A história foi mais ou menos assim:
dizem que lá no tempo antigo, quando essas coisas aconteciam com mais
frequência, chegou um pessoal de lá da roça trazendo um defunto. Era tudo muito
primitivo, sem serviço de funerária, coroas de flores e outras coisas modernas.
A família mesmo fazia o caixão, eles lavavam o morto, vestiam nele a melhor
roupa dentre as menos pobres, enfeitavam o caixão com flores apanhadas ali no campo mesmo e
tratavam das últimas providências que eram as religiosas. Passar na igreja era
o mais importante, encomendar o corpo a Deus, com água benta e orações próprias
para o momento.
Bom, chegaram até a igreja. Ficaram
esperando enquanto uns poucos batiam na casa paroquial chamando o padre para o
serviço. O padre era homem dominado pelas misérias humanas como o poder,
ambição e prazer pelo sossego, que Deus me perdoe falar isso, mas dizem que
assim é que era. Então, meio contrariado por ter que sair de seus cômodos,
perguntou se haviam trazido o dinheiro para pagar o serviço religioso. Os
homens, gente simplíssima e pobríssima, disseram que não tinham e não tinham
mesmo, acredito. Mas dentro de sua humildade e fé pura, “dai a Deus o que é de
Deus e a César o que é de César”, achando tudo corretíssimo por serem tementes
a Deus, prometeram ao padre arrecadar o dinheiro com as famílias da cidade. O
padre disse que assim o fizessem e quando tivessem a quantia necessária, que o
chamassem novamente e voltou aos seus afazeres ou passatempos, não sei.
Quando os homens chegaram até a igreja
para comunicar o fato aos que ficaram tomando conta do morto, eis que sai um
padre da sacristia, paramentado e investido de todos os poderes clericais. Ele
se apresentou como sendo o padre tal, perguntou o que desejavam e se
prontificou a encomendar o corpo, sem cobrar um tostão, pois Deus, que conhece
o mais profundo de todos os corações estava, está e estará acima de qualquer
decisão humana. Assim foi feito.
Agora não me lembro muito como foi, mas
o padre que esperava a arrecadação do dinheiro foi à igreja para saber do
andamento das coisas e quando lá chegou deu com o pessoal já indo embora para
enterrar o morto. Exigindo explicações, ficou estupefato com o fato de aparecer
um padre que não existia, pois se existisse outro por lá, ele saberia. Os
homens contaram como tudo aconteceu e falaram o nome do padre e descreveram
suas feições, ah, e muito importante, disseram que ele fizera anotações no
livro da sacristia. O padre, já sentindo o coração disparar e avermelhar suas
bochechas, abriu o livro e quase desfaleceu ao ver a assinatura do padre tal.
Comparando o nome e a letra, percebeu tratar-se de um padre já falecido há
muito tempo naquela paróquia, um padre santo e muito amado pelo povo da cidadezinha.
Pois é. Naquela noite, os homens da roça voltaram para casa conformados com a
irremediável finitude da vida, deram graças em tudo, deitaram a cabeça em
travesseiros de palha e dormiram o sono dos justos. Dizem que o padre não
dormiu naquela noite, nem nas outras seguintes. Teve até que ir para a cidade
grande fazer um tratamento porque ficou abalado dos nervos. Depois sarou e
voltou, mas não sei se de alma melhorou.
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