quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A coitada da barata




            Um dia comum. Subo, dou bom dia para meu marido que já acordado há horas se entretém em suas atividades. Vou para o lado de fora, e como toda boa dona de casa, melhor dizendo, como toda dona de casa com boas intenções, guardo a louça do dia anterior, arrumo uma coisa ou outra e recolho garrafas de vinho e latinhas de cerveja. A coisa foi animada ontem. Bem, sou meticulosa, portanto, ainda no dia anterior já passei água dentro de cada latinha para não ficar aquele resto de cerveja atraindo moscas. Passo por meu marido mergulhado em suas tarefas, mas paro, sempre tenho alguma coisa para comentar, como algum episódio da reunião do dia anterior, algum sonho bom ou engraçado e às vezes um sonho ruim que me incomodou. Bem, desço com a sacola e vou direto para a porta de onde o lixo será devidamente encaminhado para seu destino.
Neste momento, sinto algo em meu braço, uma ligeira cócega. Imediatamente, um turbilhão logo é acionado dentro de mim, algo parecido como aquela sinere que é disparada quando um tsunami se aproxima da costa do Japão. Desconfio do pior, e sem ter escapatória, olho de soslaio e vejo uma barata grande, daquelas mais feias que podem existir. Em sua inocência ela sobe em meu braço, coitada, talvez e muito provavelmente sem ter a menor ideia de onde está! Pobre barata, para ela meu braço é um lugar qualquer, onde suas pernas podem andar, subir e descer. Tudo se passa em segundos, talvez em um segundo, ou um átimo de segundo. Só sei que o grito de terror, o sacudir o braço e o jogar a sacola para longe acontecem ao mesmo tempo. Mas mesmo aterrorizada, preciso saber que destino a infeliz tomou, detalhe importantíssimo para mim, pois se eu perdê-la, ela vai reaparecer em algum outro lugar, talvez no quarto, enquanto durmo, coisa que não posso nem imaginar. A barata, torno a dizer, coitada, mais aterrorizada do que eu (será?) foge a todo vapor. 
Grito o marido, Mottaaaaaaaaaaa, b a r a t a ! Ele desce no mesmo instante porque conhece a gravidade da situação. Eu tento contar a história toda, desde o início, mania do meu pai, que todos nós lá em casa herdamos, contar tudo, tim-tim-por tim-tim. Ele, que já é de falar menos e o essencial, me interrompe, “para onde ela foi?” Eu mostro, debaixo do fogão, talvez. Digo que vou buscar aquele espirrador, matador de baratas, tenho um em cada cômodo, mas ele já arrastou o fogão, e eu fujo, como uma donzela desprotegida da Idade Média, enquanto meu intrépido herói se prepara para destroçar o dragão. Eu fico atrás da porta do escritório, ouvidos atentos, coração disparado, adrenalina em ebulição, ouço barulhos, mais arrastar de alguma coisa, quando finalmente ouço: pronto, matei! Aí pergunto:
- Bem morta? Insisto, bem morta? Porque já aconteceu da barata não ficar bem morta de outras vezes.
- B e m  m o r t aaaa !!!
- Jogou no lixo?
- Sim.
            E ele começa a cantar aquelas músicas cubanas que adora. Aí concluo que me casei com o homem certo, mais encantado com a vida do que a Elika Takimoto. Ele é o salvador do meu corpo, como diz Adélia Prado, para mim em todos os sentidos, todos mesmo. Apareço trêmula, pisando em ovos, olhos esbugalhados, em frangalhos já tão cedo. Ele me abraça, me acalma, me garante que está tudo bem, repete a mesma ladainha de sempre: olha o seu tamanho e olha o tamanho da barata, argumento totalmente inútil e inválido. De qualquer forma, agradeço a Deus que me mandou o melhor marido exterminador de baratas do mundo.
Eu me pergunto: de onde vem tudo isso, quero dizer, este pavor de baratas? Tenho milhares de histórias de baratas, minhas próprias experiências e de minhas irmãs e de minhas amigas, histórias hilárias, depois que tudo passa, é claro. Reflito: e se essa barata fosse como a do conto de Kafka, se fosse um moço bom, trabalhador que cuidasse da família e num belo dia, tivesse acordado simplesmente transformado nesse inseto asqueroso. Primeiro, o horror da família, depois o fato inevitável de aceitar que aquela coisa era o filho, o irmão, depois a tentativa seguida da impossibilidade de se conviver assim, e por fim o alívio pela morte da barata, ou do moço. E depois da tragédia toda, a vida se descortina maravilhosa, como o do caso do bode no meio da sala, ou seja, todos os outros problemas simplesmente deixaram de existir, estavam livres do infortúnio, e agora são mais felizes do que nunca. Segundo minha naturalista/mística prima, a barata é um ser como outro qualquer, é nossa irmã.
Nem morta!

      

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O príncipe de Tolstoi e Bunker Roy



