alimentar um passarinho que insiste em chegar até a janela da nossa cozinha e que vai bicando a casquinha de pão como se fosse uma tarefa da qual depende a salvação da humanidade, ou podemos talvez, quem sabe, fazer como uma senhora que conheci e que perdeu um filho - ensinar uma criança a ler. 
Há algum tempo passado eu me emocionei com uma cena maravilhosa e cheia de ternura. Surpreendi uma senhora já idosa que ensinava um menino a ler. O que há de especial nisso? Tudo. Por si só, a cena já é suficientemente grandiosa, pois ver duas pessoas de idades tão diferentes como uma velha senhora e um meninozinho, envolvidos numa interação tão amorosa e gratificante, traz paz para o coração da gente e esperança para o mundo individualista de hoje em dia. Mas não é só isso. O fato é que a senhora ensinava aquele menino a ler justamente no momento mais difícil de sua vida - perdera seu próprio filho caçula há menos de dois meses. Havia provado do cálice mais amargo. 
É verdade que cada pessoa é diferente e assim sendo, cada um reage a seu modo e a seu ritmo às adversidades, mas é sempre bom observar e refletir sobre o jeito de viver de outras pessoas. A senhora que pensava já ter vivido de tudo e passado por tantos sofrimentos, ainda teve que sofrer a dor das dores – a de perder um filho. Outra senhora minha amiga, ao ouvir minhas queixas sobre a falta que me faz sua filha que partiu abruptamente, tentou me consolar, dizendo: Deus é soberano. Esta força fez ecoar em mim outras palavras de Gibran: “Do sofrimento emergem as almas mais fortes. As personalidades mais marcantes estão repletas de cicatrizes”.