Quando
ando pelas ruas ou quando estou sozinha arranjando a casa, sempre estou
acompanhada de pensamentos desordenados e incontroláveis como cavalos
selvagens. Penso em tudo, desde as mais esquecidas lembranças de menina, cenas
de filmes ou parágrafos poéticos de livros e até o que preciso comprar no
supermercado. Todos esses pensamentos vêm atabalhoadamente, misturando-se, girando
incessantemente, vão e voltam trazendo outros tantos novos. Até hoje não
aprendi a controlá-los. Penso que isso é meio louco, no entanto é bom porque muitas
vezes é num pensamento fugidio que dispara em um voo cego em minha cabeça é que
agarro a inspiração de alguma coisa bonita que mereça ser registrada.
Bem,
lembrei-me de quando deixei a casa de meus pais para viver sozinha. Minha mãe,
ainda de um tempo bem mais antigo, deixou claro que moça solteira só deixava a
casa paterna para se casar e que o lugar da filha que ainda não tinha se casado
ou não ia se casar era ao lado dos pais. Argumentei com ela. Disse-lhe que pela
lei natural da vida, os pais partem antes dos filhos e que se assim se passasse
conosco, eu, que sempre fui pessoa tão sensível, teria muita dificuldade em
aprender a viver sozinha. Ela ficou pensativa de um jeito tal como se esta
situação nunca tivesse lhe ocorrido, e acabou se rendendo. Embora eu tivesse
apenas mudado de casa e não de cidade, nem de país e nem de pais, senti um
certo tremor porque palavra de mãe é como uma espada afiada, um descuido e a
gente se corta. Mãe quase sempre tem razão. E quando ela falou a frase: Maria
Luiza, você me mude o nome se não estiver de volta em dois meses! Aí gelei.
Naquela
época, ainda se dizia em tons maliciosos: aquela moça é solteira e mora
sozinha. Eu, orgulhosa de quebrar paradigmas, sentia-me empolgada e famosa como
a fascinante *Amelia Earhart em seus voos maravilhosos rasgando os céus sobre os
oceanos ou como uma pequena feminista que acabou de ser aceita para um
importante aprendizado num grupo fechadíssimo de mulheres corajosas. Mas não
era bem assim. Uma coisa é como as pessoas nos veem e outra é como somos de
verdade. Logo constatei que morar sozinha tinha o ônus e o bônus, como qualquer
situação na vida.
Por
exemplo, desfrutaria do silêncio tão necessário, poderia deixar minha cama
desarrumada pelo dia todo, assistiria televisão até a hora que bem entendesse,
e outras vantagens desse tipo. Tudo bem, só que quando caía a noite, eu que
sempre fui muito medrosa de tudo, desde assaltantes, baratas e principalmente
de fantasmas, bem, eu me sentia desconfortável. Quando o medo era de fantasmas
eu deixava as luzes acesas, mas às vezes quando o pavor insuportável me
dominava eu corria para a casa paterna. Se o medo era de barata, eu deixava
panos de chão dispostos estrategicamente em baixo da porta para bloquear os
inoportunos insetos. Para evitar catástrofes em minha cozinha eu almoçava na
casa de minha mãe e aproveitava para fazer uma trouxa de roupas mais difíceis
de lavar que ficavam por lá. E minha mãe, que nunca teve papas na língua, nem
pejo para reclamar do que fosse, dizia: assim é fácil morar sozinha ... até eu!
E sorria sarcástica e divertida.
Meus
primeiros tempos de Amelia Earhart ao morar sozinha foram pueris. Era quase
como brincar de casinha e fazer cozidinho de meninas em tijolos imitando
fogãozinho. De casinha em casinha fui aprendendo a ser dona de casa, e até bolo
de nozes aprendi, olha só! Porém logo compreendi que havia um bilhão de anos
luz entre mim e Amelia Earhart. Eu não era corajosa. Não sei não. Será que não
era? Segurei a mão de minha mãe quando ela deixava esta vida para entrar nos
bulevares celestiais. Encarei fazer o papel de Inês de Castro e de Edipo já com
idade para ser mãe de minhas colegas! Amei ser atriz de faz de conta,
emocionei-me e emocionei a plateia. Talvez todas as mulheres tenham algo de
Amelia Earhart e talvez a própria Amelia Earhart tivesse um pouquinho de medo
como todo mundo. Afinal, como dizia Roland Barthes: “tenho medo, logo existo.”
Seus textos Me encantam. Obrigada por partilhá-los!
ResponderExcluirA honra é minha, Célia! Obrigada por prestigiar!
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