Há muitos anos, eu, Musa, minha
prima, e Sandra, nossa amiga, fizemos uma viagem para Portugal. Viagem
deliciosa, curtíamos tudo, passeando pelas outras cidades próximas à Lisboa. Há
quem diga que não gosta de Portugal, pois eu amo! Ah aquelas cidadezinhas
medievais, as casas de pedra, as igrejas antigas, a culinária portuguesa com o
frango à cabidela, os pastéis de Belém, Coimbra do choupal, a Universidade de
Coimbra! O sotaque irmão! Nossa! Eu passaria o dia todo me lembrando! Bom, um dos
inúmeros passeios que fizemos foi de ônibus, saindo da rodoviária de Lisboa
para o Porto, pois queríamos conhecer a famosa cidade. Tudo era motivo de riso
e alegria. Lembro-me de que o ônibus não estava cheio, mas preferimos ficar
mais para o fundo do carro. Lá estava uma jovem mãe com duas filhas, uma já
adolescente e outra ainda bem menina, e também com elas estava uma senhora bem
idosa, muito séria, muito triste, lembro-me até hoje do coque amarrado no alto
da cabeça, de sua face pálida e dos olhos sem brilho. Ela parecia alheia à vida.
Como
a Sandra não demorava nunca para entabular uma conversa, logo ela e a jovem
senhora já falavam como velhas amigas. Acho que as portuguesas logo perceberam
pelo sotaque que éramos brasileiras, e a conversa girou em torno dos dois
países, das diferenças quanto aos costumes e ao modo de falar de Portugal e do
Brasil. As meninas se animaram e deram seus palpites. Uma delas falou sobre as
colegas de escola que já usavam “tacões” (sapatos de salto alto). Não
entendemos e me lembro bem de que a Musa ria às largas e as meninas riam mais
ainda de nossos termos. De repente as conversas se dividiram, eram a Sandra e a
jovem senhora, e eu e a Musa com as meninas. Mesmo conversando um pouco, eu
percebi que a senhora idosa nada falava, nunca. Mantinha os olhos abertos, mas
tristes e seu silêncio era notório. E a Musa lá instigando as garotas, como é
que se diz isso e aquilo, e morria de rir. Perguntou se a mãe era brava e a
mais nova disse que sim, que quando aprontavam muito, a mãe lhes dava
“palmaditas no rabo”. Isso foi o máximo para a Musa.
Conversa
vai, conversa vem, a mãe das meninas desatou a falar do marido, que era um
homem belíssimo, e a todo instante nos lembrava disso. E sai um assunto, sai
outro, quando a conversa foi para receitas e pratos portugueses. Eu ouvia um
pouco lá e um pouco cá. A jovem mãe passou a explicar como era feito um prato que
eu entendi como “Papas de São Raimundo”. Depois que acabou de explicar como se
fazia o prato, como eu estava dividida nas conversas, pedi a ela que repetisse
a receita dos Papas de São Raimundo, o que ocasionou um estrondoso acesso de
gargalhadas, pois o nome não era “Papas de São Raimundo”, mas “Papas de
Sarrabulho”. E riam e riam. Para minha surpresa, a senhora idosa silenciosa e
triste ria com gosto, colocava a mão na boca para disfarçar, mas não se
aguentava e chegou mesmo a gargalhar. Eu pensei comigo que “papas” poderiam até
significar algo tipo pornográfico, algo indecoroso para com São Raimundo, o que
explicaria tantas risadas, mas não, simplesmente riam porque eu havia entendido
de São Raimundo.
Bem,
já estávamos entrando na cidade do Porto, eu achando tudo lindo, e as
portuguesas continuavam rindo sem parar e de todas, a senhora era a que mais
ria. Então, a mãe das meninas me disse baixinho com aquele sotaque português
adorável: Olha, nunca vi isto acontecer, estou surpresa! Minha mãe não ri há
muito tempo, sequer sorri, está numa depressão profunda, estamos indo encontrar
meu marido para que ele a leve num médico bom daqui do Porto. E a senhora
rindo, não podia olhar para mim, nem eu pra ela. O ônibus parou para que
descessem e nos despedimos calorosamente. Lá fora, o marido belíssimo as
esperava com um carro igualmente belíssimo, e como o português era lindo! Meu
Deus! Um homem alto, másculo e musculoso, parecia um deus grego! Ele e a mulher
beijaram-se num daqueles beijos cinematográficos, deixando a gente com olho
comprido e água na boca, e pude também perceber a senhora que continuava rindo.
Valeu! Quem diria que eu salvaria da depressão uma pobre senhora silenciosa e
triste, apenas trocando Papas de Sarrabulho por Papas de São Raimundo! Ora,
pois!
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