Elisa afastou-se do computador,
tirou os óculos, fechou os olhos, apertando-os para aliviar o cansaço. Empurrou
a cabeça para trás, num gesto de relaxamento. Dessa vez, as palavras haviam
sumido mesmo. Por mais que abrisse dicionários, apelasse pela memória, nada.
Era duro ter que trabalhar assim. É duro trabalhar com palavras. Isso
mesmo, duro como quebrar rochas, alguém já disse isso. Só que existia uma
diferença abissal entre ser uma escritora por vocação e ser uma trabalhadora de
textos. Elisa era uma revisora de artigos para um jornal e nas poucas horas
vagas fazia adaptações de livros para peças de teatro. Nunca pensara em
escrever por prazer, aliás, mesmo que quisesse, não sobrava tempo.
A moça suspirou profundamente e
fechou o computador. Quem sabe depois de uma boa noite de sono, as danadas das palavras
sumidas apareceriam. Pois naquela noite o sono foi profundo e os sonhos, estranhos.
Elisa sonhou com as palavras de que tanto precisava, mas como sempre acontece
quando se desperta, esquecera delas. Ficou de madrugada olhando para o teto e
tentando lembrar-se das malditas, sim, porque agora as palavras passaram de
danadas para malditas. Voltou para o computador e parou na frase do dia
anterior. Sabia que no sonho as palavras eram as exatas, insubstituíveis, as
que melhor se encaixavam para o sentido do texto. Não tendo como resolver o
impasse, pulou para novo parágrafo deixando aquele inacabado. Talvez sonhasse
novamente com as palavras. Foi para a cama com lápis e papel, agora não me escapam, pensou, achando-se
um pouco louca naquela situação esdrúxula, mas um tanto divertida. De hoje em diante, além de revisora de
textos, também exerço a função de caçadora de palavras, sem nenhum aumento de
salário, que ótimo!
Como numa brincadeira de
esconde-esconde, as palavras não apareceram naquela noite, mas o papel e lápis
ficaram na cabeceira da cama à espera de que elas dessem o ar da graça. Na
noite seguinte, voltaram. Mostraram-se altivas, cheias de si e encarnadas como
se fossem gente e tivessem vida própria. E quem pode afirmar que não têm?
Sôfrega e Peremptória chegaram, de modo sôfrego e peremptório, fazendo jus aos
seus próprios nomes. Mesmo imersa num sono profundo e quase hipnotizada, Elisa
sabia tratar-se de um sonho, como desses em que a gente fica tranquila porque
sabe que, sem sombra de dúvida, é apenas um sonho. Tudo se passava ali mesmo,
em seu quarto. As duas palavras vestidas de gente pararam um tempo na porta e
depois chegaram mais perto, apoiando-se na grade de ferro que emoldurava os pés
da cama. Nem foi preciso fazer uma apresentação, era óbvio quem era uma e quem
era outra. Sôfrega era inquieta, tinha uma cabeleira ruiva, crespa, que ela
jogava para trás a cada instante. Mexia as mãos nervosamente e mordia o lábio
inferior, meneando a cabeça. Peremptória tinha os cabelos negros, lisos, o
rosto afilado e o olhar penetrante e duro, mais parecia uma estátua. Peremptória
falou primeiramente: Preste atenção,
moça, nós decidimos vir pessoalmente porque não somos de meia palavra.
Resolvemos lhe ajudar, afinal você tem se debruçado dias e noites sobre nosso
universo verbal. Entretanto, é necessário dizer o quanto estamos chocadas com
sua maneira de nos tratar, a nós, as palavras.