 Em seu conto, “A manhã de um senhor”, Tolstoi nos apresenta o príncipe Nekliudov, um jovem de ideais nobres que decidiu abandonar a universidade para se consagrar totalmente aos camponeses de sua aldeia. Julgando conhecer sobre a vida e os homens, disse à tia em uma carta que ele tinha o sagrado dever de se preocupar com os setecentos homens pelos quais ele “teria de responder perante Deus”. A tia, de forma delicada, respondeu ao sobrinho que fazer felizes os camponeses não era tarefa simples e que um bom proprietário devia ser severo e frio, coisa que ela estava certa que o rapaz nunca conseguiria. A senhora ainda lhe disse que a pobreza de uns tantos camponeses era mal inevitável e que podia ser apenas remediada, mas não resolvida com os planos pueris do príncipe, ainda que nobres e magníficos. Nekliudov não se intimidou com as palavras da tia e seguiu com seus objetivos. Passado pouco mais de um ano, o príncipe se convenceu de que seus planos não passaram de meras utopias, pois nada conseguiu entre os camponeses que, renitentes e desconfiados, não cooperaram com os empreendimentos do seu senhor. Amargurado e descrente, o príncipe concluiu que a tia estava certa ao dizer que é mais fácil encontrarmos a nossa própria felicidade do que fazermos a felicidade dos outros.   
Pois bem, um abastado indiano chamado Bunker Roy, à semelhança de Nekliudov, sentiu-se impelido a fazer algo pelas aldeias pobres da India e abandonou a vida fácil e rica que poderia ter escolhido em qualquer lugar do mundo. Sua mãe rompeu com ele, não conseguindo compreender como um jovem bem educado nas melhores escolas e universidades, renunciava a tudo para ir trabalhar em uma aldeia. Insistiu ela com o filho, “mas você, que tem o mundo inteiro a seus pés, o que vai fazer lá?” Ao que ele respondeu, “quero ver uma aldeia, viver numa aldeia e cavar poços em uma aldeia”. E assim Bunker Roy construiu uma história de amor, deixando de lado uma educação elitista que quase o destruiu, palavras dele. Em 1965, sem emprego e sem dinheiro, ele viu a fome, a miséria e a morte de seus irmãos indianos. Conviveu com pessoas que ganhavam menos de um dólar por dia. Não se abateu, foi em frente.
Todo esse relato é exibido em um documentário apresentado pelo próprio Bunker Roy, numa simplicidade encantadora. Conta ele que, a despeito da miséria, o que encontrou entre aquela gente pobre foi um manancial dos mais extraordinários conhecimentos e habilidades que raramente são conhecidos, respeitados e trazidos ao conhecimento público justamente pela indiferença do mundo para com os mais pobres. Então, ele quis fundar uma universidade, mas só para os pobres, a UNIVERSIDADE dos PÉS DESCALÇOS. É uma universidade diferente que se caracteriza por um estranho requisito: o candidato tem que saber trabalhar com as mãos, ter uma dignidade de trabalho, uma habilidade que se pode oferecer à comunidade. Quem tem um grau em mestrado ou doutorado ou ainda que vá movido pelo dinheiro, já está desqualificado. Essa universidade deve ensinar e refletir o que os pobres acham importante para a comunidade. Isso foi feito, naturalmente que não de maneira tão fácil, mas com paciência e espírito forte.
Roy e sua equipe conseguiram redefinir o profissionalismo – o profissional é aquela pessoa que desenvolve uma combinação de competência, confiança e crença. Dessa forma, uma parteira ou um oleiro poderiam ser professores universitários, mostrando e ensinando suas habilidades. Nessa singular universidade, o aprendiz é o professor e o professor é o aprendiz. Sem arquitetos ou engenheiros convencionais, eles construíram a primeira universidade em 1986, onde cento e cinquenta pessoas viveram e trabalharam. Roy contou com doze arquitetos de pés descalços, que não sabiam ler nem escrever e também com um padre indiano que só fez oito anos de ensino primário e que mostrou ser a mais competente autoridade em energia solar, pois ele entende do assunto além de qualquer outra pessoa no mundo. A universidade criada é a única em que toda a eletricidade provém da energia solar. Enquanto o sol brilhar, toda energia virá dele, diz Roy numa confiança de fazer inveja.    
As mulheres e crianças receberam um papel preponderante no empreendimento. Aquelas se revelaram competentes e brilhantes engenheiras solares. Muitas crianças não frequentavam a escola anteriormente porque tinham que cuidar das ovelhas e cabras e ainda fazer trabalhos domésticos. Com a Universidade dos Pés Descalços, elas foram incluídas e valorizadas, assistindo a aulas noturnas, onde aprenderam cidadania e democracia, além de como medir uma terra e cuidar de um animal doente. De cinco em cinco anos há eleição entre as crianças para os cargos de Primeiro Ministro, Ministro da Saúde, Ministro da Educação, Ministro da Energia, tudo num processo democrático. Os ministros supervisionam e acompanham 150 escolas com 7.000 alunos. A Primeira Ministra atualmente é uma menina de 12 anos que, de manhã toma conta de 20 cabras e à noite exerce seu cargo junto à Universidade.  
As mulheres se descobriram como verdadeiras engenheiras solares, cobrindo grande parte da India, depois treinando muitas outras mulheres no Afeganistão, África, Serra Leoa e Gâmbia. A beleza disso é que mostraram que sabiam se comunicar perfeitamente, cada qual em sua língua, mas com incrível habilidade gestual. Com a experiência, Roy constatou que era muito difícil treinar os homens porque devido à sua personalidade inquieta, ambiciosa e volúvel, todos eles queriam certificados para procurar empregos nas grandes cidades. Já as mulheres, entre elas, inúmeras avós, mostraram-se comunicativas e interessadas em fazer progredir sua própria aldeia.
A Universidade dos Pés Descalços tem sido um sucesso! Roy e seu pessoal de pés descalços receberam 50.000 dólares do prêmio de Arquitetura Aga Khan e devolveram o dinheiro recebido como prêmio porque se sentiram insultados quando os patrocinadores não acreditaram que não havia arquiteto convencional nos bastidores do projeto. Ali na universidade vivencia-se o estilo de vida de Mahatma Ghandi em que se come no chão, dorme-se no chão e trabalha-se no chão. A realização da Universidade dos Pés Descalços provou que a educação pode ser diferente, respeitando-se a cultura local e valorizando as pessoas em seu próprio lugar. É uma verdadeira mudança de paradigmas e uma revolução na educação que me fez lembrar muito de Paulo Freire.
Voltando ao conto de Tolstoi, o príncipe Nekliudov se decepcionou com a ingratidão dos camponeses e se sentiu infeliz tão logo as dificuldades apareceram, afinal não é fácil lidar com gente. Tolstoi quis justamente focar as misérias humanas, mostrar a complexidade das pessoas e a quase impossibilidade de ajudar de fato os mais desfavorecidos. Com a Universidade dos Pés Descalços, a vida não imitou a arte. A receita? Roy Bunker sabe: um pouco ou muito de paciência, um espírito simples, porém determinado e forte, cooperação, solidariedade, partilha de conhecimentos. Sim, é possível.       

