Dona Celina escreve apressadamente
uma cartinha relatando ao médico os sintomas das meninas que amanheceram
doentes. Com as mãos trêmulas porque as mães sempre serão assaltadas por um fio
de medo, ela põe a carta dentro de um envelope e sai em direção à estação
ferroviária. A década é de 50 e o século é o XX. Lá ela procura pelo maquinista
que já desconfia do que se trata: Pois não Dona Celina!. E ela: Seu Bernardo,
faz este favorzinho pra mim, favorzinho não, favorzão, né? Claro, Dona Celina.
De tardezinha trago a resposta. Vai ficar tudo bem.
O trem parte de Delfim Moreira em
direção a Itajubá. Lá Seu Bernardo se dirige ao consultório do Dr. João de
Azevedo. Entrega a cartinha para a recepcionista que leva até à sala do médico.
Seu Bernardo não espera, vai resolver outras encomendas pela cidade e volta
mais tarde. A moça sorridente entrega ao bom homem a resposta da cartinha com
remédios para as meninas de Dona Celina. Já de volta a Delfim Moreira, o
maquinista a encontra aflita na estação esperando ansiosa por ele. Ela sorri
cheia de alegria e esperança: Ah Seu Bernardo, o senhor é um santo. Em casa,
ela lê as instruções escritas pelo médico e já vai pro quarto medicar as
meninas que logo estarão saudáveis. Quando o marido de Dona Celina voltar de
viagem, vai procurar pelo Dr. João de Azevedo para acertar os remédios que
muitas vezes serão de graça.
Em Itajubá, Dona Matilde grita a
vizinha: oh Consuelo, faz um favor, fia! Tô atrasada pra entregar duas tortas
de frango e pode ser que o Doutor Gaspar passe aqui pra ver as crianças bem na
hora que eu estiver fora. Então, fia, dá uma olhadinha nas crianças pra mim. Se
brigarem pode chamar a atenção, viu? O Doutor Gaspar ficou de dar um pulinho
aqui para ver o Serginho, tô tão preocupada. Acho até que pode ser caxumba. Se
o Doutor aparecer, faz um cafezinho pra ele, por favor. De noite a gente vai na
novena de Nossa Senhora da Soledade, né? E Dona Consuelo debruçada na janela,
canta junto com rádio Itajubá: vai em paz comadre! Deixa que eu olho aqui. Acho
até bom que o Doutor venha porque vou mostrar pra ele a ferida do Marquinho que
não fecha. Vai com Deus!
Dona Consuelo adiantou o serviço,
sempre cantando, quando de repente lembrou-se do Doutor. Nossa Senhora,
esqueci! Pegou a chave da casa de Dona Matilde e saiu ventando para a casa da
vizinha. E não é que o Doutor Gaspar estava pulando a janela da casa de Dona
Matilde? Só que da sala para a rua da vila. Já tinha entrado pela janela uma
vez que ninguém abria a porta. Viu a criançada toda, todo mundo mostrou a
garganta, ele abriu o olho de uma, escutou o pulmão de outra. Prestou mais
atenção no Serginho conforme a mãe havia descrito os sintomas. Dona Consuelo se
desculpou: Perdão, Doutor, distraí com a novela da tarde. Tá tudo bem aí com as
crianças? E o médico: estão bem, diz pra Dona Matilde que o Serginho não tem
caxumba não. Deixei a receita em cima da mesa. E a boa vizinha: Mas entra aqui
pra tomar um cafezinho, aí aproveita e vê a ferida do Marquinho. Fiz bolo de
fubá, daquele que o senhor gosta.
Estes eram os médicos para quem as
fronteiras não existiam. Fosse a serra de Delfim Moreira ou a porta fechada da
casa de Dona Matilde. Dizem que a vida mudou, que a população aumentou, que a
miséria grassou, que médico da família é coisa do passado, quanto mais para
pobres, que isso mais aquilo. Tudo bem, é verdade que o mundo é outro, mas a
solidariedade é da essência do homem, não há como mudar, não há época, século
ou décadas para isso. Ou se tem ou não se tem. E quem a perdeu está perdido e
deve ser resgatado. Emocionada, registro aqui minha admiração pelos notáveis médicos
Dr. Gaspar e Dr. João de Azevedo que atenderam mães aflitas e viúvas que
batalhavam pela vida. Minha admiração não é só por eles, também pelas mães
extremosas, pelos maquinistas e vizinhos anônimos para quem as fronteiras da
solidariedade jamais existiram.
É,
pensando bem, acho que o mundo naquela época era melhor sim.
(As
histórias relatadas aqui são reais, e somente os nomes foram alterados. O
floreado ficou por conta de minha alma de poeta e da licença poética a que
temos direito).
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