“Só
males são reais. Só dor existe ...” (Antero de Quental)
E se naquela noite que antecedeu a
tragédia, cada funcionário da empresa, cada morador das imediações tivesse tido
um sonho, desses sonhos proféticos que às vezes as pessoas têm? Aí o
funcionário já tomando seu café com a família, interrompeu e telefonou para um
colega: cara, sonhei que a barragem arrebentou e veio em cima de nós. E o
outro: jura? Pois eu também. E assim em poucos minutos quase todos se falariam
e decidiriam que não iriam trabalhar enquanto a barragem oferecesse perigo e
também não trabalhariam mais se seu escritório estivesse na passagem da água.
Uma dúvida pairou no ar, aquilo parecia loucura. Quem os ouviria? Os grandões
lá de cima? Mas se todos haviam sonhado! Não iriam trabalhar. Pronto. Poderiam
ser demitidos. Sabe o que é ficar desempregado? Só os que são é que sabem.
Ou
quem sabe se depois do massacre de Mariana, houvesse alguém, algum chefe,
diretor ou presidente da Vale que não vale um centavo que lucra, tivesse
culhões e sob risco de ser morto por suas decisões, dissesse: chega! Que parem
todas as barragens! Que ninguém mais morra por causa do descaso da Vale. Vamos
rever tudo.
Se
os deputados tivessem aprovado decretos, se os fiscais e engenheiros tivessem
feito corretamente seu trabalho, às vezes até jurados de morte para assinarem
pareceres enganosos. Se tudo isso pudesse ter acontecido, tantas vidas teriam
se salvado.
Porque a vida é tão preciosa! Mais preciosa
que qualquer coisa, que qualquer dinheiro do mundo, que qualquer ouro de
Esmirna. Para um condenado à morte, a vida é tudo. Bastaria a vida, o resto
seria reconstruído com garra, com luta. Em qualquer canto, qualquer pasto, com
qualquer burrinho, plantariam ou trabalhariam de sol a sol. Mas voltariam pra
casa todos os dias para abraçar seus filhos, para vê-los crescer. Para sair de
mãos dadas com a mulher ou marido, tomar um sorvete na praça, irem ao cinema
todos juntos, enfim, para viver essas pequenas coisas que são tão grandiosas.
Morreriam sim, um dia, quando a vida já tivesse sido cumprida, morreriam sim
porque todos morrem um dia, mas não devia ser tão estupidamente, com morte tão
trágica, tão dolorosa. Morreriam sim, um dia, mas não porque uma minoria podre
de rica e cheia de poder fechou os olhos para o perigo que seus funcionários
corriam.
Não
há dinheiro que pague uma vida. Não há indenização que aplaque a dor da moça
que se salvou, mas teve seu menino de dois anos arrancado de seus braços pela
lama cheia de fúria. As pessoas lá do alto do poder sabem o preço das ações
milionárias, do lucro, sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada.
Sou
escritora, sou poeta, carrego a dor dentro do peito e muitos “se” que ficaram
enterrados no fundo da lama. Mas o “se” é apenas um sonho. Nesse
momento de tanta tristeza e desesperança, podemos, ou refletir sobre o
desespero dos oprimidos, ou concluir, como Antero de Quental que, “só dor
existe”, ou ainda e apenas as duas coisas, o que dá no mesmo.
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