A
época foi final dos anos 70. Novinhas colegas bancárias, amigas do coração, a
Sandra e eu éramos muito unidas. Pois bem, a Sandra me telefona um dia pedindo
que eu fosse com ela à Santa Casa porque ela achava que havia quebrado o
dedinho do pé. Lá fomos e nos ajeitamos em uma sala velha e pobre onde ficamos
esperando um atendimento por muitas horas, o que não constituiu problema para
nós que sempre tínhamos assuntos infindáveis.
Um
pouco depois de termos chegado, apareceu um jovem casal da roça, da roça mesmo,
vestidos pobremente. O rapaz, jovem, magro e alto trazia no colo um garotinho
de uns seis anos que chorava cada vez que se mexia. A moça, tão humilde que não
levantava os olhos para ninguém, também estava com um bebezinho ao colo que
mamava avidamente em seu peito. A Sandra, sempre curiosa no bom sentido de
ajudar, logo crivou o casal de perguntas. A moça, nunca conhecemos o som de sua
voz. Mas o rapaz contou que o garoto havia caído de uma grande altura e eles
estavam apreensivos porque ele gritava de dor. Talvez tivesse quebrado a perna.
Bom,
e o tempo passando e ninguém aparecia para atender nenhum dos pacientes que
esperavam. Horas e horas. Neste meio tempo apareceu por lá certa moça da
sociedade, muito conhecida, muito falante e que logo soube da história de
todos. Ficamos incomodados com o casal e o menino que estavam sem alimentação o
dia todo, pois haviam saído muito cedo de casa. Eu, por exemplo, que nunca parei
de pé sem um café quente à tarde, também já estava fraca e cansada. O único
alimentado era o bebezinho que alheio a tudo, mamava e dormia. Naquela época,
não havia na Santa Casa nem um barzinho mixuruca que fosse.
A
moça da sociedade, muito despachada e admiravelmente bondosa invadiu a secretaria
e usou o telefone para chamar sua casa e logo distribuiu ordens, tragam duas
garrafas de café novo, aquela rosca, pães com manteiga, o bolo que fiz hoje,
queijo e isso mais aquilo, ah também copos e xícaras. Não demorou nada e chegou
um carrão com toda a matula encomendada pela moça. Se não me falha a memória ou
talvez seja produto da minha criativa mente de escritora, trouxeram até uma
toalha de mesa. O problema foi o casal aceitar comer. Recusavam, envergonhados,
não precisa, diziam eles. Bolamos um plano, levamos tudo lá para uma salinha,
dispusemos de tal forma que só eles ficassem lá com o lanche, talvez assim comessem.
E deu certo. O casal comeu satisfeito, o menino com a perna quebrada não queria
nada, só chorava.
Depois
também nós comemos o bolo e tomamos café. Até que enfim o médico, assistentes e
enfermeiros surgiram não sei de onde. O médico que já morreu faz tempo chegou
com um vozeirão e perguntou para todos nós: Que que isso aqui? A Santa casa
virou campo de piquenique agora? Mas ele falava brincando porque era amigo da
tal moça e ela passou o maior sermão no médico e em todo mundo pela demora no
atendimento. A sala de espera apinhada de gente. O garotinho foi eleito o
primeiro a ser atendido e todos ficamos até tarde da noite por lá.
Ficamos
sabendo pelo pai do menino que não tinham para onde ir, só a roça onde moravam,
longe pra caramba, sem ônibus, sem charrete, sem nada. Eu cogitei de levar a
família para a casa de minha mãe, poderiam dormir na sala, havia o sofá que
poderia ser aberto e colchões, mas a Sandra achou que não dava certo pela
timidez da moça. Teriam que ir para sua própria casa. Pensamos em chamar um
taxi e rachar entre nós três a conta quando o carro da funerária surgiu
trazendo um morto para ser arrumado e ficamos sabendo que voltaria para Delfim
Moreira. O casal não morava na cidade, mas o motorista da funerária se dispôs a
levá-los.
Depois
de um longo tempo, lá veio o rapaz com o menino engessado da cintura para
baixo. Todos entraram no carro da funerária e lá se foram. Não me lembro se a
Sandra resolveu o dedinho do pé. O garoto hoje deve ser pai, provavelmente avô
de um garotinho como ele e talvez nem se lembre do acontecido. Seus pais, sim.
Tenho certeza de que não se esqueceram.
Se a
moça da sociedade não tivesse aparecido, eu e a Sandra teríamos dividido um
táxi, certamente, mas aquela moça despachada fez toda a diferença. Era um tempo
em que as mulheres não eram ainda tão ousadas e esta moça era famosa por fazer
balizas espetaculares estacionando o carrão num espaço considerado impossível
até para experientes motoristas e em plena praça. Soube que ela está doente,
nunca mais a vimos.
Registro
aqui esta história real como uma homenagem a esta mulher por quem sempre tive
grande admiração e peço a Deus que retribua a ela todo o bem que trazia em seu
coração. Quando me lembro de suas atitudes ousadas, de como se antecipou para
resolver o problema daquelas pessoas que não tinham boca para nada, de como
generosamente os alimentou, eu me reporto a uma frase que li, mas não sei o
autor:
“Dizem que a ameixeira sofre porque floresce
antes das outras árvores ainda nos rigores do inverno”. E eu ouso complementar:
“Querida moça, parabéns por ter sido ameixeira”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário