Como
sempre a capital era um caldeirão dos diabos fervendo com escândalos morais e
financeiros. Revelações bombásticas de corrupção traziam mais e mais
jornalistas que se hospedavam nos hotéis próximos ao complexo político. O ramo
hoteleiro de nada se queixava, pois quanto mais confusão, mais hóspedes e mais
dinheiro.
Não foi à toa que o gerente do apart
hotel estranhou aquele homem esquisito entrando no estabelecimento que ficava próximo
ao Palácio da Alvorada. O sujeito era alto feito um poste, magro feito um cabo
de vassoura, tinha os cabelos e barba compridos e usava um camisolão sem mangas
por cima de uma calça surrada. Trazia um alforje igualmente surrado, e mais
estranho ainda, não desgrudava de seu cajado. Mas pagou em dinheiro uma
hospedagem de uma semana. Não falava nem o estritamente necessário, ou seja,
mudo feito um cavalo. Se lhe diziam bom dia ele só meneava a cabeça, se
perguntavam seu nome, ele balbuciava qualquer coisa, no entanto, ao dar entrada
no apart hotel fez tudo direitinho, apresentou identidade e assinou: Jeremias
Almengor da Silva. O “da Silva” certamente acrescentava certa leveza ao peso do
estranho nome. O cara era limpinho, descia de banho tomado, cheirando a
sabonete.
Diante da visão inusitada de todo o
conjunto, ninguém estranhou que ele trouxesse um sino tatuado no braço magro. Ora, o sino parecia ser o de menos. Mas não
era, aí é que está. Seu Gilberto, o gerente e esotérico nas horas vagas,
procurou no Google a simbologia do sino. Podia ser coisa boa tanto quanto podia
ser coisa do mal, dependendo de cada cultura. Acabou se acostumando com o homem,
afinal o que é que tem ser um pouco ou muito estranho? Todo mundo tem direito
às suas esquisitices. Jeremias entrava e saía do hotel, sem nenhuma confusão
aparente. Acontece que seu Gilberto tinha um olho lá e outro cá e percebeu que
Jeremias deixara cair da carteira um santinho com a profecia de Dom Bosco. Aí
tem coisa, concluiu o homem. Mas continuou sem saber se era coisa boa ou má.
E foi aí que em seu terceiro dia de hospedagem,
Jeremias saiu e foi direto para o Palácio da Alvorada. É lógico que foi barrado
bem longe da entrada, mas levantou o cajado, mais se parecendo com o profeta
João Batista no deserto exortando a todos que se arrependessem. Quando
perguntado o que queria, insistia que precisava falar com o Presidente. A
princípio ninguém deu bola, era só espantar o sujeito e pronto, mais um maluco
entre tantos que já tinham aparecido no pedaço. Só que o homem não arredava pé,
era coisa particular e urgente. Jeremias já começava a ser manchete de
televisão, pois água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Aborrecido, o
presidente não teve saída senão dar uma colher de chá para Jeremias, às vezes
até um presidente tem que se ocupar de questiúnculas. Convinha agradar o povo
que já simpatizava com o cara com nome e pinta de profeta. Pobre presidente!
O
que conversaram a portas fechadas permaneceu em segredo de Estado, mas o
Ministro para Assuntos Ocultos conseguiu ouvir a frase “separar o joio do
trigo”. Cabeças vão rolar, ele deduziu, e logo a notícia viralizou tanto no
palácio como na mídia, como tudo viraliza hoje em dia. Jeremias era o grande
astro do momento, “o cara”. Voltava sereno para sua suíte no apart hotel, sem
dar a mínima para os jornalistas que se digladiavam para entrevistar o sujeito.
- E
aí seu Jeremias, o que o senhor falou para o presidente? O que o presidente
respondeu para o senhor? O senhor é religioso? Como o senhor se sente?
E Jeremias fazia ouvidos moucos,
subindo direto para seu quarto. No palácio corria à boca pequena que o
presidente havia mandado comprar duas caixas de alprazolam de 2 mg. A coisa
estava feia. E piorou quando a imprensa descobriu que o presidente deixou o
palácio na calada da noite indo para o apart hotel onde Jeremias estava
hospedado e lá ficou em seu quarto pelo resto da noite. O que seria aquilo? Agora
era a montanha que ia até Maomé? O que faziam? O que conversavam? Teria o
presidente algum rabo preso com Jeremias? Mistério total. No dia seguinte o
presidente voltou para o palácio com olheiras profundas e desferiu ordens que
foram seguidas à risca. Tudo no sigilo.
Às 3 horas da tarde, pontualmente,
toda a capital foi sacudida por sinos que repicavam em todas as igrejas, colégios,
mosteiros cristãos e budistas, convocando todos para a boa ou má nova. O
presidente foi às falas na televisão e apresentou Jeremias com seu cajado e seu
sino tatuado no braço magro. Finalmente o homem falou. Era um profeta
encarregado de concretizar a profecia de Dom Bosco sobre a cidade. Jeremias
limpou a garganta:
- “é
verdade que quando viessem escavar as minas ocultas, no meio destes montes,
surgiria aqui a terra prometida, vertendo leite e mel. Seria uma riqueza
inconcebível ...” riqueza essa que foi usurpada pelos corruptos. Urge separar o
joio do trigo. Como é bem provável que nesta cidade perdida de corrupção não
reste um único trigo em pé, nem deitado, apenas joio da pior qualidade, verterá
sangue nesta terra todas as tardes e noites, sangue que cairá do céu e brotará
do chão, até que cada joio seja arrancado e lançado ao inferno. E que já vá
tarde!
Evidente que todo mundo caiu na
risadaria e o presidente caiu nas pesquisas e na desgraça geral, mas naquele
mesmo dia, ao findar a tarde, naquele momento em que o crepúsculo deita seu
manto sobre a cidade, começou a descer sangue do céu, uma chuva vermelha que só
amainou quando o sol da manhã começou a surgir, exibindo um mar vermelho de
sangue, inclusive o lago. O fim do leite e mel eram favas contadas. Jeremias Almengor
da Silva não foi mais visto em canto nenhum. Sua missão estava cumprida.
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