sexta-feira, 23 de abril de 2021

NOSSA VIDA LITERALMENTE SEM RODINHAS

 


Há anos li uma crônica da Martha Medeiros que gostei muito: “A vida sem rodinhas”. Nesta crônica ela conta como aos seis ou sete anos ela conseguiu andar de bicicleta sem precisar das rodinhas de apoio para o equilíbrio. Foi um feito vitorioso que mereceu uma foto tirada pelo pai. De fato, em pouco tempo as crianças já estão aptas a andar por conta própria, dirigindo suas bikes de duas rodas apenas. E a autora faz um paralelo com nossa trajetória de vida, perguntando: “Quando é que estamos aptos a andar por nossa conta?” Isto em todas as situações, na adolescência, no primeiro emprego, no namoro, enfim, em tudo.

Isso me remeteu à nossa infância em Pedralva. Naquela época, não andávamos de bicicleta nem com rodinhas nem sem, ou seja, não tínhamos bicicleta. O ano? Talvez, 1963, por aí. E minha irmã, doente de vontade de andar de bicicleta, ficou pedindo ao papai que lhe comprasse uma, sem dar trégua ao pobre homem. Lógico que ele disse que não, ainda mais que não era Natal e mesmo que fosse, era muito caro. Águeda empregou a técnica de vencer pelo cansaço, mas o papai ficou irredutível. Aí ela partiu para a última cartada que era a chantagem, a manipulação: papai, o senhor vai ficar com muito remorso se eu ficar doente e morrer. Tudo o que eu pedi foi uma bicicleta.

Coitadinho, o papai saiu de casa e foi lá na loja do tio Joffre. Pediu a ele que na próxima compra que fosse fazer em São Paulo, incluísse uma bicicleta das menos caras. Daí a alguns dias a bicicleta chegou e não só a Agueda, mas todos nós, os irmãos, os primos, amigos e conhecidos tivemos a chance de aprender e andar de bicicleta na pacata Pedralva de 63. Evidentemente que o local apropriado para os primeiros treinos foi na rua da Santa Casa, considerando que era uma das poucas ruas planas da cidade. E lá, diariamente se formava uma fila de crianças esperando sua vez. Cada uma tinha direito a uma volta completa até à Santa Casa.

A bicicleta vermelha era de adulto, com as duas rodas grandes, é claro, e nós não éramos mais tão crianças assim, mas não sabíamos andar de bicicleta. Aprendemos rapidinho, cambeteando e caindo pelo caminho. Quando conseguíamos fazer uma volta inteira sem cair era o paraíso de felicidade.

Bem, o que eu quero realmente dizer é que nossa vida foi literalmente sem rodinhas em tudo. Nossos pais não tinham como nos proteger o tempo inteiro, nem a metade. As famílias numerosas viviam um dia de cada vez, os mais novos herdavam roupas dos mais velhos, a comida era simples, carne um dia por semana. Só Deus para dar conta. O primeiro dia no Grupo Escolar acontecia do jeito que tinha que acontecer. As crianças com seus cadernos e lápis seguiam com medo ou sem medo. Vale lembrar que já existiam crianças autistas, borderlines e outros transtornos que sempre existiram. Só não existiam psicólogos, não ainda. Sobrevivemos. E fomos felizes.

Um fato marcante com a bicicleta: o Zezinho que trabalhava no Wilson, tinha um violão que tocava pelas tardes, e ele sempre via a Agueda, saindo e voltando com a bike. Um dia ele disse a ela: aposto meu violão que você não consegue subir o morro de sua casa até aqui. E ela conseguiu. Com doze anos, plena de energia, pernas grossas e fortes, cumpriu e ganhou a aposta, só que não levou o violão. Não era justo. Mas o Zezinho foi quem ensinou para minha irmã os primeiros acordes de violão e daí por diante ela foi violonista, tecladista e cantora. Mais tarde, ela passou num concurso do BB e foi trabalhar e morar no norte de Minas onde os homens ainda usavam arma na cintura, como nos filmes de faroeste. Minha irmã era uma garota de vinte anos apenas, desgarrada da saia da mãe, valente e bonita como ela só. Sou suspeita para falar. 

Pena que não temos fotos da bicicleta. Não precisa. Os mais velhos se lembram e podem atestar. Nossa época foi da vida sem rodinhas em tudo, da vida literalmente sem rodinhas.         

       

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