Minha avó sempre foi muito religiosa,
assim como depois minha mãe. As duas foram zeladoras com fitas vermelhas e cruz
e fizeram parte do Apostolado da Oração, prática piedosa e preciosíssima. Pois
então, minha mãe ainda criança, mocinha, soube guardar e contar: lá onde
moravam tinham por vizinhos uma família como outra qualquer, só que o marido
era homem sem piedade alguma, implicava com a mulher por ir
à igreja, proibia até. Eis que um dia ficou doente, muito mal. Todos sabiam que
ia morrer, ele resmungando, xingando, uma situação difícil. Para minha avó, ele
podia espernear e xingar o quanto quisesse, mas o que não podia era morrer sem Deus, sem uma confissão, sem um sinal da
cruz. Então ela foi lá com algumas companheiras do apostolado, conversou com a
mulher na cozinha, as duas falando baixinho. Coitada, a mulher chorava e mexia
a lenha no fogão, sempre limpando as lágrimas e o suor no avental, a senhora vê, nem à igreja ele deixa a gente
ir, a Marianinha ainda nem fez a Primeira Comunhão. Minha avó criou
coragem, entrou lá no quarto e perguntou para o agonizante, o senhor permite que a gente chame o padre,
é bom para o senhor, vai ver, ao que o homem, cheio de ódio, respondeu com
os maiores palavrões, acrescentando, se
entrar padre aqui, eu mato e outras coisas assim, blasfemando sem nenhum
temor. A mulher começou a chorar alto, foi um Deus nos acuda, minha avó saiu
arrasada, pensando que não podia entrar assim na vida dos outros, cada um é
como é e ninguém tem nada com isso, porém ao mesmo tempo com a consciência
limpa, de quem tinha feito o que era possível fazer. Então, naquela noite,
minha avó deitou-se para dormir, fez as orações, as crianças já iam a sono
solto. Ela costumava deixar acesa a luz da salinha para quebrar um pouco da
escuridão, os filhos no quarto de dentro, do jeito que usava, um quarto para
dentro de outro. Lá pelas tantas, ela, que não conseguia dormir, viu que a luz
da salinha apagou-se até tudo mergulhar na mais profunda escuridão. Minha avó teve
medo, foi tomada por um pressentimento, um frio de morte. Nesse instante sentiu
passar por ela um vulto, uma coisa que a tocou, fisicamente mesmo, e passou
adiante. Ela gelou, sabia que coisa normal não era. Ela contava que havia
ficado imóvel, sem mexer um músculo, só ouvindo a própria respiração que
controlava para não fazer barulho. Demorou um pouquinho e a luz voltou. Daí a
poucos instantes meu avô entrou. Naquela época ninguém usava chave, a porta
estava encostada numa cadeira. Ela respirou aliviada e ouviu dele, o fulano acabou de morrer, agorinha, há dez
minutos atrás, nem isso, tá a maior choradeira na casa. Minha avó
compreendeu, era ele, o espírito do homem, querendo o quê, só Deus sabe. Tomara
que tenha se arrependido a tempo. De qualquer forma, amanhã peço ao padre para
celebrar missas por alma do infeliz e que Deus tenha piedade dele e de todos
nós. Amém.
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