Um dia comum. Subo, dou bom dia para
meu marido que já acordado há horas se entretém em suas atividades. Vou para o
lado de fora, e como toda boa dona de casa, melhor dizendo, como toda dona de
casa com boas intenções, guardo a louça do dia anterior, arrumo uma coisa ou
outra e recolho garrafas de vinho e latinhas de cerveja. A coisa foi animada
ontem. Bem, sou meticulosa, portanto, ainda no dia anterior já passei água
dentro de cada latinha para não ficar aquele resto de cerveja atraindo moscas.
Passo por meu marido mergulhado em suas tarefas, mas paro, sempre tenho alguma
coisa para comentar, como algum episódio da reunião do dia anterior, algum
sonho bom ou engraçado e às vezes um sonho ruim que me incomodou. Bem, desço
com a sacola e vou direto para a porta de onde o lixo será devidamente
encaminhado para seu destino.
Neste
momento, sinto algo em meu braço, uma ligeira cócega. Imediatamente, um
turbilhão logo é acionado dentro de mim, algo parecido como aquela sinere que é
disparada quando um tsunami se aproxima da costa do Japão. Desconfio do pior, e
sem ter escapatória, olho de soslaio e vejo uma barata grande, daquelas mais
feias que podem existir. Em sua inocência ela sobe em meu braço, coitada,
talvez e muito provavelmente sem ter a menor ideia de onde está! Pobre barata,
para ela meu braço é um lugar qualquer, onde suas pernas podem andar, subir e
descer. Tudo se passa em segundos, talvez em um segundo, ou um átimo de
segundo. Só sei que o grito de terror, o sacudir o braço e o jogar a sacola
para longe acontecem ao mesmo tempo. Mas mesmo aterrorizada, preciso saber que
destino a infeliz tomou, detalhe importantíssimo para mim, pois se eu perdê-la,
ela vai reaparecer em algum outro lugar, talvez no quarto, enquanto durmo,
coisa que não posso nem imaginar. A barata, torno a dizer, coitada, mais
aterrorizada do que eu (será?) foge a todo vapor.
Grito
o marido, Mottaaaaaaaaaaa, b a r a t a ! Ele desce no mesmo instante porque
conhece a gravidade da situação. Eu tento contar a história toda, desde o
início, mania do meu pai, que todos nós lá em casa herdamos, contar tudo,
tim-tim-por tim-tim. Ele, que já é de falar menos e o essencial, me interrompe,
“para onde ela foi?” Eu mostro, debaixo do fogão, talvez. Digo que vou buscar
aquele espirrador, matador de baratas, tenho um em cada cômodo, mas ele já
arrastou o fogão, e eu fujo, como uma donzela desprotegida da Idade Média,
enquanto meu intrépido herói se prepara para destroçar o dragão. Eu fico atrás
da porta do escritório, ouvidos atentos, coração disparado, adrenalina em
ebulição, ouço barulhos, mais arrastar de alguma coisa, quando finalmente ouço:
pronto, matei! Aí pergunto:
- Bem
morta? Insisto, bem morta? Porque já aconteceu da barata não ficar bem morta de
outras vezes.
- B
e m m o r t aaaa !!!
-
Jogou no lixo?
-
Sim.
E ele começa a cantar aquelas
músicas cubanas que adora. Aí concluo que me casei com o homem certo, mais
encantado com a vida do que a Elika Takimoto. Ele é o salvador do meu corpo,
como diz Adélia Prado, para mim em todos os sentidos, todos mesmo. Apareço trêmula,
pisando em ovos, olhos esbugalhados, em frangalhos já tão cedo. Ele me abraça, me
acalma, me garante que está tudo bem, repete a mesma ladainha de sempre: olha o
seu tamanho e olha o tamanho da barata, argumento totalmente inútil e inválido.
De qualquer forma, agradeço a Deus que me mandou o melhor marido exterminador de baratas do mundo.
Eu
me pergunto: de onde vem tudo isso, quero dizer, este pavor de baratas? Tenho
milhares de histórias de baratas, minhas próprias experiências e de minhas
irmãs e de minhas amigas, histórias hilárias, depois que tudo passa, é claro. Reflito:
e se essa barata fosse como a do conto de Kafka, se fosse um moço bom, trabalhador
que cuidasse da família e num belo dia, tivesse acordado simplesmente transformado
nesse inseto asqueroso. Primeiro, o horror da família, depois o fato inevitável
de aceitar que aquela coisa era o filho, o irmão, depois a tentativa seguida da
impossibilidade de se conviver assim, e por fim o alívio pela morte da barata,
ou do moço. E depois da tragédia toda, a vida se descortina maravilhosa, como o
do caso do bode no meio da sala, ou seja, todos os outros problemas
simplesmente deixaram de existir, estavam livres do infortúnio, e agora são
mais felizes do que nunca. Segundo minha naturalista/mística prima, a barata é
um ser como outro qualquer, é nossa irmã.
Nem
morta!
Nenhum comentário:
Postar um comentário