Em algum dos anos 70 minha irmã que
já trabalhava alugou uma casa para passarmos o carnaval em Caraguatatuba. E lá
fomos em uma Kombi e mais um carro. Meu pai não foi. Adorou ficar sozinho em
casa curtindo o Jornal do Brasil e o silêncio de que tanto gostava. Minha mãe,
minha tia, meus irmãos e algumas colegas de minha irmã lotaram os carros, cada
um com um colchonete. Foi uma festa! Éramos jovens, o sol despontou maravilhoso
todos os dias, voltávamos para a casa bronzeadas, famintas, e com bom humor
enfrentávamos a fila interminável para o único banheiro existente. Algumas de
nós lavávamos o cabelo na torneira do tanque espirrando água umas nas outras e
tudo era motivo de riso e felicidade.
Bem, quero mesmo é falar de minha
mãe, uma pessoa sempre presente em meus pensamentos, em minhas lembranças e
tudo que escrevo. Ela era uma mulher muito séria, muito religiosa, sem qualquer
traço de vaidade. Nunca vi minha mãe usar um batom, nem uma base de esmalte,
nunca a vi se admirar no espelho, a não ser para conferir se estava vendendo
farinha. Pra quem não conhece esta expressão antiga é quando a anágua ou
combinação deixavam um pedacinho de renda para baixo do vestido. Nunca a vi rir
abertamente, gargalhar. Não, minha mãe não. Quando achava muita graça e o riso
era incontrolável, ela colocava as mãos sobre a boca. Que coisa né? E era uma
mulher fantástica!
Não sei quantas almas subiram do
purgatório para o céu naquele passeio à praia, mas o fato é que minha mãe se
permitiu vestir um maiô de minha irmã e se lançou ao mar. O que quero dizer é
que ela fez uma coisa inédita e ousada. A princípio entrou timidamente sentindo
a água bater em seu corpo e logo já pulava as ondas que eram suaves. Nunca vi
minha mãe tão feliz em toda minha vida. Como ela deixava o riso sair, como
vibrava. E ela ficava mais bonita do que já era. Seu corpo era escultural! Pela idade e já com
seis filhos é lógico que uma barriguinha se mostrava, mas coisinha de nada.
Pernas bonitas. E a tez? ah a tez! Aquela tez linda, aquela testa de Ingrid
Bergman, aquele nariz!
Fizemos outros passeios à praia, mas
ela já não se permitiu mais sentir aquela alegria. Voltou a se conter, depois
foi se fechando cada vez mais, cada vez mais até que uma tristeza irremediável
cobriu seu semblante.
Eu
fico sempre imaginando que depois de nossa morte teremos que comparecer sim
diante de Deus, mas não é aquele Deus carrasco, acusador, não. Deus não é
assim. Mas compareceremos. E acho que ele vai conversar com a gente. Deus vai
fazer duas perguntas: você atropelou alguém? Você se deixou atropelar por
alguém? Ou, de outra forma: você foi feliz? E você fez o que pôde para fazer
felizes outras pessoas? São perguntas que levam um tempo pra a gente responder
porque a felicidade vem sempre muito mascarada. Mas Deus que é o maior
psicanalista de todos tempos e todos os mundos e que sabe de tudo e se lembra
de tudo vai nos fazer lembrar. Então minha mãe deve ter ficado em silêncio. E
Deus teria dito: e o mar em Caraguá, tava bom? Aí os olhos dela devem ter
brilhado e ela deve ter aberto um sorriso lindo e certamente disse: ah eu fui
tão feliz! E Deus também deve ter sorrido feliz. Aí Ele encaminhou minha mãe
para uma estação de águas em mares nunca dantes navegados, os maravilhosos
mares celestiais onde ela está sempre sorrindo e onde um dia eu vou encontrá-la.
A morte é a cura final, disse Guimarães Rosa.
Mas
enquanto isso, enquanto cá vivemos é tempo de nos lançarmos ao mar. Que assim
seja feito.
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