Aconteceu nos tempos em que ainda se
usava comprar dólares para passear na Europa. De férias, lá fomos nós
exultantes, três amigas ainda jovens, sem problemas, sem preocupações, sem
marido, sem filhos, sem lenço, mas com documentos. Iniciamos nossa jornada com a
Espanha. Não cabíamos em nós de contentes. Madri, que linda! Que antiga! Que
charmosa! Guardávamos nosso passaporte, cartão de crédito e o “grosso” do dólar
em capangas sob a roupa, e todos os dias, antes de sair, abastecíamos nossa
carteira com uma pequena quantidade de dólares para o dia servindo para compras
e alimentação. Num dia em particular que saímos, resolvi colocar uma quantidade
maior de dólares na carteira: 300 dólares mais precisamente. E fomos conhecer
um parque muito bonito.
Eu me lembro com nitidez absoluta de
que ainda não havia comprado nada. Era uma linda manhã e curtíamos o passeio no
parque. Em seguida fomos a uma cafeteria para um lanche. Cada uma de nós escolheu
o que lhe apetecia e fomos pagar. Abri minha carteira e não havia nem um dólar!
Santa Madre de Dios! Estupefata, afastei-me para procurar melhor, mas não havia
como o dinheiro não estar ali! Sentindo-me amedrontada e nervosa, fui comer o lanche
pago por uma das amigas. Sentamos no fundo da cafeteria, ao lado de um balcão.
Ficamos refazendo nosso trajeto para entender o que havia se passado. Nós nos
lembramos de um fato: um rapaz simpático e falante havia nos abordado no
parque. Mas não abrimos a bolsa, conversamos pouco tempo, dizendo de onde
vínhamos e coisas assim normalmente faladas em ocasiões como esta. Só podia ter
sido ele. Mas eu não abri a bolsa, não tirei a carteira, nós três estávamos
certas quanto a isso.
Bem, em dado momento, uma das amigas,
minha prima Musa, foi pegar algo em sua bolsa e sem acreditar, viu que sua
bolsa havia sumido. O perigo desses balcões ao lado de mesas é comprovadamente
real. Aprendi há muito tempo que fora de casa, lugar de bolsa quando vamos
comer é no colo mesmo, seja a bolsa de que tamanho for. Aí foi a vez de minha
prima se sentir medrosa, na verdade ficamos as três apavoradas. Olhamos em
volta, nada. Impossível saber quem roubou. Seria o mesmo cara do parque que me
roubou 300 dólares hipnotizando nós três? Sim, porque não seria possível que
ele tivesse conseguido a façanha de abrir minha bolsa, pegar a carteira, tirar
o dinheiro e devolver a carteira para a bolsa. Fomos hipnotizadas, mas ele nem
era tão bonitão assim.
Saímos arrasadas da cafeteria. Minha
prima havia perdido uma máquina fotográfica, sua carteira, porém com
pouquíssimo dinheiro, ainda bem. Humm, o que mais? Escova de dentes, escova de
cabelos, batom, colírio, itens básicos de beleza e higiene. Ficamos andando a
esmo feito baratas tontas, sem saber o que fazer, até que a Sandra, nossa
saudosa amiga teve a ideia de irmos à delegacia para prestar queixa dos dois
roubos. A princípio não quisemos, ah que mico! Mas afinal parecia o mais certo
a fazer. Perguntamos onde ficava e fomos a pé mesmo, não era longe. Lá
chegando, ficamos admiradas com a limpeza, organização, ambiente acolhedor e
até música clássica de fundo. Aí a Sandra disse: nossa! Que beleza, que
diferença de nossas delegacias. Logo se vê que é primeiro mundo!
Não passam dois minutos e num salto
ficamos de pé apavoradas com gritos, berros, palavrões em espanhol é claro,
barulhos de pesadas, de murros, de cadeiras caindo. Eis que surgem subindo pela
escada acima, policiais segurando uma mulher desgrenhada, suja, com cara de
louca que desferia chutes pra todos os lados feito uma desvairada. Ela estava
drogada, era evidente, mas sua força era maior que a dos quatro policiais que
não conseguiam segurá-la. Foi um Deus nos acuda, ficamos espremidas num
cantinho da sala, eu com a cabeça enterrada no peito da Sandra, morrendo de
medo. Daí a pouco o delegado, um homenzarrão a la sargento Garcia mexicano com
barriga proeminente e bastos bigodes, nos chamou à sua sala. Narramos o
acontecido em inglês e o homem que não estava de cara boa ficou nos olhando como
quem não estava acreditando em nossa história. Bem que eu não queria ir. Até
que enfim, com muita má vontade, nos deu um formulário com inúmeras páginas com
carbono para preencher todos os minúsculos quadradinhos requeridos. Acho que foi
a Sandra que preencheu. Curiosas, logo verificamos que nas últimas folhas o
escrito não saía. Mostramos para o delegado que impaciente, disse num vozeirão estrondoso
que deu medo: strrronguiiiiii (forteeee, com um sotaque terrível). A Sandra
calcou a caneta e finalizamos a tarefa. Respirando fundo saímos da delegacia e
fomos direto para o hotel, não sem antes passarmos no supermercado para ajudar
a Musa a fazer seu “enxovalzinho”, como dizia a Sandra: escova de dentes, escova
de cabelos, pasta dental, batom e outros itens imprescindíveis que as mulheres
sempre carregam.
No caminho, a Musa perguntou: para
que tantas vias daquele famigerado formulário? Até parece que vão fazer alguma
coisa! Ao que a Sandra respondeu: uma via para a delegacia, outra para a
embaixada, outra para nós, outra para a mãe do delegado e outra para o ladrão!
Rimos muito e foi bom para afastar nossos temores.
Nos dias seguintes sofremos uma
sucessão de perdas: esqueci no ônibus de turismo uma estampa que pensava em colocar
num quadro. Compramos algo em um bar e nos deram o troco errado, inútil
reclamar. Aí pegamos a mania de dizer: stolen again (roubadas de novo) sempre
que novo episódio do tipo acontecia. Lembro-me de que compramos umas miniaturas
de garrafas de vinho e logo constatamos que o preço na outra loja estava pela
metade do que pagamos. Stolen again foi nosso slogan para o resto da viagem.
No último dia na Espanha fomos ao
Valle de lós caídos, e flagrei a Musa no meio de um pátio enorme, com os olhos
brilhando ao encontrar algumas moedas que estavam no chão. Eis que ela elevou uma
moeda contra o sol, olhou, olhou bem, examinou, depois jogou dentro de sua nova
bolsa exclamando com um sotaque espanhol perfeito: Hei de recuperar peseta por
peseta que yo he perdido. Morri de rir, principalmente pela determinação com
que proferia esta promessa.
No dia seguinte deixávamos Madri com
péssimas lembranças das perdas, mas mesmo assim enamoradas da bela cidade.
Tomamos o trem para Lisboa sem dificuldades porque nossos bilhetes ficaram a
salvo dos ladrões, posto que permaneceram guardados quentinhos dentro da
capanga da Musa. Valeu! Oh saudades da Sandra!
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