quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O FIM DE UMA INFÂNCIA FELIZ



Assisti ao fim da 3ª e penso que última temporada do seriado “Anne with an E”. Chorei todas as lágrimas que tinha direito. Confesso que não gostei da 2ª temporada, mas amei a 1ª e fiquei literalmente encantada com a 3ª. Minha amiga Ju Campos Pereira por quem tenho uma terna afeição costumava me chamar de Anne porque dizia a Ju que eu era a própria Anne, plena de alegria com a vida e derramando esta vida em meus escritos. Ela também havia gostado imensamente da 1ª temporada e como a conheço penso que também, como eu, não gostou da 2ª. Mas Ju, se você não viu a 3ª, é linda! É a sensibilidade em seu grau máximo. E isto sem contar que a Marilla, a mãe adotiva da Anne é uma atriz idêntica à minha avó Verônica, cuspida e escarrada, como dizia minha mãe. Fisicamente e bondosamente a Marilla era minha avó que perdi tão cedo.
Bem, mas não é sobre o seriado que vou falar, não. É e não é. A Anne era assim efervescente, falava com as árvores, com os animais, com a lua. Era também dramática e eu sorrio agora enquanto digito porque eu me lembro de quando minha mãe dizia sempre: “A Maria Luiza é tão dramática!”, demorando enfaticamente na segunda sílaba: dramááááática! Eu era e sou. Também falo sozinha, com gatinhos, com Deus e com a lua. Com as árvores falei muito quando criança lá no alto dos últimos galhos.
Tive uma infância maravilhosa! O que uma criança poderia desejar para ser feliz vivendo em uma cidadezinha encantadora nos anos 50 e 60? Éramos livres, brincávamos na rua com pés descalços e o jardim da cidade ficava em frente a minha casa. E tudo isto com a vista magnífica daquelas montanhas! No quintal eu possuía toda a riqueza de que precisava. Havia mangueiras, laranjeiras, abacateiros, o cercado de tela com os cachorros perdigueiros. Muitos anos depois eu voltei naquela casa e caminhei por todos os cômodos como se andasse pelas estradas do passado. A dona da casa me levou até um muro onde havia meu nome incrustado na massa de cimento.   
Moramos ali até os meus doze anos. Depois minha infância foi assassinada. Tivemos que mudar para cá e eu simplesmente não aceitava. Minha mãe estava exultante porque sempre quis se mudar para a cidade onde morava sua mãe. Se alguém me perguntar qual foi o dia mais triste da minha vida, eu continuo respondendo que foi o dia da mudança. Aquela cidade era meu reino encantado! Lá tive meu primeiro amor platônico, não correspondido, é claro, mas não importava, “eu o amava” na efervescência dos meus doze anos. Eu chorei inconformada por muitos meses. Não era possível que uma vida de menina tão preciosa e tão plena pudesse estar contida na carroceria de um caminhão velho! Minha infância fugia de mim. Lembro-me de uma frase de Santo Agostinho que li: “Da infância, caminhando para o ponto onde estou, passei à meninice, ou melhor, ela chegou a mim em seguimento à infância, esta não se afastou: para onde poderia ir? No entanto, não mais existia.”
Fiquei doente várias vezes naquele ano, tive herpes na boca, foi uma ferida imensa que me obrigou a ficar em casa. Minha mãe, pobre mãe, teve que me levar ao médico também por causa de algo que eu sentia que andava por dentro de mim. E eu dizia para o médico: agora está andando aqui dentro da minha perna. Tudo isso de tristeza.
Antes ainda que nossa mudança fosse concretizada, meu pai já estava trabalhando aqui e minha irmã e eu também já estudando e morando com minha avó. Mas aos finais de semana voltávamos para “meu reino encantado”. Ainda não tinha caído a ficha para mim, afinal ainda tínhamos a casa lá. Mas às segundas eu tinha que voltar com meu pai. Na hora de despedir da mamãe eu fechava a cara, já morrendo de vontade de chorar. Ela virava as costas, aborrecida, e eu vinha de ônibus com meu pai. Eu não queria, mas não podia impedir que as lágrimas brotassem e escorressem pelo meu rosto. Meu pai fingia que não via porque nunca saberia lidar com aquela situação. Eu parecia uma fábrica de lágrimas. Silencioso, meu pai pigarreava a todo instante e eu passava a mão pelo rosto molhado, odiando a vida. Pobre pai! Só agora, com a modernidade em que as doenças ganharam nomes, sabemos que ele era um autista.
Só sarei muitos anos mais tarde. Dos meus doze aos vinte anos não há uma única foto em que eu esteja sorrindo e parodiando Mário Quintana, eu digo: “Nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão.” 
Mas eis que a “Anne with an E”  retornou mais tarde, mais forte, mais cheia de vida, borbulhando alegria, apaixonada pelo entardecer, admirada com a lua, porém sempre com as lágrimas que nunca pediram licença para brotar e escorrer pelo rosto. As cicatrizes, bem, estas ficam para nos lembrar que o luto é real.  

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