segunda-feira, 1 de abril de 2019

“DEVAGAR, COMO QUEM COLOCA FLORES EM CAIXÃO” (Mia Couto)



Por esses dias presenciei uma cena que me comoveu. Estava em um determinado lugar onde apareceu uma mulher e um rapaz. A senhora perguntou à moça que me atendia o nome e o contato de outra moça porque ela queria oferecer o bercinho e o carrinho de um bebê que mal chegou a usá-los. Aquilo soou como um soco no estômago. A morte de um bebezinho sempre será algo muito triste. O rapaz apenas olhava para o chão em silêncio, devia ser o pai. Fiquei pensando na mãe olhando para o bercinho vazio. A senhora falava com propriedade de quem é forte. Oferecia o berço naturalmente como se fosse um objeto qualquer, mas isso não significava que ela não sofria. Não. Já aprendi que há um abismo imenso entre uma dor enterrada no fundo do peito e o que externamos.
            Este fato me deixou sem palavras no momento e teria servido para que eu refletisse um pouco, apenas isso. Teria passado batido não fosse hoje por uma frase de Mia Couto fazendo uma comparação: “... devagar, como quem põe flores em caixão.” Como uma cereja traz outra cereja, lembrei-me do bebezinho. Fico enternecida quando me lembro de como as pessoas lidam com tanto cuidado com os bebês que morrem ou mesmo adultos. Fazem tudo com tanta delicadeza como se eles fossem sentir dor, sofrer ou chorar. O bebezinho trouxe a lembrança de minha mãe tirando os brinquinhos da pequenina Andreia cuidadosamente como se ela estivesse dormindo ou fosse acordar. A pequenina Andreia trouxe meus irmãos e meu marido vestindo meu pai morto, estirado naquela pedra fria do necrotério da Santa Casa, enquanto nós, eu e minha irmã, em pranto, éramos abraçadas pela prima Inácia e pela amiga Sandra. E tudo trouxe uma reflexão maior. Este momento de lidar com o corpo sem vida não suporta palavras, é carregado de um silêncio tácito porque qualquer coisa que se diga será desnecessária ou imprópria. O que nos move a ter este cuidado com o corpo que não sente mais dor? É o respeito diante da morte, o respeito pela pessoa que deixou a vida. É assim mesmo. Cuidamos dos corpos sem vida como se derramássemos todo nosso amor sobre eles e assim é de fato. Impossível colocar flores às pressas em um caixão. É o respeito, a despedida final. É a tarefa final, quando a família dispõe cada flor, tudo delicadamente. Tudo o que faltou em vida completamos na morte. Diante de uma pessoa querida estendida sem vida em um caixão trazemos à tona toda sua vida, cada fato cotidiano, cada riso, cada tristeza. E cada flor simbolizando uma vontade de dizer alguma coisa que não foi dita, uma ausência imperdoável, uma palavra áspera que saiu sem querer, enfim, cada flor simbolizando um gesto de amor. Somos humanos, é impossível viver sem machucar, sem dores e feridas e diante da morte percebemos que nunca mais poderemos fazer mais nada. E finalmente uma última cereja apareceu. Lembrei-me de que ao lado de meu pai morto havia um rapaz falecido e duas irmãs chorando por ele. Abraçamos as moças e nos confortamos mutuamente. Ali éramos pessoas que sofriam e nossa dor era uma só. Nunca soubemos quem eram, mas aquele fato ficou registrado. Enfim, a vida é bonita e muito preciosa, mas muitas vezes ela não me parece bela, nem feia, nem feliz, nem triste. Muitas vezes a vida é simplesmente difícil. 




Nenhum comentário:

Postar um comentário