sexta-feira, 6 de maio de 2016

Alguém viu minha mãe?






            Alguém viu minha mãe? Ela era uma pessoa extraordinária (seu adjetivo preferido). Era uma mulher sui generis, bonita e valente como ela só. Tinha o rosto harmonioso, uma tez perfeita, um nariz afilado e um porte elegante. Parecia a Ingrid Bergman. Na verdade, acho que ela se parecia mais com a Ingrid Bergman do que a própria Ingrid Bergman. Ela era a melhor costureira de camisas de homem que já existiu, ensinava corte e costura, tinha quase um metro e setenta, mais ou menos. Era uma mulher de fibra. Sempre que surgia algum problema, ainda que grave, ela apenas dizia: ora gente, que bobagem! E assim, dessa forma, fazia parecer que os problemas não existiam ou eram pequenos demais diante da grandeza da alma e da vida.
            Minha mãe era generosa. Nunca deixava que um pobrezinho saísse de nossa casa sem um prato de comida que ela própria esquentava. Quando chegava do mercado com sacolas pesadas, costumava dizer sorrindo que, quando chegasse sua última hora, diante de Deus, e isso para nós estava tão distante quanto o sol da terra, ela, se não tivesse mais nada a apresentar a Ele, mostraria as sacolas que nos sustentavam, mostraria seu trabalho de dona de casa, de mãe, ou seja, a simplicidade grandiosa de sua vida.     
            Dentre as poucas coisas que ela trouxe em seu simples enxoval de casamento, constava uma toalha bordada para uma mesa redonda. Era linda! Havia uma princesa vestida de azul com pedrinhas que brilhavam. Quando eu era menina, costumava rodear a mesa para sentir com meus dedos a maciez do tecido do vestido da princesa e conferir o brilho das pedrinhas. À medida que o bordado seguia o rodear da toalha, a história da princesa se desenrolava em bordados diferentes. Ela caminhava numa vereda florida e estava sempre rodeada de borboletas, passarinhos e esquilos que se escondiam aqui e ali. Enfim, a princesa era acompanhada por esses seres das histórias de fadas e princesas encantadas, em que o mundo é perfeito, em que todos são felizes para sempre. O sol estava sempre brilhando, não havia tempestades, os sorrisos eram sempre tranquilos e certos. Ninguém ficava doente, ninguém morria, tudo era felicidade! Porém, nas mudanças que tivemos que fazer, nunca mais vi a toalha, nem soube da princesa.
            Ocorreu que certo dia, de forma inesperada, como é a vida e a morte, o impiedoso barqueiro chegou e trouxe uma canoa especial, dessas para caber uma só pessoa. Minha mãe não teve medo porque medo era coisa que para ela não existia. Ora gente, que bobagem! E lá foi ela, ansiosa para estar com Deus. O que mais me doeu foi seu silêncio. Não falou mais conosco. Só nos olhava com aquele olhar misterioso e cansado que tanto nos machucou. Havia uma dignidade justa naquele olhar. Mãe não devia morrer, ainda mais a minha! Soa esquisito, atrapalha a ordem da criação, faz parecer que alguma coisa está errada na harmonia do universo. Senti uma dor imensa dentro de meu peito. Era a odiosa saudade que já chegava de malas prontas para ficar. Nada me restou senão abrir as portas para ela e acolhê-la como amiga.
            A morte é tirana, porém é autêntica, é verdadeira. A vida acaba por nos enganar. Como dizia Manuel Bandeira, “a vida assim nos afeiçoa, prende. Antes fosse toda fel! Que ao  mostrar às vezes boa, ela requinta em ser cruel”. A vida nos dá os laços e nos ensina a brincar com eles, aprendemos a apertá-los. Ah os laços! Os laços com seus nós duros que depois não conseguimos desatar. Mas aí chega ela, a morte, e os corta com precisão matemática, tal como o execrável e competente carrasco habituado na guilhotina a descer a lâmina de uma vez só, sem dó nem piedade. 
            Alguém viu minha mãe? Se alguém a viu, eu preciso saber. Eu preciso ainda dizer algumas coisas, afinal sempre ficam coisas a dizer. Não me mostrem fotos, agora não, quem sabe mais tarde. Também não me digam que foi melhor assim, eu sei que foi, mas agora não, ainda não. Se alguém viu a toalha, aquela da princesa, eu preciso saber, eu ainda quero sentir a maciez do seu vestido, eu preciso saber o final da história. Naquela época eu julgava que a toalha me acompanharia por toda a vida, bem como a princesa, a minha linda e encantada princesa, linda e encantada como ela só.    



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