Para quem desejar assistir à exposição do vídeo de Roy Bunker, é só acessar: http://www.ted.com/talks/lang/pt/bunker_roy.html#.Tty9NE-cDhE.facebook

domingo, 24 de janeiro de 2016

Recomeço











            O nome dele era Solano. O sobrenome, nunca soube. Ele apareceu numa tarde de inverno, quebrando a solitária mesmice daqueles dias.
Para suportar melhor uma grande dor, fiz minha mudança para o campo e ali fiquei completamente só. Quando a gente sofre muito, vai fechando muitas portas. Então, dediquei-me a cultivar algumas verduras e flores. Pela manhã, sentava-me nos canteiros e me punha a vigiar até que a florzinha desse algum sinal de vida, exatamente como quando eu era menina. Sob o olhar amoroso de minha avó, eu ficava atenta sobre a terra e bastava um segundo de distração para que a plantinha resolvesse nascer, como que a enganar a gente.
Então, como ia dizendo, apareceu aquele homem, um homenzinho atarracado e careca. Tirou o chapéu, enxugou o suor da testa e sorriu. Disse que se chamava Solano e perguntou se eu queria comprar florais. Florais, pensei. Não, não quero nada. O homenzinho não insistiu, pediu um pouco de água. Enquanto bebia, ficou atraído por um quadro pendurado na varanda, que mostrava a cidade de Delhi. Olhou, olhou sem pressa e me perguntou se eu já havia estado na Índia. Eu respondi que não, o quadro me fora dado por uma prima que lá estivera. Ele achegou-se mais como que fascinado e disse que em Delhi, nunca cruzara com tanta gente e tão diferente de nossa gente, todos embrulhados em seus panos, bonitos e feios, coloridos e encardidos. E citou uma frase de Rabindranath Tagore: “cruzo com uma centena de homens indo para Delhi: e cada um deles é meu irmão”.
E foi assim que Solano foi embora, assim, como quem traz uma mensagem. No dia seguinte fiz minha mala, fechei a casa e voltei para a cidade. E nunca mais me esqueci: “cruzo com uma centena de homens indo para Delhi: e cada um deles é meu irmão”. Assim disse aquele estranho homenzinho chamado Solano, para que eu voltasse à vida.

          

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Lua cheia




            O cara sempre fora meu amigo, para dizer a verdade, coisa de mais de quarenta anos. Passamos os dois num concurso público, trabalhamos juntos na mesma seção, eu frequentava sua casa, era padrinho de seu filho mais velho. Nossas mulheres também eram amigas, faziam quitutes em nossas reuniões de finais de semana. Nossos filhos estudavam e brincavam juntos, enfim nada havia que eu não soubesse dele e ele de mim. Era realmente uma amizade verdadeira. Isso não existe, você poderá dizer argumentando que pessoas são sempre falhas e cheias de misérias humanas. Bem, é possível, mas o que realmente causou o fim de toda aquela amizade nada teve a ver com fraquezas humanas como inveja ou traição. Mesmo depois de muitos anos, as pessoas ainda me perguntam a razão de nosso afastamento. Eu me calo. Não ouso contar a verdade, a não ser para a tela em branco que recebe o que não tenho coragem para falar.
            Damásio era seu nome. Era uma pessoa muito legal, isso mesmo. Eu o admirava profundamente. Ele estava sempre pronto para ajudar quem quer que fosse. Era engraçado, inteligente, enfim, boa pessoa. Sua figura física não era daquelas que as mulheres viviam suspirando, não, isso não. Damásio mais parecia um tísico, branco demais, nariz adunco, magro de ruim. 
            Bem, como sempre fazíamos em pescarias ou passeios em geral, lá estávamos voltando para casa já de noite, não tarde, talvez umas sete horas, hora em que o céu já está totalmente escuro no inverno. Eu, particularmente, não sou de sentir muito frio, mas por duas vezes, ainda quando estava claro, senti um calafrio esquisito. Dizem que as coisas trágicas, os acontecimentos de desastre, enfim as coisas do mal sempre avisam. A gente é que nunca tem olhos, nem ouvidos, nem entendimento para compreender. O carro enguiçou, aquela coisa chata de parar mesmo no meio da estrada, no meio do nada literalmente porque não havia um posto, uma casa, uma luz que não fosse a da lua e de umas poucas estrelas que brilhavam sem vontade, opacamente. Ao contrário de outras vezes em que sempre voltamos para casa animados e falantes, estávamos os dois quietos, estranhamente quietos.
            Bom, fizemos o que foi possível para reanimar o carro. Nada. O que atrapalhava mais era a escuridão que começou a ficar densa. A lanterna? Você certamente perguntará, sim porque dois homens feitos que habitualmente conduzem carros à noite não podem se esquecer de tal item de segurança, como também ferramentas e outras coisas importantes que alguém de bom senso leva no carro quando se vai para outros lugares, ainda mais na montanha. Pois voltávamos de lá, da tal montanha e não achamos a lanterna. A estrada cheia de curvas. O fato é que estávamos os dois ali, na mais completa escuridão, com um carro que não funcionava. Nada havia a ser feito a não ser caminhar seguindo a estrada que tínhamos pela frente. Decidimos seguir a pé e fomos os dois. A escuridão era tamanha que eu mal enxergava meu amigo. Apenas se via a lua enorme, cheia, mas que estranhamente não radiava claridade alguma, ou era impedida por uma espécie de fog londrino. Nunca eu havia visto uma lua tão grande em noite tão escura.
            Em determinado ponto, ele me chamou:
- Téo, eu preciso te contar uma coisa.
            Confesso que estranhei a seriedade dele. E eu disse:
- Fale Damásio, estou bem aqui, apesar do negrume da noite.
- Téo, eu sou um lobisomem.
            Aí não pude deixar de rir. Ri com gosto. Só ele mesmo para desfazer o mal-estar provocado pela escuridão e pelo aborrecimento de estarmos naquela situação. Ele não riu, bem, eu não o via, mas sabia pelo seu silêncio que ele estava sério. Entretanto, eu conhecia muito bem meu amigo, e este seu lado brincalhão e espirituoso era o que eu mais gostava nele. Ele era capaz de fazer brincadeira com a coisa mais séria do mundo sem ser inconveniente. Era fantástico. Eu não parava de rir. Era um acesso de risos desses em que a gente não consegue parar. Eu não tinha esse ataque há muitos anos e isso me fez muito bem. Ele esperou pacientemente que eu parasse de rir, ou que pelo menos fizesse uma pausa. Aí ele veio à carga:
- Téo, é sério, nunca falei tão sério em minha vida. Veja bem, eu jamais contaria isso se você não estivesse correndo risco de vida. E está agora. Olhe, eu vou contar tudo depois com calma. Você sabe que é meu melhor amigo, que eu nunca lhe faria algum mal, mas essa situação de hoje é atípica. Não deveríamos estar aqui, não agora, com essa lua cheia. Eu preciso que você corra o mais rápido que puder.
            É claro que desabei no riso de novo. Eu só conseguia dizer:
- Pare, pare com isso que eu vou começar a passar mal. Esta sua é de gloriosa como dizia minha mãe.
            E ele:
- Téo, eu juro, você acha que em situação normal eu contaria isso para você ou para qualquer outra pessoa? Quem iria acreditar? Ninguém! Nunca! Por que eu nunca contei? É por isso. Porque ninguém acredita. Mas eu não contava com isso, com nós dois nessa noite preta. Sabe, não é sempre toda noite de lua cheia que eu viro lobisomem, mas quando vou virar eu sei direitinho, eu sinto. Aí não respondo por mim, não sou mais eu. Eu tenho medo do que pode acontecer. Suma de mim!
            Aí nesse momento ele gritou e estava bravo pra caramba. Eu comecei a estranhar. Também fiquei bravo:
- Chega dessa brincadeira sem graça. Nem sei quanto falta pra gente alcançar um lugar civilizado, com luz e tudo.
Mas desse momento em diante, caiu um silêncio sepulcral. Ele não falava nada. Está aborrecido porque eu fiquei bravo, pensei. Mas continuei andando. O mais estranho é que eu não ouvia nenhum passo a não ser o meu e a sensação de que ele tinha sumido era muito grande.
Aí chamei:
- Damásio, desculpe, mas você está me assustando. Fale alguma coisa.
            E nada. Daí a pouco comecei a ouvir um barulho, parecia o som de pisadas ou de cavalgada de um animal pesado, como se fosse um porco grande ou um touro ou sei lá o quê. Instintivamente comecei a correr e o barulho aumentando, significando que fosse o que fosse já quase me alcançava. Desabalei. O pior é que não sabia por onde corria, se continuava na estrada ou não. A coisa piorou. Comecei a ouvir algo como um resfolegar, era de um bicho, aquilo não era humano. Eu corria feito um doido e rezava, logo eu que não era disso. De repente devo ter saído da estrada, senti um baque, tudo rodava. Juro que não sei o que aconteceu exatamente, se o bicho me pegou ou se eu rodei barranco abaixo. Desmaiei e não vi mais nada.
            Só acordei no dia seguinte no hospital. O próprio Damásio e outros roceiros me encontraram caído e esfolado numa vala, coisa de cinco quilômetros longe do carro, isso ele contou para todos. Contou a versão dele, é claro. Disse que caminhávamos na escuridão e que eu de repente sumi, ou seja, que não respondi mais. Ele insistiu que gritou meu nome várias vezes, mas não teve alternativa senão esperar que clareasse o dia, pois a escuridão era medonha. Eu tinha arranhões feios nas costas que pareciam ter sido feitos por garras afiadas. Estava queimado pelo frio e esgotado. Sinceramente, não me lembro do que aconteceu quando caí ou quando fui derrubado. Quando minha mulher e meus amigos me perguntaram eu disse que não me lembrava de nada.
            Damásio foi me visitar no hospital. Estava mais branco do que nunca e me olhava com pena. Não dei uma palavra sequer com ele. Todos perceberam que alguma coisa acontecera, mas eu é que não ia dizer e passar por trouxa ou maluco. Assim que tive alta tratei de me mudar com a família para bem longe. Mas antes fui procurar por um dos caboclos que estava presente quando me acharam desmaiado. Ele me contou que nunca vira nada igual, que o capim alto fora derrubado como se uma manada inteira estivesse desembestada pelo campo.

