Há algum tempo um morador de rua tem
sido nosso vizinho. Aproveitou um nicho entre um prédio e uma casa e ali fica
dia e noite. Algumas vezes percebo que ele não está, mas suas roupas em
frangalhos e restos de comida em quentinhas frias indicam que ali é onde mora.
Às vezes passo durante o dia e o vejo dormindo profundamente como se estivesse
em cama de rei. Certa vez passei e ele estava recostado na parede e de olho no
movimento. Me deu um bom dia e eu respondi. Perguntei se não tinha família, se
não tinha ninguém. Ele nada disse, apontou para o alto, olhando demoradamente
para o céu. Captei a mensagem. Só Deus. E logo em seguida, estendeu a mão para
mim. Entendi, tirei o pouco que restava em minha carteira e dei para ele que
sorriu amigavelmente.
Vim
pensativa para casa pensando em sua história que não conheço. Sei que sua vida
não foi fácil, que já nasceu em desvantagem, certamente criado em um ambiente
pobre com nenhum ou pouquíssimo acesso às mordomias ou simplesmente o conforto
de uma ducha de água quente bem gostosa ou, sei lá, qualquer coisa dessas que
temos e nem percebemos como são boas. Este pobre homem não tem culpa de ser um
morador de rua. Também sei que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma
agulha do que um rico entrar no reino de Deus, mas acredito que nem todo rico
seja mau e a misericórdia de Deus é grande. Esta questão de nascer uma criança
já condenada a sofrer tanto pela miséria, pelos maus tratos, pelo preconceito e
já outra nascer filho de príncipes sempre me faz pensar sobre a inexatidão da
vida.
Bem,
evidentemente que o caso do morador de rua passou a fazer parte de nossas discussões
filosóficas em casa. Como entrou julho com aquele frio atroz de matar que me
fez pegar uma gripe do cão, pensei no homem lá fora. Procurei e achei uma blusa
quentinha já usada de meu marido. E fui saindo de casa quando ele me flagrou:
peraí, esta blusa é minha. Não é mais, respondi, agora é do senhor que está lá
fora morrendo de frio. O quê? Redarguiu ele, vai lá e vê. Todo mundo daqui de
perto levou blusa e cobertor pra ele. Ali tem agasalhos e cobertores para
vários invernos. Eu ri porque sei que ele é espirituoso e brinca muito. Levei a
blusa. O homem nem viu. Dormia a sono solto em meio ao burburinho da tarde. Pude
perceber que meu marido tinha razão, o homem dorme por cima de pilhas de
agasalhos. E já o vi vestindo uma jaqueta acolchoada em ótimo estado. Não sei
se é a solução adequada, só sei que as pessoas têm pena. Agora o homem achou
como fazer uma tenda com um lençol cor de rosa que ele prendeu pelas pontas nas
grades ao lado.
Bem, no domingo, já ao final da
missa das quatro, enquanto a comentarista dava os avisos, eis que o
protagonista desta crônica irrompe pelo corredor central da igreja, com um saco
preto nas costas e carregando sua magreza extrema, aproximou-se da escada que
conduz ao altar. Expectativa geral. Em seguida levantou o braço exibindo um
dinheiro nas mãos. Ficou um tempo parado com a nota tremulando ao alto. O padre,
a princípio preocupado, acabou abrindo um sorriso acolhedor. Então o homem
subiu, depositou seu “dízimo” no último degrau e saindo rindo, triunfante.
Há alguns dias passei em frente à
tenda do homem. Ele estava acordado e fumava lá dentro. Talvez por isso tenha
deixado uma fresta para respirar. É esperto, percebeu meus olhos e fixou seu
olhar em mim. Ele é um homem, um ser humano, um filho de Deus como qualquer um
de nós, com todos os direitos que não tem.
Hoje
passei e vi que o homem não está mais lá. Foi retirado. Meu marido disse que o
pessoal da companhia de água precisou fazer a medição e onde estava o registro?
Justamente dentro da tenda do sujeito. As pessoas estavam lavando o local para
se livrarem do mau cheiro. Esta é a vida real. Foi-se embora nosso vizinho,
sabe-se lá para onde. Foi-se embora com
sua história de vida que não conheço nem conhecerei. Nem todo morador de rua
nasceu em uma família pobre. Já conheci gente que levava uma vida normal, que
acabou sem emprego, sem família e foi para as ruas. Um alcóolatra ou uma pessoa
destroçada por um trauma pode acabar nas ruas.
Desejo
que nosso ex-vizinho seja feliz. Parodiando Rabindranath Tagore, cruzo com
muitas pessoas todos os dias e sei que cada uma delas é meu irmão. O morador de
rua também. Sequer eu soube seu nome.
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