Sempre fiquei muito impressionada
com filmes e livros que tratam de casos de pessoas que perderam a memória temporariamente
ou para sempre devido a traumas por acidentes ou mesmo traumas emocionais.
Também não podemos nos esquecer das pessoas acometidas por Mal de Alzheimer ou
de qualquer outra demência que cause a perda de memória, de identidade, de
referência. Não temos a mínima ideia de como pode sofrer uma pessoa que não
sabe mais nada de si, de seu passado. Perder a própria história deve ser a mais
angustiante das experiências. Eu própria passei por isso em poucos minutos
quando fui operada com anestesia geral. Quando acordei na sala de recuperação,
eu não sabia onde estava, não sabia o que havia acontecido, sequer me lembrava
de quem eu era, uma sensação de terror, como estar perdida na própria casa. Só
recuperei minha memória quando era conduzida ao quarto. Deitada de costas na
maca, fui vendo passar as lâmpadas acesas do teto, aí saquei, eu me lembrei de
quando tinha sido levada para a sala de cirurgia - fui operada! Abençoada descoberta
que reconduziu os vagões descarrilhados às trilhas do meu eu avariado pela
anestesia.
Minha
mãe ficou demente nos últimos anos de sua vida, mas ela nunca apresentou
aqueles sinais de ausência que os pacientes de Alzheimer apresentam, embora os
médicos insistam em dizer que no final todas as demências se misturam. Não sei.
Ela nos conheceu e nos chamava pelo nome até quase o fim. Houve uma área em seu
cérebro que ficou danificada e afetou sua relação com lugares, espaços. Saíamos
de casa para passear e quando voltávamos ela dizia: esta casa é igualzinha à
outra! Ela não reconhecia a própria casa e também sempre queria ir embora, mas
era esperta, nada lhe escapava. Certa vez a cuidadora me contou que foi
“sondá-la” com bastante cuidado para ver se ela ainda dormia e minha mãe, já
acordada, disse em alto e bom tom com toda a propriedade: É a Zezé que está
aqui, pode entrar. Ela sabia com toda a certeza que era a Zezé do Tote, que
nasceu em Conceição das Pedras, morou em Cristina, em Caxambu, que se casou com
o Tote, teve seis filhos, morou em Pedralva, e amava a Deus mais do que tudo.
Sua memória ainda era prodigiosa. Ela era dona de sua história.
Como
é significativa a história de cada pessoa. Não conseguimos separar quem fomos
do quem somos. Certamente que o conjunto de pensamentos, ideias, comportamentos
e crenças vêm do que nos foi passado. Romper com esses laços atávicos é algo brutal.
No entanto sabemos que muitas vezes o que era bom para nossos pais, não o é
para nós. Como é salutar a gente construir o próprio caminho, tomar posse da
luz que nossas mães nos deram quando nascemos, pois foi para isso mesmo que
elas nos deram à luz. E como é triste quando uma pessoa perde a sua luz, não
conseguindo mais se lembrar nem do próprio nome, transitando no aterrorizante labirinto
do esquecimento.
Meu
marido me disse certa vez: feche os olhos, esqueça seu nome, por um instante se
esqueça de sua história e referências, pergunte para você, sem medo: Quem sou
eu? De onde vim? Fechei os olhos, mas abri. Não tive coragem de prosseguir
naquela experiência bizarra e talvez perigosa. Tive medo, confesso. Tive medo
de um possível deslocamento do que me era familiar, no caso, a imagem de mim
mesma, para a ordem do estranho. Sabe-se lá o que existe por detrás do meu eu. Quero
com certeza me lembrar de que sou a Misa, segunda filha da Zezé do Tote,
nascida aqui em Itajubá, que morou em Pedralva e que o dia mais triste de minha
vida continua sendo aquele dia em que tivemos que nos mudar de lá. Sou a Misa,
ex-bancária, escritora de repente depois dos quase 50, começando com pequenas
crônicas que pediam para vir à luz. Isso mesmo, a segunda filha da Zezé do
Tote.
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