            Nunca mais vi Damásio nem ouvi falar dele. Hoje revejo nosso passado e ligo muitos fatos que na época passaram desapercebidos. Ele era um homem bizarro, tinha comportamentos esquisitos, mas daí a ... Bem, se ele era de fato um lobisomem não sei dizer, mas que aquela noite era de uma estranha lua cheia, isso era.   

sábado, 16 de janeiro de 2016

A mágica da música





            Muitos de vocês já devem ter assistido a um documentário chamado “Alive inside” que significa ao pé da letra “vivo por dentro”. Esta expressão também poderia significar “estar feliz ou emocionalmente bem”. Dan Cohen, um voluntário em lares para idosos nos Estados Unidos fez uma experiência que resultou em surpreendentes descobertas, propiciando aos idosos sentirem emoções esquecidas, impossíveis de serem descritas, apenas vivenciadas. Esses idosos, alguns já dementes e outros não, também foram capazes de resgatar lembranças que já nem supunham estarem ainda vivas em seu interior, enfim, era como por mágica, voltarem num tempo feliz e poderem ser felizes novamente.
            O documentário inicia com Cohen entrevistando uma senhora de 90 anos. Ela não estava demente, aparentava até um ar tranquilo, porém aquele indesejável e estranho silêncio já se instalara em sua vida como na vida de muitos que ficam idosos e perdem a alegria vivificante tão presente na juventude. Ela respondeu à primeira pergunta sobre idade, mas quando questionada sobre sua vida de jovem, disse não se lembrar de nada. Então Cohen perguntou se ela estaria disposta a fazer uma experiência, e em seguida colocou nela os fones de ouvido e ligou um iPod com músicas anteriormente escolhidas baseadas em fatos que ele pôde recolher sobre a vida da velha senhora. Ao ouvir a música, imediatamente ela abriu um franco sorriso e disse: “é de Louis Armstrong”, e foi acrescentando o nome da música, mais e mais lembranças de seu tempo de jovem, da escola, de seu trabalho, do tempo da guerra, dia e ano do nascimento de seu filho e outras lembranças. Foi como se a música fosse abrindo uma porta, depois outra e muitas outras mais. E ao final ela exclamou surpresa: “eu não sabia que ainda podia falar tanto e me lembrar tanto de tanta coisa”.       
A experiência se repetiu com vários outros idosos. Henry era um paciente idoso e demente. Não interagia com ninguém, com nada. Nada fazia com que ele saísse de seu mutismo, nem mesmo abrisse os olhos. A enfermeira colocou os fones e à medida que ouvia a música, Henry foi modificando seu comportamento. Aos poucos foi abrindo e arregalando os olhos, foi se mexendo na cadeira de rodas como se estivesse dançando, e perguntou à enfermeira: “eu devo cantar também?” ao que ela respondeu: “se você quiser”. E ele cantou, brandindo os braços como se regesse a música! Sua filha contou que ele estava neste lar há dez anos, sempre quieto e de olhos fechados. E isto era muito triste porque ele havia sido um homem alegre, que adorava música, adorava cantar e dançar. Dan Cohen perguntou a ele: “Henry, você gosta de música?”, e ele: “Eu sou louco por música!”. “Henry, qual a sua música preferida?” Henry não respondeu, mas com um novo brilho nos olhos, começou a cantar a música de que mais gostava com voz forte, sem titubear na letra. Foi fantástico! Foi como se alguém acordasse o Henry que dormia profundamente há tantos anos. A música o trouxe de volta à vida.
A música está sempre ligada à vida de alguém. Normalmente sentimos emoções alegres ou tristes quando ouvimos canções de que gostamos, e ao longo de nossa vida essas canções vão se imprimindo em nosso inconsciente e sempre relacionadas a acontecimentos, relacionamentos e fatos. A música nos faz vivos!  Sempre que eu ouço a “Valsa do Imperador”, ou mesmo “Billie Jean” do Michael Jackson, eu fecho os olhos e me sinto capaz de sonhar indefinidamente.  
O filho do escritor russo Tostoi deu um depoimento intrigante sobre o pai. Disse ele: “Eu não encontrei em minha vida ninguém que sentisse a música tão intensamente como meu pai. Ouvindo música de seu agrado, perturbava-se, tinha um aperto na garganta, soltava soluços e vertia lágrimas”. Certa vez o escritor exclamou: “Que me veut cette musique?” (O que quer de mim esta música?) E Tolstoi ainda diz: “A música é a taquigrafia dos sentimentos!” Perfeito, não?
Voltando ao documentário sobre Dan Cohen, um neurologista atestou que a música tem o poder de ativar mais partes do cérebro do que qualquer outro estímulo. É a última ligação da pessoa com sua própria identidade. Para as pessoas com demência pode ser a porta dos fundos da mente que se abre, deixando voltar a vida que um dia já pulsou dentro daquela pessoa. A música pode ser o resgate da conexão com a vida. Cohen pergunta: “e se todas as pessoas dementes pudessem acordar como o Henry? E se todas as pessoas pudessem acordar para o que elas são?” Bem, obviamente, quando a doença está em estado avançado, talvez não se possa recuperar a conexão, mas vale a pena tentar!
 Contudo, a implementação de tal experiência nos lares para idosos não é tão simples assim, pois esbarra numa grande dificuldade: o governo não concorda com a aquisição de cinco milhões de iPods para os dementes americanos, alegando que já gasta demasiadamente com os medicamentos que pouco fazem pelos idosos dementes, mas certamente enriquecem mais ainda os bilionários laboratórios de medicamentos.

E vamos que vamos! Música, maestro!

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A última caçada








Hoje em dia os cães, gatos e outros animais podem contar com meios modernos para serem sacrificados sem dor ou qualquer crueldade, mas nos tempos antigos era tudo mais rude, mais difícil e mais sofrido, ainda que os animais fossem amados de paixão. Era assim.     
                                                                                                         

A última caçada

(Uma homenagem à Joia, a perdigueira que nos acompanhou por muitos anos)
                                                          
