Estamos reformando nossa cozinha já há
quase 4 meses, 4 longos e intermináveis meses. Meu marido é o pedreiro, eu, a ajudante
de pedreiro. Ele sempre teve uma relação direta, nada secreta nem discreta com
o concreto, enquanto eu sou do abstrato. Eu sou das letras, trato com as
palavras, com as histórias. Ele é do cimento, da massa corrida, do tijolo sobre
tijolo. Como não me lembrar de quando nos conhecemos e ele foi me mostrar seus
diplomas com muito orgulho. Mostrou o de engenheiro, o de advogado e o de
pedreiro num curso do Senac e me deixou claro que este diploma era o que mais
prezava porque fazia o que mais gostava. Não foi difícil adivinhar que gostava
do concreto pelo chapéu, botinas e por estar sempre assobiando uma canção
enquanto trabalha, um amor. Depois de aposentado então, deu vazão aos sonhos
concretos. Quer ver ele feliz? É inventar uma obra aqui e outra ali. Não é que
ele já fez duas piscinas, direitinho, com azulejo e tudo?
Bem, com relação à reforma na
cozinha tenho me comportado bem, tenho conseguido manter a duras penas meu
senso de humor com algumas avarias, reconheço, mas dadas as circunstâncias,
minha nota de esposa doce tem sido em torno de 8,5. Só que com o tempo a gente
vai se cansando de tanta poeira, tanto chão sujo, tantos panos, rodos e baldes.
Cheguei no meu limite, por Deus. Tenho uma ajudante para a casa apenas uma vez
em quinze dias, afinal sou aposentada também, e não tão velha que não possa
trabalhar com os afazeres domésticos, mas limpar sujeira de reforma de casa?
Estou velhíssima, centenária.
Bem, temos utilizado a cozinha de
cima que teria que ser usada apenas eventualmente, porém é a única que temos no
momento, com uma pia a céu aberto, e improvisamos como deu pra fazer. Com este
tempo de primavera já quente, minha indumentária para lavar a louça consiste
num biquíni com capa de chuva por cima, chapéu e óculos de sol. Se o sol abre,
tiro a capa, e aproveito para um bronze real nu e cru, o que faz bem para os
ossos, minha vitamina D está pra lá de boa. Já no caso de chover, visto minha
velha capa de chuva inglesa por cima do biquíni. Aliás, uma capa que era chiquérrima
quando comprei em 1997.
Hoje eu estava azeda, um perigo,
como dizia meu pai sussurrando (sua mãe está perigosa hoje!). Na hora do
almoço, eu perguntei para meu marido: quando você sai da cozinha, você limpa os
pés no pano de chão umedecido e no tapetinho de borracha e na passarela que
coloquei lá? E ele: é claro! E eu: então por que a sala tem pegadas brancas por
todos os cantos chegando aos quartos? Ele, erguendo os braços e se defendendo,
disse: eu não fui. Depois do almoço ele foi dormir. E eu, depois de meu bronze
lá em cima desci e percebi que as pegadas brancas estavam muito pequenas para
serem dele. Caramba! Eram minhas, número 35 (eu calçava 36, tô diminuindo). Poxa,
isso não podia ter acontecido. Confesso que quase trapaceei, fiquei tentada a
pegar um pano, mesmo com as costas queimando, para apagar os vestígios das minhas
pegadinhas, mas sou honesta, nada me restava a fazer senão enfrentar as
consequências de minha língua afiada. Meu crime ficaria exposto com todos os
detalhes sórdidos e requintes de crueldade. Minha esperança era de que ele não
notasse, pois é desligado.
Santa ingenuidade a minha! Desligado
o quê? Não perde nada. Lá veio ele pegar no meu pé por causa de meu pezinho
branco. Eu estava no computador quando ele irrompeu pela minha salinha e disse:
aquelas pegadinhas brancas não são minhas não, são suas! Este pezinho 35 não é
o meu não, olha o tamanho do meu pé! E eu: tá bom, fui eu, mas é que eu estava
atarantada com o forno que chegou e a gente providenciando pra tirar da caixa,
você me distribuindo afazeres e ordens, pega isso, pega aquilo. Deu no que deu.
Agora, eu tive a dignidade e a nobreza de enfrentar meu engano de cabeça
erguida, sem limpar as pegadas.
Mas é claro que tudo sempre acaba
num abraço apertado, com risos e muito amor. Mas gente, reforma com a gente
dentro da casa, é de enlouquecer! Prudência, prudência, porque casamento é sempre
um delicado vaso de porcelana que pode se romper inopinadamente. Cuida gente,
cuida bem!
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