terça-feira, 24 de julho de 2018

PERDAS E PORTAS


            Conversando com uma prima que perdeu recentemente os pais com um intervalo pequeno entre as mortes, ponderávamos sobre os destroços emocionais causados pela perda de pessoas queridas. Não estamos nunca preparados para perda nenhuma. Ah, mas já eram velhinhos, ah, mas não tinham mais qualidade de vida! Eu sei, mas perda é perda. Nosso coração é um pacote de cacos quebrados. O luto é real e necessário. Já li ou vi num filme que quando perdemos os pais, metaforicamente enterramos nossa infância. Quando meu pai morreu, ainda tinha minha mãe, tudo bem, mãe é sempre forte. Mas depois, quando ela partiu, eu me senti como uma menina que tem que pegar sua malinha e deixar definitivamente a casa da infância. Eu era uma órfã e para ser órfã não importa a idade. Somos tomados por uma enorme vulnerabilidade. Nos primeiros meses, até anos, voamos às cegas um bom tempo até encontrar um céu limpo e um chão seguro para pousar. 
Bem, fui mostrar para a prima a reforma que fizemos. Fechamos a porta que havia no quartinho de computador que dava direto na área e cozinha. A partir daí, só podemos entrar na cozinha pela sala. E eu disse a ela que minha mente gastou mais ou menos duas semanas para assimilar a mensagem que a porta do quartinho não existia mais. Sempre que eu ia à cozinha, entrava pelo escritório e dava com a parede. Até que me acostumei com a entrada pela sala. Minha mente insistia em fazer o caminho anterior. A mente da gente é incrível! Adapta-se a tudo, praticamente.
Sem querer, fizemos uma comparação da porta da salinha do computador com outras portas que nossa mente e nosso coração encontram para retomar a vida.  No início nós nos sentimos estranhos seres paralisados por um tempo sem encontrar a saída. Seria estranho se eu permanecesse diante da parede procurando inutilmente pela porta que não existia mais. Mas é evidente que neste caso trata-se de uma questão objetiva. Eu apenas sorria diante da teimosia da minha mente e ia para a cozinha pela outra entrada. Agora, quando uma pessoa doa sua vida por cinco, sete ou mais anos cuidando dos pais, seja nas decisões que se têm que tomar ou cuidando pessoalmente com curativos, banhos e alimentação, isso é outra coisa. Nossa vida pessoal simplesmente deixa de existir. Todos os nossos projetos são cancelados ou adiados e nossos pensamentos vivem ocupados quase que exclusivamente com os pais doentes.
Perder os pais é doloroso porque é como se perdêssemos nossa referência, nossa origem, nossa história. Depois que eles se vão, não sabemos como retomar nosso caminho. Quando tentamos fazer alguma coisa, somos consumidos por um vórtice voraz que nos remete para as últimas semanas de sofrimento, de lágrimas, abraços de pêsames. Se direcionamos os pensamentos para o passado, quando tudo era mágico e seguro, lá vem o vórtice nos engolfando. Não há nada seguro, não há lugar seguro. Às vezes acordamos com a lembrança de que tal medicamento tem que ser comprado bem antes que o outro acabe, e aí nos lembramos que tudo isso já passou. Acontece. Há fatos que permanecem além da nossa capacidade de controlá-los.
Mas nossa mente é mágica, ela busca para nós aquilo exatamente que desejamos. Só que ela precisa de um tempo. Para assimilar que a porta do quartinho já não existia mais, minha mente levou cerca de duas semanas. Para assimilar que nossos pais não existem mais e que urge encontrar novos caminhos, certamente ela vai precisar de mais tempo. No início do luto o voo é de fato às cegas, neste caso simplesmente é deixar rolar.
Por mais cruel e triste que possa parecer, ouvi de uma sábia pessoa: a morte é uma libertação para os que se vão e também para os que ficam. É normal não saber o que fazer com esta estranha liberdade.                 

Nenhum comentário:

Postar um comentário