            Hoje amanheci sentindo muita dor. Não sou uma cadela de se entregar assim, mas realmente está ficando difícil suportar essa situação. Não quero pensar o pior, porém meu amigo veio me ver diversas vezes durante a noite. Acariciou minha cabeça como sempre, falou palavras gentis e pude perceber que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Achei esquisito, pareceu uma despedida.
Estou velha, bem sei, mas acho que ainda conseguiria caçar. É claro que sim, afinal sou uma perdigueira, uma caçadora. Como me lembro com alegria das aventuras fantásticas que fizemos pelos açudes, campinas e até montanhas. Naquela época meu fôlego era incansável e meu faro nunca errava. Localizar a perdiz abatida era tão fácil como caminhar ou reconhecer meu amigo. Um verdadeiro cavalheiro! Conhecemo-nos quando eu ainda era uma filhotinha. Ele veio me buscar em Santa Rita. Ficou encantado comigo! Levantou-me no ar e, satisfeito, chamou-me “Joia”. Gostei do nome como gostei do cavalheiro. Sempre nos demos muito bem. Durante a viagem de volta, ele alisava meu pelo marrom e falava coisas que eu não entendia, mas podia sentir perfeitamente o seu carinho por mim. Éramos assim - perfeitos parceiros, uma amizade eterna. Quando chegamos a sua casa, seus filhos ainda pequenos me receberam com tanta alegria que eu me senti uma rainha, a rainha dos perdigueiros. Eu pulava nas pernas dos garotos e eles riam alto, gritavam meu nome: “Joia! Joia!”, corriam como loucos e eu, sempre mais rápida do que todos, alcançava-os com facilidade. Crescemos juntos. Passamos momentos inesquecíveis!
Certa vez, um dos garotos ficou doente. Eu sentia a preocupação de meu amigo. Enquanto o médico visitava a família e examinava o menino, eu, discreta e atenciosa, esperava pacientemente do lado de fora da varanda. Sempre fui inteligente e sensível e aprendi com muita rapidez a captar os sentimentos dessa família maravilhosa. Enquanto o garoto ardia em febre, ao lado da mãe, meu amigo passeava cabisbaixo pelo quintal. A princípio, eu observava de longe, franzia minha testa e achava que o melhor era deitar-me com a cabeça sobre as patas, rentes ao chão. Minhas longas orelhas ficavam caídas e meus olhos acompanhavam para cá e para lá o passear daquele pai que sofria. Sem que eu pudesse conter, um ganido de dor saía do meu coração. Depois, decidi que, como éramos tão amigos, deveria ficar junto dele, sempre. Passei a caminhar ao seu lado, passo a passo. Ele sorriu com ternura, passou a mão pela minha cabeça e falou: “Ah! Joia, Joia!”. Mas o garoto sarou e a casa era só alegria! Crianças subindo e descendo as escadas de madeira e o meninozinho fraquinho ainda, mas alegre. Passamos momentos incríveis juntos! Já disse isso.
Fiquei mocinha e logo meu amigo percebeu minhas necessidades e tendências naturais. Tratou de arrumar-me um companheiro. Lembro-me com ternura daqueles momentos românticos que passei ao lado de um elegante cão de minha raça. De nosso amor nasceram cãezinhos maravilhosos! Uma vez tive seis filhotes, cada um mais lindo e diferente um do outro. Bem dizem por aí que todos são feitos do mesmo barro, mas de formas diferentes! Seis! Exatamente o número de filhos daquela casa. Ah! Não deu outra! Meu parceiro chamou a patroa, buscaram a máquina de tirar fotos e lá posamos para a eternidade. Eu e as crianças, cada uma delas com um filhotinho nos braços. Foi então que fiquei famosa. A foto foi enviada para uma revista e com alegria as crianças se amontoavam sobre o pai para observar a foto estampada, logo que a revista chegou. Se não estou enganada, era a revista “Fauna” de 1958.
A mulher de meu amigo não me via com tão bons olhos como ele e as crianças, mas no fundo, no fundo, ela sempre gostou de mim. Deu para perceber isso logo na primeira oportunidade em que ficamos sozinhas, ela, as crianças e eu. Meu amigo viajou e ela, como quase toda mulher, sentiu medo ou solidão, sei lá, o fato é que me deixou dormir do lado de dentro da casa. Senti-me honrada e tentei corresponder a esse fino gesto com o máximo de minhas possibilidades. Só que eu não contava com um fato. Havia bebido muita água no início da noite porque meu angu com carne moída estava muito salgado e aos poucos foi ficando insuportável aquela vontade de esvaziar a bexiga. Aguentei o que pude. Não deu mais. Fazer xixi ali dentro eu não podia. Não, nunca! Não podia queimar meu filme assim com minha dama. Comecei a chorar e não percebi que chorava tão alto que ela desceu as escadas, preocupada. Inteligente, percebeu o que se passava comigo e logo abriu a porta que dava para o quintal. Meu Deus! Que alívio! Acho que demorei muito e enquanto fazia xixi fiquei olhando com carinho para a figura elegante que me esperava com paciência na porta. Ela se sentou no degrau da cozinha e olhava para as estrelas. Seu perfil à luz da lua era maravilhoso! Voltei meio sem jeito e ela teve um gesto magnífico de ternura que nunca esqueci. Acariciou meu pelo, chamando-me pelo nome. Não hesitei. Deitei a cabeça em seu colo e fechei os olhos. Ali ficamos nós duas por alguns momentos e depois entramos em casa, onde pudemos dormir sem mais problemas. Esses gestos carinhosos se repetiram, mas somente quando estávamos sós. Nunca entendi com muita clareza essas coisas, mas sempre tive certeza de seu amor por mim.
Eu gostava da casa, das crianças, mas, as caçadas! Sendo perdigueira, fui feita para isso! Logo aprendi que quando meu amigo surgia, ainda de madrugada, com roupas de caçador e espingarda na mão, era hora! Eu pulava, rodopiava, latia, gania e lá íamos nós, sempre de camionete, com alguns amigos. Como esquecer aquela alegria louca que me consumia quando nos aproximávamos do campo! O cheiro de capim ainda molhado, a expectativa das primeiras perdizes que apareciam frágeis em seu voo inocente, o tiro! Eu partia numa velocidade incrível em busca da ave. Prendia-a com a boca e a trazia em poucos momentos para o meu amigo que, cheio de orgulho me cumprimentava pelo feito. Algumas vezes, a perdiz caía em pleno lago, o que não constituía problema algum para mim. Entrava sem medo na água e nadava com competência até alcançar a avezinha. Quando voltávamos para casa, já era tarde e, cansados, dormíamos o sono dos justos. Eu sentia nessas ocasiões uma sensação de felicidade, é uma coisa que não sei explicar, um instinto racial mesmo, um dever cumprido, um prazer realizado. Eu nasci caçadora!
Mas o tempo passou, as coisas mudaram. Tivemos que mudar de cidade por razões inesperadas. Meu amigo ficou mais calado, mais triste, acho que sofria de uma enfermidade do sistema nervoso. Sua tristeza passava para mim. Mas ainda participamos de algumas caçadas. Seu irmão vinha nos buscar em sua velha camionete e íamos para o campo. Dava gosto de ver a alegria dos dois. E, por essa época, eu sentia que já não correspondia com tanta presteza aos meus instintos. Talvez fosse por coisas da idade, não posso saber com certeza. Eu ficava atenta aos tiros, corria como louca em busca da perdiz, mas uma vez, que vergonha! Fiquei perdida. Com a ave presa na boca, não conseguia achar o caminho. Dei voltas seguidas, e, nada! Depois de algum tempo, ouvi meu amigo gritando meu nome e foi com dificuldade que o encontrei. Envergonhada, recusei-me a receber seus carinhos. Retirei-me para um canto isolado e deitei o focinho sobre as patas, afinal a gente também tem um pouco de dignidade.
Amanhece. Sinto uma dor insuportável. Minhas tetas estão inflamadas, pesam tanto que mal consigo me manter em pé. Choro alto. Não dá para segurar. Não sei o que tenho, mas espero sarar. Vejo meu amigo se aproximar com a minha dama. Estão sérios. Ele chama meu nome carinhosamente. Tento segurar o choro, mas não dá, a dor aumenta cada vez mais. Ele abre o portãozinho e me chama para fora. Tento ficar em pé, não consigo. Ele e o garoto que agora já é um moço feito, me carregam nos braços. Como eu os amo! Mas o que vejo! É a sua espingarda de caça! Meu Deus! Que alegria! Vamos caçar novamente. Vou conseguir! Vou mostrar para ele que ainda consigo. Já estamos fora de casa. Ah! Lá está a camionete e seu irmão. Vamos mesmo, é certo. Mas não sei por que meu parceiro chora tanto. Tento mostrar a ele que tudo vai dar certo. Abano o rabo, mas qualquer esforço me causa uma dor profunda. Ele não vai. Entra em casa chorando, amparado pela mulher. Tudo bem. Lá vamos nós, eu e seu irmão. Conheço o caminho. Já caçamos muitas vezes por aqui. Chegamos. Ele me tira do carro. Não consigo andar. Ele me arrasta com dificuldade. Sinto vergonha. Ele tira a espingarda. Tenho medo de não conseguir caçar como antes. Ele mira em minha direção. Acho que as perdizes devem estar voando sobre minha cabeça. Ouço o tiro. Fico tonta. Olho para cima. Sim, as perdizes estão voando. São milhares! Vou pegá-las! O cheiro de capim molhado nunca foi tão forte e nunca me senti tão bem! Acho que sarei. Não sinto dor alguma. Sou forte. Sou a Joia, a mais bela e mais ágil perdigueira que já existiu.   

