quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A última caçada








Hoje em dia os cães, gatos e outros animais podem contar com meios modernos para serem sacrificados sem dor ou qualquer crueldade, mas nos tempos antigos era tudo mais rude, mais difícil e mais sofrido, ainda que os animais fossem amados de paixão. Era assim.     
                                                                                                         

A última caçada

(Uma homenagem à Joia, a perdigueira que nos acompanhou por muitos anos)
                                                          
            Hoje amanheci sentindo muita dor. Não sou uma cadela de se entregar assim, mas realmente está ficando difícil suportar essa situação. Não quero pensar o pior, porém meu amigo veio me ver diversas vezes durante a noite. Acariciou minha cabeça como sempre, falou palavras gentis e pude perceber que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Achei esquisito, pareceu uma despedida.
Estou velha, bem sei, mas acho que ainda conseguiria caçar. É claro que sim, afinal sou uma perdigueira, uma caçadora. Como me lembro com alegria das aventuras fantásticas que fizemos pelos açudes, campinas e até montanhas. Naquela época meu fôlego era incansável e meu faro nunca errava. Localizar a perdiz abatida era tão fácil como caminhar ou reconhecer meu amigo. Um verdadeiro cavalheiro! Conhecemo-nos quando eu ainda era uma filhotinha. Ele veio me buscar em Santa Rita. Ficou encantado comigo! Levantou-me no ar e, satisfeito, chamou-me “Joia”. Gostei do nome como gostei do cavalheiro. Sempre nos demos muito bem. Durante a viagem de volta, ele alisava meu pelo marrom e falava coisas que eu não entendia, mas podia sentir perfeitamente o seu carinho por mim. Éramos assim - perfeitos parceiros, uma amizade eterna. Quando chegamos a sua casa, seus filhos ainda pequenos me receberam com tanta alegria que eu me senti uma rainha, a rainha dos perdigueiros. Eu pulava nas pernas dos garotos e eles riam alto, gritavam meu nome: “Joia! Joia!”, corriam como loucos e eu, sempre mais rápida do que todos, alcançava-os com facilidade. Crescemos juntos. Passamos momentos inesquecíveis!
Certa vez, um dos garotos ficou doente. Eu sentia a preocupação de meu amigo. Enquanto o médico visitava a família e examinava o menino, eu, discreta e atenciosa, esperava pacientemente do lado de fora da varanda. Sempre fui inteligente e sensível e aprendi com muita rapidez a captar os sentimentos dessa família maravilhosa. Enquanto o garoto ardia em febre, ao lado da mãe, meu amigo passeava cabisbaixo pelo quintal. A princípio, eu observava de longe, franzia minha testa e achava que o melhor era deitar-me com a cabeça sobre as patas, rentes ao chão. Minhas longas orelhas ficavam caídas e meus olhos acompanhavam para cá e para lá o passear daquele pai que sofria. Sem que eu pudesse conter, um ganido de dor saía do meu coração. Depois, decidi que, como éramos tão amigos, deveria ficar junto dele, sempre. Passei a caminhar ao seu lado, passo a passo. Ele sorriu com ternura, passou a mão pela minha cabeça e falou: “Ah! Joia, Joia!”. Mas o garoto sarou e a casa era só alegria! Crianças subindo e descendo as escadas de madeira e o meninozinho fraquinho ainda, mas alegre. Passamos momentos incríveis juntos! Já disse isso.
Fiquei mocinha e logo meu amigo percebeu minhas necessidades e tendências naturais. Tratou de arrumar-me um companheiro. Lembro-me com ternura daqueles momentos românticos que passei ao lado de um elegante cão de minha raça. De nosso amor nasceram cãezinhos maravilhosos! Uma vez tive seis filhotes, cada um mais lindo e diferente um do outro. Bem dizem por aí que todos são feitos do mesmo barro, mas de formas diferentes! Seis! Exatamente o número de filhos daquela casa. Ah! Não deu outra! Meu parceiro chamou a patroa, buscaram a máquina de tirar fotos e lá posamos para a eternidade. Eu e as crianças, cada uma delas com um filhotinho nos braços. Foi então que fiquei famosa. A foto foi enviada para uma revista e com alegria as crianças se amontoavam sobre o pai para observar a foto estampada, logo que a revista chegou. Se não estou enganada, era a revista “Fauna” de 1958.
A mulher de meu amigo não me via com tão bons olhos como ele e as crianças, mas no fundo, no fundo, ela sempre gostou de mim. Deu para perceber isso logo na primeira oportunidade em que ficamos sozinhas, ela, as crianças e eu. Meu amigo viajou e ela, como quase toda mulher, sentiu medo ou solidão, sei lá, o fato é que me deixou dormir do lado de dentro da casa. Senti-me honrada e tentei corresponder a esse fino gesto com o máximo de minhas possibilidades. Só que eu não contava com um fato. Havia bebido muita água no início da noite porque meu angu com carne moída estava muito salgado e aos poucos foi ficando insuportável aquela vontade de esvaziar a bexiga. Aguentei o que pude. Não deu mais. Fazer xixi ali dentro eu não podia. Não, nunca! Não podia queimar meu filme assim com minha dama. Comecei a chorar e não percebi que chorava tão alto que ela desceu as escadas, preocupada. Inteligente, percebeu o que se passava comigo e logo abriu a porta que dava para o quintal. Meu Deus! Que alívio! Acho que demorei muito e enquanto fazia xixi fiquei olhando com carinho para a figura elegante que me esperava com paciência na porta. Ela se sentou no degrau da cozinha e olhava para as estrelas. Seu perfil à luz da lua era maravilhoso! Voltei meio sem jeito e ela teve um gesto magnífico de ternura que nunca esqueci. Acariciou meu pelo, chamando-me pelo nome. Não hesitei. Deitei a cabeça em seu colo e fechei os olhos. Ali ficamos nós duas por alguns momentos e depois entramos em casa, onde pudemos dormir sem mais problemas. Esses gestos carinhosos se repetiram, mas somente quando estávamos sós. Nunca entendi com muita clareza essas coisas, mas sempre tive certeza de seu amor por mim.
Eu gostava da casa, das crianças, mas, as caçadas! Sendo perdigueira, fui feita para isso! Logo aprendi que quando meu amigo surgia, ainda de madrugada, com roupas de caçador e espingarda na mão, era hora! Eu pulava, rodopiava, latia, gania e lá íamos nós, sempre de camionete, com alguns amigos. Como esquecer aquela alegria louca que me consumia quando nos aproximávamos do campo! O cheiro de capim ainda molhado, a expectativa das primeiras perdizes que apareciam frágeis em seu voo inocente, o tiro! Eu partia numa velocidade incrível em busca da ave. Prendia-a com a boca e a trazia em poucos momentos para o meu amigo que, cheio de orgulho me cumprimentava pelo feito. Algumas vezes, a perdiz caía em pleno lago, o que não constituía problema algum para mim. Entrava sem medo na água e nadava com competência até alcançar a avezinha. Quando voltávamos para casa, já era tarde e, cansados, dormíamos o sono dos justos. Eu sentia nessas ocasiões uma sensação de felicidade, é uma coisa que não sei explicar, um instinto racial mesmo, um dever cumprido, um prazer realizado. Eu nasci caçadora!
Mas o tempo passou, as coisas mudaram. Tivemos que mudar de cidade por razões inesperadas. Meu amigo ficou mais calado, mais triste, acho que sofria de uma enfermidade do sistema nervoso. Sua tristeza passava para mim. Mas ainda participamos de algumas caçadas. Seu irmão vinha nos buscar em sua velha camionete e íamos para o campo. Dava gosto de ver a alegria dos dois. E, por essa época, eu sentia que já não correspondia com tanta presteza aos meus instintos. Talvez fosse por coisas da idade, não posso saber com certeza. Eu ficava atenta aos tiros, corria como louca em busca da perdiz, mas uma vez, que vergonha! Fiquei perdida. Com a ave presa na boca, não conseguia achar o caminho. Dei voltas seguidas, e, nada! Depois de algum tempo, ouvi meu amigo gritando meu nome e foi com dificuldade que o encontrei. Envergonhada, recusei-me a receber seus carinhos. Retirei-me para um canto isolado e deitei o focinho sobre as patas, afinal a gente também tem um pouco de dignidade.
Amanhece. Sinto uma dor insuportável. Minhas tetas estão inflamadas, pesam tanto que mal consigo me manter em pé. Choro alto. Não dá para segurar. Não sei o que tenho, mas espero sarar. Vejo meu amigo se aproximar com a minha dama. Estão sérios. Ele chama meu nome carinhosamente. Tento segurar o choro, mas não dá, a dor aumenta cada vez mais. Ele abre o portãozinho e me chama para fora. Tento ficar em pé, não consigo. Ele e o garoto que agora já é um moço feito, me carregam nos braços. Como eu os amo! Mas o que vejo! É a sua espingarda de caça! Meu Deus! Que alegria! Vamos caçar novamente. Vou conseguir! Vou mostrar para ele que ainda consigo. Já estamos fora de casa. Ah! Lá está a camionete e seu irmão. Vamos mesmo, é certo. Mas não sei por que meu parceiro chora tanto. Tento mostrar a ele que tudo vai dar certo. Abano o rabo, mas qualquer esforço me causa uma dor profunda. Ele não vai. Entra em casa chorando, amparado pela mulher. Tudo bem. Lá vamos nós, eu e seu irmão. Conheço o caminho. Já caçamos muitas vezes por aqui. Chegamos. Ele me tira do carro. Não consigo andar. Ele me arrasta com dificuldade. Sinto vergonha. Ele tira a espingarda. Tenho medo de não conseguir caçar como antes. Ele mira em minha direção. Acho que as perdizes devem estar voando sobre minha cabeça. Ouço o tiro. Fico tonta. Olho para cima. Sim, as perdizes estão voando. São milhares! Vou pegá-las! O cheiro de capim molhado nunca foi tão forte e nunca me senti tão bem! Acho que sarei. Não sinto dor alguma. Sou forte. Sou a Joia, a mais bela e mais ágil perdigueira que já existiu.   

                       
                                                                                             
                                                           

2 comentários:

  1. Esse conto sempre acaba comigo madrinha...kkkkkk Impossível ler sem se emocionar...É lindo e ao mesmo tempo infinitamente triste! É um dos meus favoritos com certeza!!

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    1. Obrigada, minha querida! Também é um dos meus favoritos! E também sinto vontade de chorar toda vez que leio!

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