quinta-feira, 18 de abril de 2019

NÃO ESTAMOS CONTRATANDO



Ontem ao voltar para casa, passei diante de uma obra que está sendo iniciada do lado do meu prédio. Sondei para ver em que ponto está já que as dolorosas ensurdecedoras estacas já foram colocadas. Foi quando vi um cartaz com os dizeres: “Não estamos contratando”. Supus que evidentemente muitos operários, pedreiros, ajudantes de pedreiros, às vezes até outros que não dominam a profissão têm batido por lá à procura de um emprego e nada encontrando. Não obstante estarmos sempre vendo carrões caríssimos lotando nossas ruas estreitas, mansões que sobem todos os dias nos bairros chiques, a pobreza grassa aqui mesmo em nossa cidade. Se quisermos conhecê-la é só dar uma volta pelos bairros distantes e pobres. Ou mesmo no centro da cidade.
Aquela placa “Não estamos contratando” martelou minha cabeça mais do que o barulho das estacas que se prolongaram por quase um mês. O tal aviso sugere que muitas pessoas devam ter passado por lá. Fiquei pensando em cada pessoa que foi até lá procurar um emprego, pelo amor de Deus. Imaginei a decepção, a volta pra casa sem nada nas mãos. Outro dia mesmo vi um moço vestido pobremente em frente a uma dessas agências de emprego. Ele olhava atentamente para os anúncios, vaga disso, vaga daquilo. Seus sapatos eram velhos, pareciam maiores do que os pés. Eu, que vinha alegre e despreocupada da vida, imersa em meus desejos e sonhos, em meu próprio conforto, senti um nó no estômago.
Não estamos nesta vida por acaso. Estamos aqui para a troca, para a paz, para a bondade, li isso numa mensagem dessas de whatsapp, estamos aqui para facilitarmos a existência uns dos outros. Isso mesmo. Há coisas que não podemos mudar, não podemos transformar o mundo, apenas um pouquinho de nossa casa, da nossa família, da nossa calçada. Minha avó nunca teve uma casa, sempre morou em casas alugadas. Contudo, nunca saiu de nenhuma delas sem ter transformado o quintal em um lindo jardim. Não importava que a casa não fosse sua. Na verdade, não somos donos de nada. Mas somos ricos para dar amor. Proust dizia que amor é o que se dá, não o que se recebe.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

AVÓ



Da avó paterna, assisti apenas à morte, eu ainda tão pequena.
Da materna, um tanto de vida.
Por exemplo, trazia seus quintais sempre floridos
Em cada casa alugada que morou.
Fazia um franguinho ensopado maravilhoso,
Bife com caldinho e cebolas
E ainda bolachinhas de nata.
Era amorosa, mas sem rompantes, sem muita festa.
Às vezes vou rezar sentada em minha cama
Com meus livros de oração e me lembro dela
Assim nessa mesma posição.
Do começo do corredor eu já a avistava
Com aquele seu perfil de baronesa
Os cabelos grisalhos puxados para trás
E presos com dois pentinhos
Os óculos de aros fininhos na ponta do nariz
Numa quietude de santos.
De quando em quando interrompia a leitura
Para coçar a ferida na perna.
O livro aberto no colo seria a Liturgia das Horas?
Não sei. Sei que hoje aqui eu faço a mesma coisa.
Sorrio agora enquanto digito este texto poético ou não.
Peço emprestada à infância sua imagem e
É só fechar os olhos e a vejo perfeitamente
Lendo suas orações com o livro no colo.
Naqueles primitivos tempos
Quando me trazia de ônibus, ela perguntava:
- Você prefere ir pra casa de charrete ou de táxi?
E eu, sempre doida pra andar de carro, respondia:
- Táxi.
E ela, esperta:
- De charrete o passeio demora mais.
Eu não pestanejava:
- De charrete.
Sorrio novamente.
Lembro-me de menina ainda entrar por sua casa
Quando ela veio ao meu encontro sorrindo
Minha avó me amava
O amor sobejava.

“DEVAGAR, COMO QUEM COLOCA FLORES EM CAIXÃO” (Mia Couto)



Por esses dias presenciei uma cena que me comoveu. Estava em um determinado lugar onde apareceu uma mulher e um rapaz. A senhora perguntou à moça que me atendia o nome e o contato de outra moça porque ela queria oferecer o bercinho e o carrinho de um bebê que mal chegou a usá-los. Aquilo soou como um soco no estômago. A morte de um bebezinho sempre será algo muito triste. O rapaz apenas olhava para o chão em silêncio, devia ser o pai. Fiquei pensando na mãe olhando para o bercinho vazio. A senhora falava com propriedade de quem é forte. Oferecia o berço naturalmente como se fosse um objeto qualquer, mas isso não significava que ela não sofria. Não. Já aprendi que há um abismo imenso entre uma dor enterrada no fundo do peito e o que externamos.
            Este fato me deixou sem palavras no momento e teria servido para que eu refletisse um pouco, apenas isso. Teria passado batido não fosse hoje por uma frase de Mia Couto fazendo uma comparação: “... devagar, como quem põe flores em caixão.” Como uma cereja traz outra cereja, lembrei-me do bebezinho. Fico enternecida quando me lembro de como as pessoas lidam com tanto cuidado com os bebês que morrem ou mesmo adultos. Fazem tudo com tanta delicadeza como se eles fossem sentir dor, sofrer ou chorar. O bebezinho trouxe a lembrança de minha mãe tirando os brinquinhos da pequenina Andreia cuidadosamente como se ela estivesse dormindo ou fosse acordar. A pequenina Andreia trouxe meus irmãos e meu marido vestindo meu pai morto, estirado naquela pedra fria do necrotério da Santa Casa, enquanto nós, eu e minha irmã, em pranto, éramos abraçadas pela prima Inácia e pela amiga Sandra. E tudo trouxe uma reflexão maior. Este momento de lidar com o corpo sem vida não suporta palavras, é carregado de um silêncio tácito porque qualquer coisa que se diga será desnecessária ou imprópria. O que nos move a ter este cuidado com o corpo que não sente mais dor? É o respeito diante da morte, o respeito pela pessoa que deixou a vida. É assim mesmo. Cuidamos dos corpos sem vida como se derramássemos todo nosso amor sobre eles e assim é de fato. Impossível colocar flores às pressas em um caixão. É o respeito, a despedida final. É a tarefa final, quando a família dispõe cada flor, tudo delicadamente. Tudo o que faltou em vida completamos na morte. Diante de uma pessoa querida estendida sem vida em um caixão trazemos à tona toda sua vida, cada fato cotidiano, cada riso, cada tristeza. E cada flor simbolizando uma vontade de dizer alguma coisa que não foi dita, uma ausência imperdoável, uma palavra áspera que saiu sem querer, enfim, cada flor simbolizando um gesto de amor. Somos humanos, é impossível viver sem machucar, sem dores e feridas e diante da morte percebemos que nunca mais poderemos fazer mais nada. E finalmente uma última cereja apareceu. Lembrei-me de que ao lado de meu pai morto havia um rapaz falecido e duas irmãs chorando por ele. Abraçamos as moças e nos confortamos mutuamente. Ali éramos pessoas que sofriam e nossa dor era uma só. Nunca soubemos quem eram, mas aquele fato ficou registrado. Enfim, a vida é bonita e muito preciosa, mas muitas vezes ela não me parece bela, nem feia, nem feliz, nem triste. Muitas vezes a vida é simplesmente difícil.