Há
muito e muitos anos li um fato narrado por Saramago (como já li Saramago!) que
me fez pensar. Contou ele que quando era adolescente, pobre, sem dinheiro, ele
ia à Ópera em Lisboa e entrava sem pagar, pois um amigo de seu pai que era
porteiro, conseguia para ele um lugar. Só que era no último patamar do
edifício, nas chamadas torrinhas, onde ninguém podia vê-lo e nem ele a ninguém.
Ali era o “galinheiro” do teatro, do qual não se podia ter visão total das
cenas, pois havia momentos da ópera em que os personagens “desapareciam” como
se estivessem no lado oculto da lua. Logo retornavam. A acústica era perfeita,
mas a visão era deficitária para os espectadores do galinheiro.
Bom, de
onde ele estava, também podia ver o camarote presidencial, que exibia uma
grande e suntuosa coroa real de talha dourada, símbolo que sobrou das
monarquias passadas. Mas o que ele propriamente conseguia ver com clareza era o
reverso da coroa, o outro lado com latão ao invés de ouro, sarrafos mal
aplainados, pó e teias de aranha. Desde então, Saramago compreendeu que o ponto
de vista do galinheiro é indispensável se realmente se quer conhecer a coroa. A
partir daí também eu compreendi outras lições, por exemplo, os bastidores da
monarquia ou república, ou qualquer instituição que julgamos ser nobre e não é.
Coisas e pessoas que temos na mais alta conta e depois a decepção de quando conhecemos
a realidade, pois realmente nem tudo que reluz é ouro.
Lembrei-me
de quando comecei a aprender a fazer o bordado de ponto de cruz. Minha irmã me
ensinou pacientemente. Eu, que nunca fui dessas prendas, por incrível que
pareça, fiz um bordado bonito de alguma paisagem. Quando mostrei para ela, ela
sorriu satisfeita, porém, ao virar o tecido do outro lado, deu com um avesso
dos mais feios do mundo, com linhas mal cortadas, nós mal feitos, um horror. E
ela me disse que não estava certo, o avesso também é importante, ainda que
ninguém o veja. Aprendi a lição.
Transponho
agora para nós, seres imperfeitos, sujeitos a misérias humanas. Como anda nosso
lado oculto? Com sarrafos mal aplainados, pó e teias de aranha? Ninguém vai
ver, mas ele vai transparecer de alguma maneira, pois tudo que está oculto um
dia vem à tona. O caminho da santidade é árduo e pedregoso. Não podemos
imaginar como a vida é feita de pequenas coisas tão difíceis de serem
conseguidas porque já ficamos contaminados por vícios e pensamentos que não
contribuem para nosso crescimento interior. Todos nós somos humanos, todos
somos sujeitos aos maus pensamentos e sentimentos, mas podemos melhorar. O que
não podemos nem devemos é ter duas faces, a que usamos em público e a aquela
que abrigamos em nosso recôndito interior. Não. Se assim somos, tal qual a suntuosa
coroa real que marcou o adolescente Saramago, saibamos que sempre há um
espectador no galinheiro observando o lado que julgamos estar bem escondido.
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