Não é preciso esperar o ano novo
para os bons propósitos. Constantemente vamos aprendendo, reaprendendo e
recomeçando, sem de fato conhecermos a nós mesmos como deveríamos. Na verdade,
eu sempre me estranho e me desconheço. Vou vivendo e me deixando contaminar pela
superficialidade do mundo até que de repente se quebra minha redoma de
indiferença e sou despertada de meu torpor glacial. Aí me confronto, perplexa,
reflito sobre meus pensamentos, sentimentos e atitudes. É horrível constatar
minha pequenez e imperfeição, por outro lado, é bom saber que ainda posso
melhorar. Então vamos seguindo. O importante é aprender, não perder a leveza,
não deixar morrer a ternura indispensável que nos sustenta a cada dia.
Eu, como sempre perfeitíssima nos
meus horários, nas aparências, nos julgamentos e intolerâncias, cheguei
pontualmente na hora marcada pela dentista. Imaculadamente no horário. Mas lá
estava uma mulher antes de mim. Logo a dentista abriu a porta e pareceu hesitar
entre chamar a mim, que sempre fui fidelíssima e impecável no horário, e
atender a retardatária. Atendeu a retardatária, com uma discreta e carinhosa
reprimenda. E eu fiquei a ver navios. Meia hora fiquei esperando, meeeia hora!
Até que enfim a moça saiu. Eu, com a cara enterrada no celular, nem cuidei de
cumprimentá-la. Não a conheço, talvez eu nunca vá vê-la novamente.
Lá dentro a dentista conversou
comigo. Pois é, mas sabe o que acontece? Ela é cuidadora, cuida de uma velhinha
de 93 anos! E a senhora não deixa que ela saia facilmente, sabe como é, não? Caíram
as escamas de meus olhos. Lá fui eu julgar a moça, chamando-a de retardatária,
de sem responsabilidade, de invadir o horário dos outros. Quem sou eu? O que
sei dela? Por que não posso ceder meia hora do meu tempo para ela? Grandes
coisas meia hora! Ora que bobagem, como dizia minha mãe. Percebi que sempre
prezo minha nobre aparência de perfeita, minha zona de conforto, expressão dos
tempos modernos. Percebi que pouco estou aí para os outros, sempre envolvida
com meu próprio umbigo. O justo cai sete vezes ao dia, não menos do que isso,
às vezes muito mais, como eu. Ah meu Deus, nunca faço o bem que quero e faço o
mal que não quero.
Respirei profundamente, envergonhada
e desanimada. Quanto mais vivo mais erro, parece que não acerto nunca. Ter
caridade com o próximo compreende muito mais do que ir à Vila Vicentina e levar
um pouco de leite no momento que me é mais conveniente. Na verdade, a lista
enorme de boas intenções e de ações se resume numa única prática: olhar o
próximo com humanidade. E o próximo é o próximo que está na nossa frente, no
nosso caminho, no elevador, no supermercado, nas clínicas e às vezes invadindo
nossa agenda perfeita. Meu próximo hoje foi a moça que não cumprimentei como
irmã porque me senti desconsiderada. Entre minhas boas intenções e ações há
sempre um abismo descomunal.
Enfim, gente, vamos começando tudo
de novo como uma criança, gosto tanto desta frase de Rilke porque a criança
recomeça sem desânimo, sem carregar culpa, sem achar que é indigna. E essas
culpas são perigosas, pois que afastam de nós o desejo de sermos melhores,
porque sempre desanimamos ao constatarmos que não somos merecedores da graça e
aí nos punimos com remendos velhos. Xô desânimo, culpa confessada, culpa
perdoada, alma lavada. Vida nova. Não quero vida remendada por Deus, quero que
Deus me dê vida nova. Não colocarei vinho novo em odres velhos. Não. Vinho novo
em odres novos. Pronto. Estou recomeçando como uma criança.
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