sábado, 7 de novembro de 2015

Santa mentira


A casa de Dona Ana era pequena, menor ainda era o quarto, minúsculo. Cabia quase que só a cama, onde Dona Ana choramingava de medo da morte, esparramando sobre o velho colchão de capim um corpo cansado e doente. Fingindo conformidade, dizia para minha mãe com voz entrecortada de dor e soluços: é a hora, quando chega a hora, não tem jeito ... fazer o quê? A gente sabe que é a vontade de Deus, mas a gente tem medo, queria ficar mais ... só mais um pouco, mas quando Deus quer ... E passava as mãos pelo rosto banhado de lágrimas. Minha mãe, tão jovem e bela ainda, animou Dona Ana, ora, isso não quer dizer que a senhora vai morrer, está apenas doente. Dona Ana apertava a boca, desconfortável e triste, sem conseguir dizer palavra. Estava lúcida, sabia que ia morrer. Eu, menina, sem ainda saber que a morte existia, fixei meu olhar perdido na janela pequeniníssima. As árvores muito verdes, num gesto de amizade e delicadeza, ofereciam seus galhos cobertos de folhas para bem perto da janela, de modo que Dona Ana tivesse o consolo de sua companhia. Era como quase estar no céu.
Intimamente, senti um pouco de inveja de Dona Ana porque queria que de minha cama também eu pudesse admirar as árvores que representavam para mim um universo mágico. Quando eu estava em cima do abacateiro de meu quintal, era certo que existia um outro mundo, além daquele de lá de baixo. Cada minúsculo serzinho que eu podia ver passeando para lá e para cá nos galhos tinha um história que eu inventava, isto é, não sei se inventava ou se era verdade, o que sei é que as árvores eram cheias de vida. Quando cresci, esqueci as histórias, mas não perdi o encanto pelos galhos, pelas folhas e pela majestade misteriosa das árvores. Bom, voltando ao episódio de D. Ana, naquele pequeno momento de minha vida, ter os galhos das árvores entrando em minha janela era tudo o que eu almejava, e eu era feliz.
Não sei o que minha mãe pensava, nem se a doença de Dona Ana era de morte, mas captei nos dizeres e tons da mãe que eu bem conhecia, um quê de certa santa mentira, uma bondade desajeitada, uma sinceridade apertada em roupa pequena. Isso de minha mãe eu entendi mais tarde quando eu própria tentava consolar meu pai que já sabia que ia morrer e tinha medo, pai, calma, não é nada, o médico falou que o senhor vai sarar.
Todos já se foram. Dona Ana, meu pai, minha mãe, só que esta, sem medo algum. E eu aqui, ainda queria aquela árvore verde na minha janela, mas tal como Dona Ana, também tenho muito medo.    

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