Nesse momento, Sôfrega, que
não mais se aguentava para derramar seu verbo sobre Elisa, interrompeu a amiga,
tomando-lhe a palavra. Disse ela a Elisa: Mocinha,
somos de natureza adjetiva, existimos para dar vida aos substantivos, não que
sejamos mais importantes do que eles, mas somos o colorido, percebe? Se você
for até seu texto, comprovará o doloroso vazio provocado por nossa ausência.Elisa
tentou se desculpar, medindo as palavras com cuidado: exatamente, vocês sumiram, deixando um vazio insuportável, como é que
não encontrei vocês? E concluiu: é
que estou muito cansada, trabalho com as palavras, entenderam? Tenho que dar
conta de agrupar centenas, milhares, bilhões de palavras por dia. Às vezes,
elas me faltam. Peremptória, sempre decidida, replicou: tudo bem, querida, só que você se comporta
em seu trabalho tão belo e digno, como se fizesse palavras cruzadas, assim,
displicente, com muita pressa, para não usar outra palavra mais forte, com
muita violência. Elisa ficou envergonhada e tratou de se justificar: não tenho palavras para me desculpar, não as
encontro, parece uma maldição, não encontrar palavras para dizer ou para
escrever. Nesse instante, Sôfrega cortou a palavra de Elisa e deu vazão ao
seu caráter melodramático: não diga nem
mais uma palavra. Você está precisando escutar. Sem palavras, o homem está
fadado à inexistência, a um vazio de significações, à ausência de
subjetividade, à impossibilidade de se constituir no discurso, aliás, de que é
feito um discurso? De palavras, é claro. A palavra é o homem e o homem é a
palavra. E Sôfrega jogou os cabelos para trás, estava com as faces
vermelhas e satisfeita com o próprio discurso.
Elisa escutou com atenção e apelou para outro argumento: é que esse meu trabalho é por dinheiro, dá para entender? Eu vivo das
palavras, ganho meu salário trabalhando com elas, não é bem por prazer...Neste momento, Peremptória aproximou-se mais de Elisa e lhe disse com doçura, mas
muita determinação: Entendi, você é uma
mercenária de palavras. Trabalha com
elas para quem pagar mais. Você
precisa, com urgência, resgatar o prazer das palavras. Você já pensou quantas
pessoas gostariam de realizar o seu ofício? Para onde foi parar aquele desejo
ardente e apaixonante dos primeiros tempos em que lidou profissionalmente, mas
amorosamente com as palavras? Você se lembra de quando era só abrir o computador
e as palavras derramavam-se verborragicamente em enxurradas abundantes de
alegria verbal? As letras atropelavam-se, acotovelando-se num frenesi
contagiante para formar as palavras. Elisa, comovida, aquiesceu: Novamente, estou sem palavras. Palavra de honra que de hoje em diante será tudo
diferente. Tratarei as palavras com o maior respeito e dignidade. Vocês me
convenceram. Sôfrega acrescentou: assim
é que se fala. Você tirou a palavra de minha boca, dignidade, é isso aí. E
depois, tem outra: se você trabalhar com prazer, suas palavras não serão atiradas
ao vento e o dinheiro virá por acréscimo.
Elisa
sorriu e disse: que palavras bonitas!
Obrigada, agradeceu Sôfrega,
complementando: não são só bonitas, são
fortes, tão fortes como aquelas que você usou para nos designar, danadas,
malditas! Saiba que as palavras têm peso, devem ser usadas apropriadamente.
Elisa desculpou-se novamente: foram
apenas palavras, eu não pensava isso, de fato. É que eu estava cansada, até
desesperada, foi um desabafo e quando a gente está assim, não consegue conter
as palavras. Desculpe-me pela falta de jeito de lidar com as palavras.
Peremptória entrou na conversa: está tudo
certo, chega de tanto palavreado e tenha cuidado com os palavrões. Daqui por
diante, meça e pese suas palavras e lembre-se sempre de que “no início era o
verbo e o verbo se fez carne...” santas palavras! ou se preferir, no início era
a palavra... tanto faz... o importante é você saber que estamos aqui bem antes
de você e seu ofício. Já vamos indo. Não dê uma palavra com ninguém sobre este
nosso encontro. Mais uma palavrinha: se precisar de nós, é só dizer a
palavra-chave que viremos.
Elisa agradeceu mais uma vez. No dia seguinte,
assim que acordou, levantou-se e foi direto à sua estante de livros, de onde
tirou um exemplar de poemas e leu a frase de Rilke de que tanto gostava e de que
se esquecera com o correr dos anos: “tenho tanto medo das palavras. Elas dizem tudo
com tamanha precisão"
Perfeito! Amo esse =D
ResponderExcluirBrigadu!Sofia, te amoooooooooooo
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