                       
                                                                                             
                                                           

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Por que escrevo?




            Já li vários textos sobre o que leva uma pessoa a escrever. Bem, quero dizer as razões e argumentos dos escritores propriamente ditos e consagrados e as razões de outros escritores não tão propriamente ditos assim como eu. Ontem mesmo li um artigo sobre isso no “Portal o Dia” em que alguns articulistas abordam essa questão do escrever, algo como o que define um escritor? A quantidade de obras publicadas, o conteúdo, o tamanho do público, as críticas? E falam sobre um fato que eu desconhecia: que o escritor Álvares de Azevedo que morreu muito cedo nunca teve uma obra publicada em vida, o que não o fez ou não o faz menos escritor. 
            Clarice Lispector dizia que escrevia por um puro prazer que ela afirmava não conseguir traduzir. Dizia ela: “escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando.” Li também um artigo do Frei Betto em que ele diz que escreve para construir sua própria identidade, e ainda mais bonito com suas próprias palavras: “para lapidar esteticamente as estranhas forças que emanam de meu inconsciente”. Entretanto, ele mesmo se pergunta se teria sido um escritor sem o incentivo de certos professores e do próprio exemplo do pai e da mãe que também escreviam.
            Seja lá como for, quem escreve deveria sempre se fazer esta pergunta: por que escrevo? Eu? Não sei. Talvez porque meu pai escreveu um livro de memórias, meu tio e meu primo escreveram livros de poemas. A gente acaba achando mais de uma razão. Para mim, escrever é difícil, ou melhor, não é fácil, penso que uma coisa não é igual à outra, que difícil não é a mesma coisa que não fácil. É que a palavra difícil tem uma conotação de trabalho cansativo, sugere um esforço enjoado e na verdade tenho comigo que escrever não é assim.
Para mim, escrever é trabalho que dá prazer, é um quebra-cabeça que consigo montar até o final, sempre encaixando uma peça em outra, é o bordado delicado com as letras e palavras que nunca aprendi com as rendas e linhas. Às vezes escrever é mais fácil quando, por exemplo, recebo a visita inesperada da bendita inspiração que, generosa, chega carregada de malas abarrotadas de ideias geniais. Mas na maioria das vezes tenho mesmo que acordar as palavras preguiçosas que insistem em dormir me deixando sozinha no meio de espaços vazios e pontos de interrogação. Aí leio, vou às fontes, mas o texto só nasce depois que digito a primeira palavra. Aí vem outra palavra invejosa, mais outra, até que muitas me imploram de joelhos para participar do texto. É uma palavra que puxa outra, uma ideia que traz mais duas e o artigo sai. É trabalho sim, porém quando acabo, ah é gostoso, fico só arrumando aqui e ali, procurando a palavra mais adequada ou mais sonora, enfim a que se ajusta mais com este ou aquele assunto.
             Dizem que a gente não é escritor, a gente se torna escritor, à medida que o escrito toma asas e já vive por conta própria, algo como o filho que cresce e se torna independente. Um livro pronto é até comparado com o parto, só que nem bem nascido, o filho deixa de ser nosso, já não nos pertence. Para o escritor o tempo de cuidados é quando ele começa a abrigar uma ideia, é o tempo da imaginação, depois o da composição, até que enfim o livro ou o artigo é lançado. A partir daí o leitor se encarregará de usufruir daquela mensagem que para ele será importante ou inspiradora naquele determinado momento da leitura.
            Bem, escrevo para contar histórias, escrevo por uma necessidade imperiosa de registrar fatos e acontecimentos que sinto que não podem se perder com o tempo. Escrevo para dividir com os outros minha própria história que se revela direta ou indiretamente através de meus escritos reais e fictícios. Parodiando Frei Betto, escrevo para ser feliz, para ter prazer. Escrevo porque sou vaidosa e narcisista, mas me perdoo com o pretenso e ilusório consolo de que quase todo autor também é.  
O que mais? Escrevo porque o mundo me encanta, a morte me amedronta e a vida me espanta.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A Mercenária das Palavras








