Entro em minha salinha do
computador, dos meus livros e escritos com anotações ininteligíveis jogados displicentemente
sobre minha mesa e por todos os lugares. Lembro-me de um amigo que veio nos
visitar e me perguntou: aqui que nascem suas crônicas? Não. Na verdade aqui são
confeccionadas, elas nascem nas ruas, nos encontros, nas conversas com os
outros e comigo mesma. Mas hoje não tem jeito, vai ter que ser fabricada aqui
mesmo. Infeliz da vida, eu percebo que é daquelas vezes em que minha fonte de
ideias está mais seca do que o Deserto do Atacama. Escrever sobre o quê?
Sei que a crônica vai acontecer. Ela
está prisioneira em algum lugar dentro de mim. Resta saber qual o caminho que
terei que trilhar para encontrá-la. Normalmente várias trilhas se abrem, mas
hoje nenhuma aparece. Com insano otimismo olho para a tela em branco imaginando
que logo meu texto estará inteiraço ali, e concedo-me pretensiosamente fazer a
comparação com Michelangelo que ficava à espera de enxergar algo dentro do
bloco de mármore. Foi assim que nasceu o famoso Davi e também o assombroso
Moisés, para quem Michelangelo disse: “Por que não falas, Moisés?” Então, não
foi assim?
Bem, depois desta desbaratada e desastrosa
comparação com Michelangelo, já sei que meu bloco de mármore está mais para
pedregulho e não há Davi que hoje saia daqui. Tentemos por outras vias. Corro
os olhos pelos livros na estante, procuro por algo que me inspire. Lembro-me de
Roger Laporte que dizia que não concebia uma leitura que não suscitasse outra
escritura. Então vamos às fontes e àqueles conselhos de grandes mestres, tipo
“se você quiser escrever um bom poema, leia uma boa prosa e vice-versa”. Leio
Carlos Drummond de Andrade. Nossa! Carlos Drummond em “A procura da poesia” me
diz: “penetra surdamente no reino das palavras, lá estão os poemas que esperam
ser escritos.” Depois me deparo com outro poema seu em que ele enumera as
coisas gostosas da vida: “uma tarde amena, calçar um velho chinelo, ouvir a
chuva no telhado (isso tá difícil), vinho branco (hummm)...” Com isso acabo
fazendo minha própria lista de coisas gostosas, mas não vou enumerá-las aqui,
não ao lado da lista do Carlos Drummond, chega de ofender os grandes mestres.
Michelangelo já está de bom tamanho.
Vou dizer só uma coisinha da minha
lista, uma não, duas: 1- parar na calçada para admirar com ternura as patinhas
dos cães incrustadas no cimento duro. 2- ter sempre um lugar para voltar. É. Há
sempre um momento em que podemos voltar para um lugar onde nos sentimos
seguros, felizes. Pode até ser sua própria casa quando você chega de uma viagem e
revê seus queridos (se mora sozinho, vai rever seus livros e flores), vai
dormir na sua própria cama, percebe que na sua ausência nasceram flores novas
no seu vaso preferido, bebe o café no seu caneco de estimação e brinca com seu
cãozinho ou gatinho que está literalmente enlouquecido de saudades de você. É
sempre bom sair para ter um lugar para voltar.
Escrever é um prazer, mas é difícil
pra mim, embora digam que escrevo como se estivesse falando. É um caminho de
pedras, onde tudo é construído. Porém, quando entre as pedras colhemos flores
raras e belas, o prazer é infinitamente maior, indescritível. Quanto mais
difícil maior se torna o prazer de construir. Por hoje é só. Espero que
Michelangelo, onde esteja, não se aborreça com minha pretensa comparação e que
Carlos Drummond me inspire a contemplar as “palavras mudas em estado de
dicionário” me provocando a todo instante, suscitando em mim novas escrituras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário