sexta-feira, 10 de agosto de 2018

QUEM SOU EU



            Sempre fiquei muito impressionada com filmes e livros que tratam de casos de pessoas que perderam a memória temporariamente ou para sempre devido a traumas por acidentes ou mesmo traumas emocionais. Também não podemos nos esquecer das pessoas acometidas por Mal de Alzheimer ou de qualquer outra demência que cause a perda de memória, de identidade, de referência. Não temos a mínima ideia de como pode sofrer uma pessoa que não sabe mais nada de si, de seu passado. Perder a própria história deve ser a mais angustiante das experiências. Eu própria passei por isso em poucos minutos quando fui operada com anestesia geral. Quando acordei na sala de recuperação, eu não sabia onde estava, não sabia o que havia acontecido, sequer me lembrava de quem eu era, uma sensação de terror, como estar perdida na própria casa. Só recuperei minha memória quando era conduzida ao quarto. Deitada de costas na maca, fui vendo passar as lâmpadas acesas do teto, aí saquei, eu me lembrei de quando tinha sido levada para a sala de cirurgia - fui operada! Abençoada descoberta que reconduziu os vagões descarrilhados às trilhas do meu eu avariado pela anestesia.     
Minha mãe ficou demente nos últimos anos de sua vida, mas ela nunca apresentou aqueles sinais de ausência que os pacientes de Alzheimer apresentam, embora os médicos insistam em dizer que no final todas as demências se misturam. Não sei. Ela nos conheceu e nos chamava pelo nome até quase o fim. Houve uma área em seu cérebro que ficou danificada e afetou sua relação com lugares, espaços. Saíamos de casa para passear e quando voltávamos ela dizia: esta casa é igualzinha à outra! Ela não reconhecia a própria casa e também sempre queria ir embora, mas era esperta, nada lhe escapava. Certa vez a cuidadora me contou que foi “sondá-la” com bastante cuidado para ver se ela ainda dormia e minha mãe, já acordada, disse em alto e bom tom com toda a propriedade: É a Zezé que está aqui, pode entrar. Ela sabia com toda a certeza que era a Zezé do Tote, que nasceu em Conceição das Pedras, morou em Cristina, em Caxambu, que se casou com o Tote, teve seis filhos, morou em Pedralva, e amava a Deus mais do que tudo. Sua memória ainda era prodigiosa. Ela era dona de sua história.
Como é significativa a história de cada pessoa. Não conseguimos separar quem fomos do quem somos. Certamente que o conjunto de pensamentos, ideias, comportamentos e crenças vêm do que nos foi passado. Romper com esses laços atávicos é algo brutal. No entanto sabemos que muitas vezes o que era bom para nossos pais, não o é para nós. Como é salutar a gente construir o próprio caminho, tomar posse da luz que nossas mães nos deram quando nascemos, pois foi para isso mesmo que elas nos deram à luz. E como é triste quando uma pessoa perde a sua luz, não conseguindo mais se lembrar nem do próprio nome, transitando no aterrorizante labirinto do esquecimento.
Meu marido me disse certa vez: feche os olhos, esqueça seu nome, por um instante se esqueça de sua história e referências, pergunte para você, sem medo: Quem sou eu? De onde vim? Fechei os olhos, mas abri. Não tive coragem de prosseguir naquela experiência bizarra e talvez perigosa. Tive medo, confesso. Tive medo de um possível deslocamento do que me era familiar, no caso, a imagem de mim mesma, para a ordem do estranho. Sabe-se lá o que existe por detrás do meu eu. Quero com certeza me lembrar de que sou a Misa, segunda filha da Zezé do Tote, nascida aqui em Itajubá, que morou em Pedralva e que o dia mais triste de minha vida continua sendo aquele dia em que tivemos que nos mudar de lá. Sou a Misa, ex-bancária, escritora de repente depois dos quase 50, começando com pequenas crônicas que pediam para vir à luz. Isso mesmo, a segunda filha da Zezé do Tote.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário