Embora
conscientes de que perder os pais é da lei natural da vida, minha irmã e eu
constatamos que nunca mais fomos as mesmas. A orfandade é algo mais sério do
que possamos imaginar. Quando enterramos nossos pais, não enterramos apenas
seus corpos, mas uma vida rica de lembranças, nossa infância, nossa história,
nossa referência e tudo enfim. Minha irmã foi acometida por um intermitente
frio no estômago e eu não mais dormi como antes. Meu rosto mudou. Não falo de
rugas, isto é da idade, mas de um traço que identifiquei quando li Cecília
Meireles: “Eu não tinha este rosto de hoje ... em que espelho ficou perdida a
minha face?” Estávamos de luto, estávamos enfermas.
Evidentemente
que fomos nos recuperando, meus pais já eram idosos, estavam doentes, mas não
se pode negar que foi uma perda. O luto é real, varia de pessoa para pessoa de
acordo com a sensibilidade de cada um, mas é real. E aprendi que o luto é uma
espécie de enfermidade, não doença, mas enfermidade. E existe uma diferença
entre enfermidade e doença.
Pedi
à minha prima Lígia que relembrasse para mim a diferenciação entre doença e
enfermidade que ela coloca tão bem em seu trabalho de doutorado e que repito
com minhas palavras:
“In-firmus”,
do latim, obviamente, significa enfermo: aquele que não está firme. Uma pessoa
em luto não está firme, uma menina que se torna adolescente e sofre com a
mudança também pode não estar firme, assim como uma gestante insegura pelo bebê
ou ainda um bebê que fica sem mãe. Esta “falta de firmeza” é uma fase de
transição, uma crise que certamente vai ser superada. Quando a pessoa não está
firme e não procura modos de se firmar, pode adoecer. Assim, uma enfermidade
pode progredir para uma doença que é a manifestação física da enfermidade.
No
inglês, “infirmity” é traduzido como “qualidade ou estado de estar enfermo, não
firme, não forte, fisicamente fraco, vacilante.”
Dessa
forma, pode-se dizer que há pessoas que não têm qualquer disfunção orgânica,
mas o seu ser é que está doente.
Bem,
voltemos ao luto. Gostei muito de um livro da Joan Didion (O ano do pensamento
mágico) em que ela relata seu luto pela perda abrupta do marido. Eu já conhecia
“O lado fatal” da Lya Luft em que ela transforma sua perda em poesia, mas para
mim a Joan Didion foi mais real detalhando pormenores e sintomas que revelam
seu grau de enfermidade. Ela diz que quem perde alguém fica com o olhar
diferente somente reconhecível pelos que já viram o mesmo olhar em seu próprio
rosto, “não importa o quanto possam parecer calmas e controladas, ninguém
consegue ficar normal nessas circunstâncias”.
A
pessoa que sofre uma perda fica frágil, vulnerável. Por isso deve ser acolhida
e tratada com compreensão e carinho. Quando perdi meu pai, depois minha mãe,
meu rosto perdeu um traço ou ganhou um traço diferente, não sei dizer, porque
este tal traço não é visível aos olhos do corpo. Talvez este traço de que
insisto tanto esteja realmente nos olhos ou no olhar como a Joan Didion disse;
talvez na alma que abriga delicadas e secretas sequelas. Só a gente mesmo é
capaz de captar esses dolorosos vestígios ou outra pessoa que já tenha passado
por isso.
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