Elisa afastou-se do computador, tirou os óculos, fechou os olhos, apertando-os para aliviar o cansaço. Empurrou a cabeça para trás, num gesto de relaxamento. Dessa vez, as palavras haviam sumido mesmo. Por mais que abrisse dicionários, apelasse pela memória, nada. Era duro ter que trabalhar assim. É duro trabalhar com palavras. Isso mesmo, duro como quebrar rochas, alguém já disse isso. Só que existia uma diferença abissal entre ser uma escritora por vocação e ser uma trabalhadora de textos. Elisa era uma revisora de artigos para um jornal e nas poucas horas vagas fazia adaptações de livros para peças de teatro. Nunca pensara em escrever por prazer, aliás, mesmo que quisesse, não sobrava tempo.
A moça suspirou profundamente e fechou o computador. Quem sabe depois de uma boa noite de sono, as danadas das palavras sumidas apareceriam. Pois naquela noite o sono foi profundo e os sonhos, estranhos. Elisa sonhou com as palavras de que tanto precisava, mas como sempre acontece quando se desperta, esquecera delas. Ficou de madrugada olhando para o teto e tentando lembrar-se das malditas, sim, porque agora as palavras passaram de danadas para malditas. Voltou para o computador e parou na frase do dia anterior. Sabia que no sonho as palavras eram as exatas, insubstituíveis, as que melhor se encaixavam para o sentido do texto. Não tendo como resolver o impasse, pulou para novo parágrafo deixando aquele inacabado. Talvez sonhasse novamente com as palavras. Foi para a cama com lápis e papel, agora não me escapam, pensou, achando-se um pouco louca naquela situação esdrúxula, mas um tanto divertida. De hoje em diante, além de revisora de textos, também exerço a função de caçadora de palavras, sem nenhum aumento de salário, que ótimo!
Como numa brincadeira de esconde-esconde, as palavras não apareceram naquela noite, mas o papel e lápis ficaram na cabeceira da cama à espera de que elas dessem o ar da graça. Na noite seguinte, voltaram. Mostraram-se altivas, cheias de si e encarnadas como se fossem gente e tivessem vida própria. E quem pode afirmar que não têm? Sôfrega e Peremptória chegaram, de modo sôfrego e peremptório, fazendo jus aos seus próprios nomes. Mesmo imersa num sono profundo e quase hipnotizada, Elisa sabia tratar-se de um sonho, como desses em que a gente fica tranquila porque sabe que, sem sombra de dúvida, é apenas um sonho. Tudo se passava ali mesmo, em seu quarto. As duas palavras vestidas de gente pararam um tempo na porta e depois chegaram mais perto, apoiando-se na grade de ferro que emoldurava os pés da cama. Nem foi preciso fazer uma apresentação, era óbvio quem era uma e quem era outra. Sôfrega era inquieta, tinha uma cabeleira ruiva, crespa, que ela jogava para trás a cada instante. Mexia as mãos nervosamente e mordia o lábio inferior, meneando a cabeça. Peremptória tinha os cabelos negros, lisos, o rosto afilado e o olhar penetrante e duro, mais parecia uma estátua.  Peremptória falou primeiramente: Preste atenção, moça, nós decidimos vir pessoalmente porque não somos de meia palavra. Resolvemos lhe ajudar, afinal você tem se debruçado dias e noites sobre nosso universo verbal. Entretanto, é necessário dizer o quanto estamos chocadas com sua maneira de nos tratar, a nós, as palavras.
Nesse momento, Sôfrega, que não mais se aguentava para derramar seu verbo sobre Elisa, interrompeu a amiga, tomando-lhe a palavra. Disse ela a Elisa: Mocinha, somos de natureza adjetiva, existimos para dar vida aos substantivos, não que sejamos mais importantes do que eles, mas somos o colorido, percebe? Se você for até seu texto, comprovará o doloroso vazio provocado por nossa ausência.Elisa tentou se desculpar, medindo as palavras com cuidado: exatamente, vocês sumiram, deixando um vazio insuportável, como é que não encontrei vocês? E concluiu: é que estou muito cansada, trabalho com as palavras, entenderam? Tenho que dar conta de agrupar centenas, milhares, bilhões de palavras por dia. Às vezes, elas me faltam. Peremptória, sempre decidida, replicou: tudo bem, querida, só que você se comporta em seu trabalho tão belo e digno, como se fizesse palavras cruzadas, assim, displicente, com muita pressa, para não usar outra palavra mais forte, com muita violência. Elisa ficou envergonhada e tratou de se justificar: não tenho palavras para me desculpar, não as encontro, parece uma maldição, não encontrar palavras para dizer ou para escrever. Nesse instante, Sôfrega cortou a palavra de Elisa e deu vazão ao seu caráter melodramático: não diga nem mais uma palavra. Você está precisando escutar. Sem palavras, o homem está fadado à inexistência, a um vazio de significações, à ausência de subjetividade, à impossibilidade de se constituir no discurso, aliás, de que é feito um discurso? De palavras, é claro. A palavra é o homem e o homem é a palavra. E Sôfrega jogou os cabelos para trás, estava com as faces vermelhas e satisfeita com o próprio discurso. Elisa escutou com atenção e apelou para outro argumento: é que esse meu trabalho é por dinheiro, dá para entender? Eu vivo das palavras, ganho meu salário trabalhando com elas, não é bem por prazer...Neste momento, Peremptória aproximou-se mais de Elisa e lhe disse com doçura, mas muita determinação: Entendi, você é uma mercenária de palavras. Trabalha com elas para quem pagar mais. Você precisa, com urgência, resgatar o prazer das palavras. Você já pensou quantas pessoas gostariam de realizar o seu ofício? Para onde foi parar aquele desejo ardente e apaixonante dos primeiros tempos em que lidou profissionalmente, mas amorosamente com as palavras? Você se lembra de quando era só abrir o computador e as palavras derramavam-se verborragicamente em enxurradas abundantes de alegria verbal? As letras atropelavam-se, acotovelando-se num frenesi contagiante para formar as palavras. Elisa, comovida, aquiesceu: Novamente, estou sem palavras. Palavra de honra que de hoje em diante será tudo diferente. Tratarei as palavras com o maior respeito e dignidade. Vocês me convenceram. Sôfrega acrescentou: assim é que se fala. Você tirou a palavra de minha boca, dignidade, é isso aí. E depois, tem outra: se você trabalhar com prazer, suas palavras não serão atiradas ao vento e o dinheiro virá por acréscimo.
Elisa sorriu e disse: que palavras bonitas! Obrigada, agradeceu Sôfrega, complementando: não são só bonitas, são fortes, tão fortes como aquelas que você usou para nos designar, danadas, malditas! Saiba que as palavras têm peso, devem ser usadas apropriadamente. Elisa desculpou-se novamente: foram apenas palavras, eu não pensava isso, de fato. É que eu estava cansada, até desesperada, foi um desabafo e quando a gente está assim, não consegue conter as palavras. Desculpe-me pela falta de jeito de lidar com as palavras. Peremptória entrou na conversa: está tudo certo, chega de tanto palavreado e tenha cuidado com os palavrões. Daqui por diante, meça e pese suas palavras e lembre-se sempre de que “no início era o verbo e o verbo se fez carne...” santas palavras! ou se preferir, no início era a palavra... tanto faz... o importante é você saber que estamos aqui bem antes de você e seu ofício. Já vamos indo. Não dê uma palavra com ninguém sobre este nosso encontro. Mais uma palavrinha: se precisar de nós, é só dizer a palavra-chave que viremos.
Elisa agradeceu mais uma vez. No dia seguinte, assim que acordou, levantou-se e foi direto à sua estante de livros, de onde tirou um exemplar de poemas e leu a frase de Rilke de que tanto gostava e de que se esquecera com o correr dos anos: “tenho tanto medo das palavras. Elas dizem tudo com tamanha precisão"
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