sábado, 23 de setembro de 2017

DOUTOR GASPAR LISBOA e DOUTOR JOÃO DE AZEVEDO: NOTÁVEIS MÉDICOS SEM FRONTEIRAS (dedicado ao querido Darcy)



            Dona Celina escreve apressadamente uma cartinha relatando ao médico os sintomas das meninas que amanheceram doentes. Com as mãos trêmulas porque as mães sempre serão assaltadas por um fio de medo, ela põe a carta dentro de um envelope e sai em direção à estação ferroviária. A década é de 50 e o século é o XX. Lá ela procura pelo maquinista que já desconfia do que se trata: Pois não Dona Celina!. E ela: Seu Bernardo, faz este favorzinho pra mim, favorzinho não, favorzão, né? Claro, Dona Celina. De tardezinha trago a resposta. Vai ficar tudo bem.
            O trem parte de Delfim Moreira em direção a Itajubá. Lá Seu Bernardo se dirige ao consultório do Dr. João de Azevedo. Entrega a cartinha para a recepcionista que leva até à sala do médico. Seu Bernardo não espera, vai resolver outras encomendas pela cidade e volta mais tarde. A moça sorridente entrega ao bom homem a resposta da cartinha com remédios para as meninas de Dona Celina. Já de volta a Delfim Moreira, o maquinista a encontra aflita na estação esperando ansiosa por ele. Ela sorri cheia de alegria e esperança: Ah Seu Bernardo, o senhor é um santo. Em casa, ela lê as instruções escritas pelo médico e já vai pro quarto medicar as meninas que logo estarão saudáveis. Quando o marido de Dona Celina voltar de viagem, vai procurar pelo Dr. João de Azevedo para acertar os remédios que muitas vezes serão de graça. 
            Em Itajubá, Dona Matilde grita a vizinha: oh Consuelo, faz um favor, fia! Tô atrasada pra entregar duas tortas de frango e pode ser que o Doutor Gaspar passe aqui pra ver as crianças bem na hora que eu estiver fora. Então, fia, dá uma olhadinha nas crianças pra mim. Se brigarem pode chamar a atenção, viu? O Doutor Gaspar ficou de dar um pulinho aqui para ver o Serginho, tô tão preocupada. Acho até que pode ser caxumba. Se o Doutor aparecer, faz um cafezinho pra ele, por favor. De noite a gente vai na novena de Nossa Senhora da Soledade, né? E Dona Consuelo debruçada na janela, canta junto com rádio Itajubá: vai em paz comadre! Deixa que eu olho aqui. Acho até bom que o Doutor venha porque vou mostrar pra ele a ferida do Marquinho que não fecha. Vai com Deus!
            Dona Consuelo adiantou o serviço, sempre cantando, quando de repente lembrou-se do Doutor. Nossa Senhora, esqueci! Pegou a chave da casa de Dona Matilde e saiu ventando para a casa da vizinha. E não é que o Doutor Gaspar estava pulando a janela da casa de Dona Matilde? Só que da sala para a rua da vila. Já tinha entrado pela janela uma vez que ninguém abria a porta. Viu a criançada toda, todo mundo mostrou a garganta, ele abriu o olho de uma, escutou o pulmão de outra. Prestou mais atenção no Serginho conforme a mãe havia descrito os sintomas. Dona Consuelo se desculpou: Perdão, Doutor, distraí com a novela da tarde. Tá tudo bem aí com as crianças? E o médico: estão bem, diz pra Dona Matilde que o Serginho não tem caxumba não. Deixei a receita em cima da mesa. E a boa vizinha: Mas entra aqui pra tomar um cafezinho, aí aproveita e vê a ferida do Marquinho. Fiz bolo de fubá, daquele que o senhor gosta.
            Estes eram os médicos para quem as fronteiras não existiam. Fosse a serra de Delfim Moreira ou a porta fechada da casa de Dona Matilde. Dizem que a vida mudou, que a população aumentou, que a miséria grassou, que médico da família é coisa do passado, quanto mais para pobres, que isso mais aquilo. Tudo bem, é verdade que o mundo é outro, mas a solidariedade é da essência do homem, não há como mudar, não há época, século ou décadas para isso. Ou se tem ou não se tem. E quem a perdeu está perdido e deve ser resgatado. Emocionada, registro aqui minha admiração pelos notáveis médicos Dr. Gaspar e Dr. João de Azevedo que atenderam mães aflitas e viúvas que batalhavam pela vida. Minha admiração não é só por eles, também pelas mães extremosas, pelos maquinistas e vizinhos anônimos para quem as fronteiras da solidariedade jamais existiram.
É, pensando bem, acho que o mundo naquela época era melhor sim.  
(As histórias relatadas aqui são reais, e somente os nomes foram alterados. O floreado ficou por conta de minha alma de poeta e da licença poética a que temos direito).

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