Às vezes as coisas acontecem na vida
da gente de um estranho jeito, e de uma hora para outra, abre-se uma porta que
nem sabíamos que existia. Eu era uma jovem de 16 ou 17 anos que havia mudado de
colégio. Praticamente eu ainda tentava sobreviver a uma hecatombe nervosa pelo
trauma da mudança de cidade. Eu odiava ter me tornado uma moça, por dentro
ainda me sentia menina (ainda me sinto). Não me adequava em nenhum lugar, em
nenhuma idade. Não estudava. Assistia às aulas com o corpo preso à carteira e a
alma em outras paragens. Eu conversava quase que só com duas colegas, jamais
pertenceria à turma top. Nesta turma top, havia uma garota em especial que
tornava minha vida um inferno ainda maior do que já era, sempre repetindo a
pergunta em voz alta para que todos ouvissem: e aí Luiza, quando você vai
arrumar um namorado? E beijar? Você já beijou? E ria maldosamente. Eu ficava
quieta, beijar, eu? Nem em sonhos. Namorado? Nem em sonhos. Eu estava longe
disso tudo.
Bem, vamos lá. O professor de
português estava mais perdido do que eu. Deixou a língua portuguesa de lado, e
sabe-se lá porque mudou de pato pra ganso. Falava em sexo. A sala era dividida
de um lado meninas e de outro, meninos. Eu estava na fileira justamente ao lado
dos meninos. E o assunto foi caminhando de um jeito que ficou seriamente
impróprio. O professor comparava a mucosa dos lábios da boca com a mucosa dos
lábios vaginais, enfatizando a sensibilidade dessas mucosas quando tocadas, tudo
entre risinhos debochados por parte do professor e dos rapazes. Nada demais
falar sobre isso desde que fosse numa aula de biologia ou coisa parecida, mas
sem malícia. Mas na aula de português? Eu só me lembro que senti uma raiva
imensa da situação. Eu não sabia, mas aquilo era um assédio, era um abuso do
professor que se aproveitava da fragilidade das meninas, desrespeitando-as
escancaradamente, e ria sem pudor com os garotos maldosos. Eu simplesmente me
levantei sem que tivesse planejado, segui meus instintos, saí e bati a porta.
Lá fora pensei: Misa, você está louca?
Mas não podia ficar ali do lado de
fora da porta. Então, tudo o que eu queria era fugir, fui andando em direção às
escadas. Meus cadernos estavam na sala, não podia ir embora pra casa. Neste
momento, a garota que me atormentava, aquela que já tinha beijado pra caramba e
sabia mais coisas neste sentido do que minha avó, saiu da sala e também e bateu
a porta. Veio ao meu encontro querendo fazer estranhos acordos. Disse que
aquilo era um absurdo e que devíamos fazer isso ou aquilo, para dizer a
verdade, nem me lembro. Não fizemos nada. Acho que esperamos dar o sinal,
ficamos misturadas aos outros alunos que saíam das salas e só voltamos depois
do intervalo. Não me lembro se conversei com mais alguém sobre o assunto, na
época acho que com ninguém. Estou certa de que não falei nada em casa. Nunca
fui chamada na Secretaria, se tivesse sido não tenho a mínima ideia do que
falaria, se falaria. Na próxima aula com o tal professor, a matéria foi só
língua portuguesa. E depois da aula, ele pediu que eu esperasse. O professor se
desculpou comigo, explicou algo como “às vezes acontece”, deixando claro que se
desculpava apenas comigo, não com a outra menina porque ela não se dava ao
respeito, mas eu era uma menina séria, palavras dele. Eu ouvi tudo calada, como
era meu jeito. Eu era tímida, ainda sou, só que agora finjo que não sou e
engano todo mundo.
Bem, eu não sabia nada de português
nem de nada vezes nada. E dali por diante, o professor dava suas aulas de olho
em mim, como que esperando aprovação. Senti que eu cresci aos olhos dele,
talvez de toda a turma, pois eu havia sido capaz de um feito heroico e
histórico ao deixar a sala batendo a porta em protesto pela minha indignação. Então,
sabe como é? Eu não podia vacilar. Quando conquistamos o respeito de alguém,
somos investidos de responsabilidades. Numa tarde em casa, eu peguei minha
apostila e comecei a estudar, coisa por coisa, decorei as próclises, mesóclises
e ênclises, fiz exercícios com locuções prepositivas, me familiarizei com
sujeitos e predicados, verbos transitivos e intransitivos. Mas o mais bonito do
mundo é que eu descobri que estudar era bom, que era gostoso saber, que o
conhecimento era um tesouro. Eu era uma menina de respeito. Na próxima aula,
ele fez perguntas, ninguém sabia porcaria nenhuma e eu arrisquei uma resposta,
ele abriu o maior sorriso como se quisesse dizer: gente, como eu não percebi
que ela era minha melhor aluna?
No processo de aprender português
para corresponder ao meu novo status, eu me esqueci um pouco de meus
sofrimentos. Minhas angústias e conflitos não ficaram exatamente curados, mas abriu-se
uma nova porta em minha vida, eu me sentia alguém que possuía algo precioso.
Quanto a namorar e beijar, bem, isso ainda iria demorar um bocado, mas já era
alguma coisa conquistada. Saber português era mais importante do qualquer
beijoca bobinho.
Este professor morreu logo depois
num triste acidente. Nunca soube o que significou para mim aquele estranho episódio.
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